Randall Smith |
O problema, dizem, é que o primeiro elemento do par é
considerado o “bom”, o “forte”, o “superior”, enquanto o segundo é o “mau”, o
“fraco” ou o “inferior”. Por isso o que temos de fazer, dizem, é acabar com as
oposições binárias para que o segundo grupo deixe de ser menosprezado ou
oprimido neste “jogo” linguístico.
Para ser franco, não estou inteiramente convencido de que
estes binários supracitados são assim tão nefastos como se diz. Pessoalmente,
sempre pensei no binário homem/mulher como complementar, não como “melhor” ou
“pior”. E como temos visto recentemente, a desconstrução desse binário em
particular nem sempre foi para o benefício das mulheres, sobretudo no campo do
desporto.
Seja como for, neste mesmo espírito de desconstrução,
gostaria de propor uma série de outras oposições binárias que são regularmente
usadas na sociedade contemporânea, frequentemente para menosprezar ou oprimir
uma classe de pessoas. Tomemos como exemplo:
Ciência/Teologia
Razão/Fé
Progresso/Tradição
Progressista/Conservador
Modernidade/Antiguidade
Espiritual/Doutrinal
Moderno/Tradicional
Em cada caso, a oposição binária serve para menosprezar e
oprimir. As pessoas dizem “Segue a ciência”. Ninguém diz “Segue a teologia”.
Porquê? Porque se parte do princípio de que a categoria alargada e indefinida
de “ciência” é factual, certa e indubitavelmente boa, apesar de,
de tempos a tempos, repudiar todas as suas teorias mais populares. A “ciência”
é associada à razão, ao progresso, às bênçãos da modernidade, enquanto a
“teologia”, seja de que género for, seja por quem for, é tida como sendo mais
do que um pouco duvidosa, associada a superstições antigas e dogmas fora de
moda, do género que manteve os nossos antepassados na escuridão durante a “Idade
das Trevas”, esse maldito tempo antes da luz pura da razão que surgiu durante o
Renascimento e o Iluminismo.
Ouvimos as pessoas a dizer “temos a razão do nosso
lado”. Se têm, ou não, não é bem claro. Muitas pessoas falam sobre
“razão” ou “razão pura” mas não têm a menor idade do que a razão, em
toda a sua complexidade e múltiplas formas de abordar a realidade, é
verdadeiramente.
Por isso aquilo que as pessoas normalmente querem dizer com essa expressão é “eu tenho razão e tu não, porque não pensas como eu”.
A questão que estas pessoas estão a evitar é na verdade a
mais importante de todas: “O que significa pensar? Como é que pensamos
claramente sobre diversos assuntos? Faria sentido – seria razoável? –
pensar sobre a pessoa com quem devo casar da mesma forma como penso sobre a
razão pela qual o cobre conduz a eletricidade, ou se devo investir numa empresa
e não noutra?
Ou será que existem diferentes formas de pensar,
apropriadas a diferentes áreas da vida e diferentes questões? Se um treinador,
ou um professor, disser a um colega céptico “eu acredito neste miúdo”,
será que a resposta certa é “tens a tua fé, mas eu estou a usar a razão.
Expulsa-o.”?
Quem quer ser “conservador” em oposição a “progressista”?
Quem não quer “progresso”? Mas o que é o verdadeiro progresso, se não
mera mudança? Se o binário fosse alterado para “conservador versus radical” ou
“conservador versus anarquista”, quantas pessoas não escolheriam “conservador”?
Os católicos sabem bem como este jogo se desenrola na
Igreja, quando as pessoas opõem “doutrinal” e “espiritual” como se fosse
possível ser “espiritual” sem ter os pés bem assentes na doutrina. As
tradições espirituais e os ensinamentos sobre justiça social da Igreja Católica
baseiam-se em doutrinas muito específicas sobre justiça social e o
desenvolvimento da pessoa. Leiam as obras de grandes autores “espirituais” como
os santos Boaventura ou Hildegard de Bingen e encontrarão textos muito
sofisticados de doutrina cristã.
Não estou a dizer que não se possam fazer distinções
entre fé e razão, ou entre ciências naturais e teologia
ou, para ser franco, entre Estado e Igreja. Os maiores teólogos da Igreja, como
Tomás de Aquino, usavam estes termos com um correcto entendimento de ambos. A
questão está em saber se devemos começar a desafiar as pessoas a deixar de usar
estes binários quando recorrem a eles para preservar o seu próprio domínio
cultural sobre os católicos e outras pessoas de fé, isto é, os pacóvios que não
tiveram o benefício de uma educação secular numa universidade prestigiada e
sofisticada, mantendo-se colados ao passado, com as suas superstições
tradicionais que os impedem de participar no verdadeiro progresso.
Dado este tipo de preconceito irreflectido, talvez seja
altura de aplicar uma dose séria de “desconstrução” aos binários opressivos da
própria modernidade.
Quando alguém profere a frase ignorante: “Tu tens a tua
fé, eu tenho a razão”, talvez os católicos devam adoptar a linguagem dos
desconstrucionistas: “Isso não passa de um binário opressivo, e eu rejeito-o”.
Quando alguém diz “eu sigo a ciência e não uma qualquer teologia
supersticiosa”, devemos responder: “Em primeiro lugar não sabes do que falas,
porque não sabes o que é que a ‘ciência’ (do latim scientia, ou
‘conhecimento’) é; em segundo lugar, não pareces ter qualquer noção das discussões
clássicas sobre a relação entre a ‘ciência’ e a ‘sabedoria’ (sophia),
que remontam à antiguidade. Por isso, acabaste de dizer algo que é o
equivalente linguístico a ‘as tuas emoções são muito femininas’ e não só
me ofendeste como te revelaste profundamente preconceituoso”.
Se funciona para os desconstrucionistas, devia resultar
para os católicos. Algumas pessoas de um “grupo tradicionalmente
marginalizado”, nomeadamente os católicos, precisam de acordar, aprender a
defender-se e não se deixarem ser oprimidos na linguagem e na sociedade.
Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 14 de Dezembro de
2021)
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