Wednesday, 31 August 2022

Rejeitar uma Cultura de Mentiras

Randall Smith

Foi um momento muito revelador. Estava com um amigo, a passear por uma universidade importante. Ele trabalhava no gabinete responsável por gerir os recursos dos diferentes departamentos da instituição. Então eu comentei: “Sabes, tenho estado a pensar. Sei que existem questões morais complexas, como por exemplo o que fazer se temos cinco pessoas, mas o bote salva-vidas só tem lugar para quatro. Mas começo a suspeitar de que a maioria das questões morais do nosso dia-a-dia resolviam-se com a simples aplicação dos dez mandamentos, e que só parecem complicadas porque nos convencemos que nesta ocasião, em particular, seria melhor roubar, ou mentir, ou o que for”.

“Mentir!”, exclamou o meu amigo. “Se ao menos pudéssemos fazer com que as pessoas parassem de mentir. No meu departamento nem conseguimos perceber que recursos temos, porque toda a gente está sempre a mentir, e por isso não podemos tomar decisões fiáveis sobre aquilo de que precisamos”.

Explicou que, por exemplo, uma vez que sabiam que todos os outros departamentos exageravam os seus orçamentos em 20%, ele começou a aplicar cortes em todos os orçamentos nessa mesma medida, presumindo que estavam a mentir. Alguns departamentos começaram a perceber isso, e então passaram a exagerar os seus orçamentos em 25%. O resultado é que agora o departamento dele cortava todos os orçamentos em 25%.

Chega-se a um ponto em que este jogo do gato e do rato se torna tão complexo que já ninguém sabe muito bem a que alvo deve estar a apontar, nem se ainda tem setas na aljava.

Todos nós vivemos situações em que não temos acesso a todos os dados necessários para tomar as decisões que precisam de ser tomadas. Por isso temos de poder confiar na veracidade da informação que nos é dada por outros. Uma atitude seria a clássica de Pôncio Pilatos: “O que é a verdade?”. Existe a tua verdade e a minha verdade. Ou, como dizem alguns pragmáticos, a verdade é algo que serve um fim pragmático.

Mas será que a experiência recente não revela os perigos de permitir que a “verdade” seja subserviente aos fins pragmáticos de alguém?

Mark Twain escreveu que “existem três tipos de mentira. Mentiras, Malditas Mentiras, e Estatísticas”. No nosso tempo sabemos que existem Mentiras, Malditas Mentiras, e Notícias. Veja-se o exemplo recente de Elaine Riddick, uma activista negra pró-vida que foi violada aos 13 anos. Depois do parto foi esterilizada pelo seu médico, contra a sua vontade. Desde então tem lutado pelos direitos das mulheres e dos nascituros. 

Porém, quando o Washington Post escreveu sobre ela, o título que escolheu para o artigo foi: “Sobreviveu a uma Esterilização Forçada. Teme que mais possam ocorrer pós-Roe”. Dito assim, dava a entender que ela era contra a decisão de Dobbs, que reverteu o Roe v. Wade. Mas isso não podia estar mais longe da verdade.

Noutro artigo, no The Pillar, ela afirma: “O Washington Post retratou-me falsamente como sendo pró-escolha, apesar de saber claramente, e de eu ter dito na entrevista, que sou contra o aborto, e pró-vida.” No artigo do Post foi citada a dizer “acredito que uma mulher deve ter controlo sobre o seu corpo”. Mas, de facto, nessa passagem Riddick estava a falar de esterilização forçada, e não de aborto. Que mais podemos chamar a este tipo de “notícia” do que uma mentira total, clara e intencional?

O que é a verdade?
Os grandes órgãos de comunicação têm tratado a verdade com tamanha fluidez, durante tanto tempo, que agora enfrentamos duas situações terríveis.

A primeira é que as pessoas só acreditam nas notícias que se adequam aos seus próprios preconceitos ou narrativas preconcebidas.

A segunda é que algumas pessoas não acreditam nas notícias de todo, mesmo quando elas são verdadeiras.

Porque é que algumas pessoas acreditaram no site InfoWars de Alex Jones, quando este afirmou que o assassinato de vinte crianças e seis adultos na Escola Primária de Sandy Hook era uma farsa, ao ponto de começarem a assediar os pais das crianças assassinadas?

Porque é que algumas pessoas acreditam ainda que o Holocausto não aconteceu? Porque as pessoas acreditam no que querem acreditar, e rejeitam até as provas esmagadoras em contrário. Duzentos livros de história dizem uma coisa? Temos de esperar para ver. Um artigo na internet diz o contrário? Aha! Provas!

A obsessão dos media com a reafirmação das suas próprias narrativas, liberais ou conservadoras, seja de esquerda ou de direita, torna-se um obstáculo à obtenção da informação de que precisam mesmo para tomar decisões prudentes. Grandes empresas de comunicação, sites e pivots de talk-shows estão a ganhar milhares de milhões, aproveitando-se do medo e da revolta.

Como católicos, somos chamados a mais do que isto.

Mas não aceitem apenas a minha palavra. O que acham que Deus nos está a pedir quando diz: “O paciente dá prova de bom senso; quem se arrebata rapidamente manifesta sua loucura” (Pv 14,29) e “Portanto, como eleitos de Deus, santos e queridos, revesti-vos de entranhada misericórdia, de bondade, humildade, doçura, paciência”? (Col 3,12).

Mas devemos ser pacientes com o mal em nosso redor? Bom, Deus diz o seguinte: “Em silêncio, abandona-te ao Senhor, põe tua esperança nele. Não invejes o que prospera em suas empresas, e leva a bom termo seus maus desígnios” (Salmo 37,7). E, por fim, há isto: “Por isso, renunciai à mentira. Fale cada um a seu próximo a verdade, pois somos membros uns dos outros” (Ef 4,25).

Não vejo que possamos levar tudo isto a sério e continuarmos a deixar-nos consumir pelas obsessões dos média, redes sociais e as hordas do Twitter. Mais da mesma informação, das mesmas fontes tendenciosas, não nos vai dar aquilo de que precisamos. Aquilo de que precisamos é de mentes calmas à procura de toda a verdade, e não de buscas revoltadas por justificações para a nossa própria revolta moralista.

Estaríamos mais bem servidos se vivêssemos vidas que proclamam, não que “a verdade é o que a minha fonte de notícias diz que é”, mas sim “a verdade é a submissão humilde e paciente da mente à realidade”.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 24 de Agosto de 2022)

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