Wednesday, 25 November 2020

O Rei Escondido

Pe. Paul Scalia
Há uma certa ironia na celebração da Solenidade de Cristo Rei. Uma ironia que toca a subtileza da sua realeza e da sua razão de ser.

Resumindo, celebrámos no domingo o título que o Senhor propositadamente evitou. Quando as multidões o queriam tornar Rei, retirou-se (Jo 6,15). Quando Pôncio Pilatos lhe perguntou diretamente, deu uma resposta evasiva, “Tu dizes que eu sou Rei” (Jo. 18,37). Embora hoje o proclamemos Rei do Universo, na sua vida terrena ele procurou esconder a sua realeza e ser apenas “o Filho do Homem”.

As pessoas sempre adoraram histórias de reis escondidos. Há algo de inspirador e esperançoso na história de um homem obscuro e humilde em cujas veias corre sangue real. Vemo-lo primeiro na história do Rei David, que é o menor da sua família, mas é escolhido por Deus, ungido e elevado ao trono de Israel. E temos Artur, o Rei desconhecido que é o único que pode retirar a espada da pedra. O Aragorn, de Tolkien, esconde a sua linhagem real até que chega a altura de reclamar a coroa de Gondor. E por aí fora.

Mas tudo isto são apenas sugestões e ecos do verdadeiro Rei escondido. Jesus vem a este mundo possuindo todo o poder, mas exercendo nenhum. No seu nascimento a sua realeza nem é reconhecida pelo seu próprio povo; a novidade tem de ser trazida por magos vindos do Oriente. Mesmo quando Jesus começa a sua vida pública, o Batista anuncia-o de forma críptica como “um entre vós que não reconheceis” (Jo. 1,26).

Ao contrário de outros, contudo, o estado humilde deste Rei não é uma ficção nem um entrave. Ele torna-se verdadeiramente um connosco, seus súbditos – partilhando as nossas humildes alegrias e profundas tristezas, sendo igual a nós em tudo menos no pecado. Esconde a sua autoridade divina debaixo da nossa humanidade frágil, como Rei e parente.

E mais, o Senhor continua a estar presente desta forma escondida entre nós. Vem ao nosso encontro envergando, nas palavras de Madre Teresa, o “penoso disfarce do pobre”. Como ouvimos no Evangelho de domingo, “Em verdade vos digo, tudo o que fizestes ao mais pequeno dos meus irmãos, a mim o fizestes” (Mt. 25,40).

Pela pobreza da Encarnação, o Filho de Deus uniu-se de forma particular aos pobres. “nosso Senhor Jesus Cristo (…) sendo rico, se fez pobre por amor de vocês” (2 Cor. 8,9). Assim, ele pode dizer sem ter de qualificar, “A mim o fizestes” – querendo com isso evocar não uma unidade moral mas uma identificação pessoal com os pobres. Neles o Rei mantém a sua presença escondida entre nós. 

E não é só neles. Nosso Senhor identifica-se ainda com outro grupo. “Quem receber um só destes pequenos em meu nome, a mim me recebe; e quem me recebe a mim recebe-me não a mim, mas àquele que me enviou” (Mc. 11,37). Temos aqui a mesma identificação sóbria e literal do Rei com alguém entre nós. Mais uma vez, ele vem a nós de uma forma escondida, desta vez como uma criança. Como estas palavras devem ser inspiradoras para aqueles de nós que acolhem generosamente crianças? E que horror não devem trazer para uma cultura que as rejeita, ao ponto de as matar no ventre?

Nosso Senhor esconde a sua realeza não porque nos quer enganar, mas para purificar o nosso entendimento. Ele afastou-se das multidões porque elas não teriam compreendido a sua realeza e respondeu de forma enigmática a Pilatos porque o governante não tinha a capacidade de entender a verdade. Primeiro tinham de aprender que aquilo que pensavam que constituía realeza afinal não a era. O Cristo Rei vem de forma escondida para purificar as nossas ideias mundanas, para limpar as nossas mentes de conceitos terrenos como governo, autoridade e poder.


Para além desta purificação, o Rei escondido ensina-nos a verdade. De facto, os disfarces do Rei não escondem, antes revelam. Ao vir a nós na fraqueza, nos pobres e nos vulneráveis, Ele ensina-nos sobre o Reino e sobre a verdadeira Realeza. Dele aprendemos que servir é reinar; que a autoridade está ordenada para o serviço; que o poder está ordenado para a misericórdia e que a verdade triunfa sobre a força.

O que nos traz até ao propósito desta festa. Longe de ser uma relíquia da Igreja antiga ou medieval, ela foi estabelecida em 1925 – numa altura em que as monarquias estavam a desaparecer e, o que é mais importante, que o pensamento cristão estava a ser expulso da sociedade. Os governos ateus que surgiam pelo mundo rejeitavam qualquer limite ao seu poder. Pio XI, que passou a maior parte do seu pontificado a lidar com estes governos hostis, pretendia que esta festa fosse uma defesa dos direitos de Cristo Rei na praça pública. A ideia era servir de contrapeso àqueles que queriam separar a governação da verdade e, por isso, passar por cima dos fracos.

O Evangelho de domingo apresenta a vinda do Rei no final dos tempos. Mas as suas palavras – a mim o fizestes – indicam que Ele já cá está. De facto, Ele está presente agora – não nos poderosos e ricos, mas nos fracos e vulneráveis, em todos os que estão expostos ao exercício do poder sem justiça e da força sem verdade.

 


O Pe. Paul Scalia (filho do falecido juiz Antonin Scalia, do Supremo Tribunal americano) é sacerdote na diocese de Arlington e é o delegado do bispo para o clero. 

(Publicado pela primeira vez no domingo, 22 de novembro de 2020 em The Catholic Thing

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