Stephen P. White |
Na verdade, algumas das reformas que hoje damos por
adquiridas – como a participação obrigatória dos casos às autoridades civis e a
tolerância zero para abusadores – continuam a estar muito à frente do resto do
mundo.
Escusado será dizer que a Carta está longe de ser
perfeita. Como ficou patente no caso do McCarrick, a Carta não adiantou nada
para lidar com más práticas ou abusos cometidos por bispos. E continuam a
existir preocupações legítimas para com padres que, tendo enfrentado alegações
que ficaram por provar, ficam num estado de limbo ministerial. No seu mais
recente plenário em Baltimore, os bispos discutiram mudanças a fazer à Carta.
De Roma também chegaram reformas importantes – Come
una madre amorevole e Vos estis lux mundi, por exemplo – que deram
mais gás a esforços para combater os abusos em todo o mundo, sobretudo no que
diz respeito a más-práticas dos bispos, e que nos Estados Unidos complementam a
Carta.
O que não significa que a crise já esteja no passado. A
realidade é que o abuso sexual de menores ou de adultos, praticado por clero,
ou por qualquer outra pessoa, nunca vai ser completamente erradicada. Mas
podemos ter esperança de que chegue um momento, seja dentro de décadas ou
dentro de séculos, em que os abusos na Igreja já não sejam vistos como uma
crise global.
Os efeitos desta crise de abusos estarão com a Igreja
durante muito tempo. Uma vez perdida, a confiança não é fácil de recuperar.
Isto aplica-se, claro, às vítimas individuais, mas também à confiança ferida
entre o clero, entre o clero (especialmente bispos) e os seus rebanhos, e entre
a Igreja e o mundo.
Tão certo como o mal mais grave dos abusos é sofrido
pelas próprias vítimas, as consequências mais duradouras, e talvez as que mais
gozo dão ao Inimigo, são as que a credibilidade da Igreja sofre. Mentiras
contadas há anos tornam mais difícil a proclamação e a escuta do Evangelho
agora; violência cometida em segredo há décadas continuará a ameaçar as almas
daqui a uma geração.
É importante, por isso, reconhecer que as reformas
jurídicas como a Carta de Dallas e a Vos estis (por mais imperfeitas e tardias)
são conquistas reais e necessárias. Mas também é importante reconhecer que, no
que toca a abordar a crise na Igreja estas reformas necessárias e contínuas são
– e sempre seriam – a parte mais “fácil”.
Então como é que a Igreja lida com a parte difícil? Como
é que aborda o défice de confiança que existe entre leigos e clero, sobretudo
entre leigos e bispos? Como é que a Igreja ultrapassa as profundas divisões que
existem entre os católicos, que a crise dos abusos pode não ter causado, mas
que certamente revelou e aprofundou? Como é que a Igreja, que se tornou tão
feia aos olhos de tantos, continua a proclamar a mensagem da misericórdia e da
salvação?
O ponto de partida |
Fazer o mais difícil significa recusar-nos a deixar para
trás aqueles por quem somos responsáveis e aqueles a quem respondemos, aqueles
com quem estamos ligados pelo baptismo. Fazer o mais difícil significa escutar
e falar mesmo com aquelas pessoas que cremos estejam errados. E fazemos isso
não porque confiamos uns nos outros, mas porque confiamos naquele que nos
ordena a amar até aos nossos inimigos.
O clero tem de estar disposto a escutar os leigos mesmo
quando – especialmente quando – eles dizem as verdades que mais custa ouvir. Os
leigos não terão sempre razão. Deus bem sabe que os nossos padres e bispos
também estão longe de ser perfeitos. Mas um pai que não escuta os seus filhos
não os conhecerá, não compreenderá as suas forças e fraquezas. E as ovelhas que
ignoram o pastor rapidamente se perdem.
Nada disto acontece de uma vez só. Requer oração
constante, conversão, arrependimento e pedir e dar perdão. É discipulado. É um trabalho
duro. Vamos falhar, provavelmente muito. Mas sabemos que o Senhor empresta a
sua graça aos nossos humildes esforços, por isso persistimos. Caminhamos
juntos, como São Paulo nos exorta, “com toda a humildade e gentileza, com
paciência, suportando-nos uns aos outros por amor, esforçando-nos para
preservar a unidade do espírito através do elo da paz”.
Convidamos outros a juntarem-se pelo caminho, para
descobrir o que encontrámos. Falamos aos outros sobre este Deus que, quando
ainda éramos pecadores, nos amou até dar a vida por nós. Todo o azedume, a
fúria, a revolta, a gritaria e o desprezo devem ser removidos de dentro de nós,
bem como toda a malícia. Esforçamo-nos para sermos bons uns para com os outros,
compassivos, para nos perdoarmos como Deus nos perdoou em Cristo.
Este é o caminho em frente para a Igreja na sequência da
crise de abusos sexuais do clero, porque este é sempre o caminho em frente para
a Igreja. Se parece ser simultaneamente simples e difícil, é porque é. Se vos
soa familiar, ainda bem. A maior parte do que acabo de dizer vem diretamente de
São Paulo.
Se vos soa ao que o Papa Francisco chama sinodalidade – não um evento, ou um parlamento, ou uma “nova Igreja”, mas a recuperação de um sentido partilhado de missão, radicado na verdade, no nosso baptismo comum e na missão universal de todos os cristãos – é porque é isso mesmo.
Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no
Centro de Ética e de Política Pública em Washington.
(Publicado em The
Catholic Thing na Quinta-feira, 2 de Dezembro de 2021)
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