Cardeal Victor Manuel Fernández |
Desde então, não só o presidente do Dicastério se viu
obrigado a dar várias entrevistas para tentar explicar melhor o documento que não
precisaria de esclarecimentos adicionais, como hoje o Dicastério publicou
um comunicado de imprensa para esclarecer ainda mais o documento que
dispensava esclarecimentos adicionais. Chama-se a isto controlo de danos. Virá
a tempo?
Como bom comentador, já levei porrada dos dois lados. Alguns
críticos, incluindo bons amigos, acusaram-me de “Popesplaining”, isto é, de
estar a fazer contorcionismo para tentar procurar a leitura mais benigna
possível do Fiducia Supplicans, enquanto outros acharam, no texto que escrevi no blog e no Expresso a dar conta de como a declaração
estava a causar divisões, que estava com isso a criticar o Papa e a própria
ideia de dar bênçãos a homossexuais.
Deixem-me então, se é que interessa, expressar a minha
opinião. Eu acho evidente que pessoas homossexuais, estejam ou não em uniões,
bem como outras pessoas em uniões irregulares, podem e devem pedir e receber bênçãos
à Igreja e aos seus ministros. Concordo plenamente com o texto quando este diz
que esses pedidos, na maior parte dos casos, representam uma sede de
aproximação de Deus e do Evangelho, e que as bênçãos devem ser entendidas como
auxílio nessa caminhada, e não como sacralização do estado de vida de quem quer
que seja.
Acredito – não só em teoria, mas por experiência pessoal de
convívio próximo com pessoas nessas situações – que tal como os indivíduos não
são a soma dos seus pecados, uma relação entre duas pessoas do mesmo sexo, ou
entre duas pessoas que não se encontram validamente casadas, não se resume às
suas dimensões pecaminosas, ou “irregulares”, embora estas possam existir. Todos
os laços de amizade e de amor, ainda que seja um amor que não compreendamos ou
que não consideramos equivalente ao que é consagrado no matrimónio cristão, têm
dimensões positivas de entreajuda, de apoio mútuo, de amizade, de projectos de
vida em comum, que podem e devem ser nutridos para crescerem e se desenvolverem
da melhor maneira. Dito isto, no que diz respeito aos homossexuais, eu teria
evitado usar a palavra “casais” na declaração, precisamente porque acredito que
gera e promove precisamente a confusão que o texto diz querer evitar.
Uma porta aberta ou uma gaffe desnecessária
A pergunta que se impõe, a meu ver, é se esta declaração
era necessária. Há quem diga que sim, porque aquilo que eu e outros
consideramos evidências não as eram para todos. Haveria padres e bispos que se
recusariam a abençoar um homem só porque estava numa relação homossexual, por exemplo.
Acredito que sim, mas sinceramente parece-me que aquilo que a declaração urge
era já prática mais que habitual.
Convence-me mais a ideia de que o Papa queria, com esta
declaração, dar mais um sinal às pessoas em uniões irregulares de que se devem
aproximar da Igreja, que as portas estão abertas, e que as coisas que nas suas
vidas estão em dessintonia com o Evangelho devem ser resolvidas dentro da
Igreja, e não fora, como se só os perfeitos e imaculados pudessem ter acesso à
mesma.
O problema é que, se era essa a intenção, o resultado
acabou por ser, em larga medida, contrário. A reacção causada pelo texto – quer
pela ambiguidade que contém, quer pela que alguns fizeram os possíveis para
encontrar – acabou por passar o sinal de que a Igreja Universal está dividida
sobre os méritos de dar bênçãos a pessoas cuja vida não encaixa na perfeição sugerida.
Isto passa tudo menos uma imagem de porta aberta.
Alguns temiam que o documento passaria a ser substituído
por um vago e etéreo “espírito do Fiducia Supplicans” que passaria a justificar
a bênção de facto, litúrgica, de uniões irregulares. Seria contrário ao texto da
declaração em si? Sim, seria. Mas isso não seria impedimento para o exagero de
alguns pseudo-iluminados. Se acho que esta preocupação é legítima, também acho
que a sucessão de intervenções e, agora, este comunicado da Santa Sé, mostram
claramente que esse não é um propósito disfarçado do Papa ou do prefeito do
Dicastério.
Fortaleza v. Hospital de Campanha
Depois há o problema do timing. Porquê lançar esta declaração
precisamente numa altura em que a civilização cristã parece estar a travar – e a
perder – uma guerra contra as ideologias que promovem a homossexualidade e as
siglas-alfabeto? Não se trata de uma concessão ao espírito dos tempos?
O problema com esta ideia é de que parte do pressuposto do
conflito, a famosa guerra cultural. A Igreja contra o mundo. A Igreja fortaleza.
Se há alguma coisa que o Papa tem demonstrado durante o seu pontificado é de
que essa não é uma visão própria para os cristãos. Não somos a Igreja
entrincheirada, somos a Igreja hospital de campanha, e as hordas que nos batem
à porta, ainda que professem ódio a tudo o que somos e defendemos, não são inimigos
a abater, mas vítimas estropiadas de uma cultura individualista e niilista, uma
cultura de morte. Somos chamados a ajudá-las, a não a derrotá-las.
Visto desta perspectiva, não havia melhor altura para este
gesto de boa-vontade. O que não implica que o gesto tomasse esta forma. Pessoalmente
acho que teria sido muito mais útil, e bem mais ao estilo do Papa, fazê-lo de
forma informal, em conversa ou entrevista, ou ter tomado mesmo a iniciativa de
dar uma destas bênçãos não litúrgicas. Acredito que causaria bem menos polémica
do que uma declaração definitiva que afinal não é tão definitiva assim.
O que temos agora é um ciclo de explicações e
esclarecimentos, com o prefeito para o Dicastério para a Doutrina da Fé a
ver-se na situação de ter de publicar um comunicado a explicar que a sua mais
recente declaração não é “herética, contrária à Tradição da Igreja ou blasfema”.
Não é uma posição confortável para o guardião da ortodoxia, resta ver se não é
pior a emenda que o soneto.
"Dito isto, no que diz respeito aos homossexuais, eu teria evitado usar a palavra “casais” na declaração, precisamente porque acredito que gera e promove precisamente a confusão que o texto diz querer evitar. " - pois meu caro mas é o que está lá e não está lá o que o meu amigo diz que teria evitado.....como diz um amigo "está claro o conceito?" PIOR: o documento de hoje ainda cria mais confusão pois reitera exactamente este ponto: CASAIS!
ReplyDeleteInfelizmente aqueles que deveriam ser os bons pastores, são lobos com peles de cordeiro. Quando olho para os responsáveis desta insanidade sou chamado ao grande desafio de rezar pelos inimigos.
ReplyDeleteEu diria que a discussão tem estado desviada do foco.
ReplyDeleteO foco deveria ser o que realmente foi introduzido de novo: as benções pastorais não-litúrgicas. Parece-me que praticamente quase toda a gente está de acordo que não houve mudança de doutrina em termos de moral sexual (mesmo apesar das inúmeras vezes que o DDF teve de o repetir deixar-nos ainda mais confusos e com suspeitas de ambiguidade intensificadas). O que urge ser discutido é esta nova tipologia de benção. Eu não sou teólogo nem nada que se pareça, mas, parece-me, há muito espaço para discussão, explicação e reflexão, e para isso convido à leitura do que o Larry Chapp tem escrito e o que o próprio Cardeal Müller (anterior perfeito da DDF) escreveu sobre o tema. Podemos também falar de moral sexual, de livros duvidosos, mas acho que não devemos fugir à discussão sobre o que, pragmaticamente, é novidade com o FS.