Wednesday 10 August 2022

Pessoas vs. Seres Humanos

Randall Smith

Uma das defesas mais comuns do aborto é de que o feto em desenvolvimento no útero da sua mãe, embora seja claramente um “ser humano” – e não um peixe, ou um reptil, como o ADN e os cromossomas claramente demonstram – ainda não é uma “pessoa”. Neste contexto o termo “pessoa” identifica uma certa classe de seres humanos que julgámos merecedores da nossa protecção e preocupação moral, por oposição àqueles outros que decidimos que não o são.

Neste contexto o termo “pessoa” delimita uma fronteira crucial – a fronteira entre “nós” (aqueles com a dignidade e o estatuto que o termo implica e concede) e “eles” (aqueles a quem esse estatuto deve ser negado).

Se o pensamento pós-moderno nos ensinou alguma coisa, foi a encarar estes jogos linguísticos com desconfiança. Esta dicotomia entre “pessoa” e “ser humano” não é precisamente o tipo de coisa que o pós-modernismo se orgulha em desconstruir, uma vez que as dicotomias, como “negro” e “branco”, “homem” e “mulher”, “cidadão” e “estrangeiro” são usados para fragilizar e marginalizar certos grupos?

Não aprendemos com a teoria pós-moderna que todas as dicotomias são expressões de poder do forte sobre o fraco, do rico sobre o pobre, das classes altas sobre todos aqueles que elas querem manter sem poder e invisíveis?

Considere, por exemplo, esta descrição do filósofo Peter Singer, de Princeton, sobre porque é que pais que descobrem que o seu filho por nascer tem trissomia 21 poderão querer abortá-lo:

Ter um filho com trissomia 21 é uma experiência muito diferente de ter um filho normal [sic]… Não podemos esperar que uma criança com trissomia toque viola, que desenvolva uma apreciação por ficção científica, aprenda uma língua estrangeira, converse connosco sobre o mais recente filme do Woody Allen ou que seja um atleta respeitável de basquete ou de ténis.

O que é isto se não a descrição de um aluno rico e talentoso, de uma universidade de elite? Porque é que o Singer não diz simplesmente que não levaríamos uma criança trissómica para o clube de campo? Talvez não, mas há uns anos seria igualmente embaraçoso aparecer no clube de campo com um judeu ou um negro.

O filósofo John O’Callaghan, pai de uma criança com trissomia 21, comentou as palavras de Singer:

De facto, Singer está enganado sobre as capacidades de seres humanos com Trissomia 21, pois muitos conseguem desempenhar essas actividades. Só quem vive na ignorância geral sobre as vidas de pessoas com trissomia 21 é que pensaria o contrário. E podemos perguntar porque razão tantas pessoas na nossa sociedade são tão ignorantes sobre estas vidas que não fazem mais do que acenar em concordância quando ouvem tais afirmações. Porque é que os feitos de pessoas com trissomia 21 são dignos de notícia? Francamente, é porque já os excluímos da comunidade de preocupação moral com quem nos relacionamos nas nossas vidas.

Quando as pessoas dizem de um bebé abortado: “Bem, sabes, ele tinha trissomia”, não é exactamente o mesmo que dizer de um assassinado: “Bom, sabes, ele era um imigrante ilegal”? O que pensaria de alguém que respondesse à questão “Ouviste que o Presidente Roosevelt recusou um navio cheio de pessoas que fugiam da tirania nazi?” com a afirmação “Sim, mas as pessoas têm de perceber que os passageiros eram judeus”?

Ser humano e pessoa, como todos nós
Será assim tão diferente de responder à pergunta: “Já sabes que a Sally perdeu o bebé?” com, “Sim, mas era só um feto”. Pergunte a mulheres que sofreram a dor de um desmancho quão pouca empatia sentiram por causa da maliciosa distinção que se faz entre o seu filho por nascer e um bebé “verdadeiro”.

Como é que se explica que turbas de polícias linguísticos, sensíveis a cada “micro-agressão” oral não compreendem que afirmar que um bebé no útero “não é uma pessoa”, ou que um bebé indesejado “não é uma pessoa”, ou que uma idosa com demência “não é aquela pessoa que eu conhecia e amava” é igual a apontar a um homem hispânico e perguntar “será que ele é legal?”. Ou então comentar uma candidata a professora universitária perguntando, “É uma mulher? Será que pensa engravidar?”. 

Quem é que a distinção entre “pessoa” e “ser humano” favorece? A criança indefesa e invisível? Ou os poderosos capitalistas que querem que as mulheres dêem prioridade ao trabalho e que sintam que é do trabalho numa economia de mercado, e não da parentalidade, que derivam o valor e o sentido das suas vidas? (Uma inversão de valores que foi alcançada há décadas, juntamente com os homens, em lamentável detrimento da família).

Como é que se explica que académicos que se orgulham da sua sensibilidade em tais questões não conseguem reconhecer que esta utilização do termo “pessoa” é precisamente o tipo de agressão linguística a que se oporiam em qualquer outra área? Talvez seja porque este termo, ao contrário de outros, serve para valorizar a sua própria classe, de pessoas como elas, pessoas que valorizam e apreciam coisas como a ficção científica, aprender uma língua estrangeira, conversar sobre filmes do Woody Allen e jogar ténis para se manter em forma?

Não é verdade que todos os que são beneficiados pela linguagem negam que é isso que está a acontecer? “São apenas palavras comuns”, dizem. A questão é que essas “palavras comuns” expressam a fragilização em curso de uma parte da sociedade.

Então, pergunto, “pessoa” vs. “ser humano”: não é exactamente o tipo de categoria socialmente construída de “nós” (aqueles que importam) contra “eles” (os que não interessam) que deve ser desconstruída e eliminada? Enquanto existir qualquer tipo de obstáculo que simples “seres humanos” têm de ultrapassar para serem incluídos na comunidade de “pessoas”, haverá sempre seres humanos vivos que ficam aquém.

Ao longo da história, sempre que distinguimos entre o que podemos chamar “seres humanos plenos” (“pessoas”) de outros que supostamente não são bem humanos (como judeus, africanos negros e bárbaros, por exemplo), cometemos mais do que um erro. Cometemos um dos piores erros que nós, enquanto pessoas supostamente sensíveis, razoáveis e “civilizadas”, podíamos cometer. Talvez seja hora de parar de o fazer.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 9 de Agosto de 2022)

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