Wednesday 11 November 2020

O João e o Jean, reflexões de um pecador sobre a santidade

No dia 7 de maio de 2019 publiquei uma mensagem no Twitter sobre a morte de Jean Vanier que terminava com as palavras “Santo subito!”. Foram anos de enorme admiração por um homem que dedicou a vida à promoção da dignidade dos mais vulneráveis e descartados da nossa sociedade. Como podia não ser santo?

Menos de um ano mais tarde olhei estupefacto para o telemóvel, durante a festa de anos de um sobrinho, a ler a notícia de que Vanier tinha estado envolvido em relações com mulheres adultas de quem supostamente seria diretor espiritual, e que essas relações foram fruto do abuso e manipulação dessa sua posição, sendo muito prejudiciais para as vítimas. Deixo os detalhes para quem quiser ir aprofundar, mas digo apenas que não há qualquer indício de que tenha abusado das pessoas com deficiência que dedicou a vida a servir.

Como é que era possível ser a mesma pessoa?

Hoje aconteceu uma coisa parecida. João Paulo II foi o Papa da minha juventude, ainda hoje fico emocionado quando vejo aquelas montagens com momentos do seu pontificado ou ouço a sua voz. Era como um avô para mim e culminou os seus dias na terra dando o mais magnífico testemunho já visto por parte de uma figura pública de que a velhice e a doença não diminuem a nossa dignidade.

Mas com a publicação do relatório sobre o cardeal McCarrick, aguardado há dois anos, ficámos a saber que João Paulo II tinha sido avisado repetidamente sobre os rumores em torno do ex-cardeal, de que tinha evitado nomeá-lo para duas dioceses antes de finalmente o nomear para Washington. Para isto terá pesado a relação pessoal de amizade entre os dois.

A questão não é assim tão simples, mas no fundo entre acusações que, na altura, não eram mais do que isso mesmo, acusações sem provas, e uma experiência pessoal de proximidade, João Paulo II cometeu dos piores erros do seu pontificado, promovendo e elevando um homem que, segundo a informação disponível agora, era profundamente doente e corrupto, para além de ser mentiroso, tendo jurado em mais do que uma ocasião que era virgem e que jamais tinha tido relações com quem quer que seja.

A situação é parecida, digo, mas não é igual. Por um lado, João Paulo II já foi declarado santo. Concluir agora que afinal não era põe em causa todo o processo de canonização da Igreja. Mas não creio que isso seja necessário.

A grande diferença entre os dois casos é uma que o mundo moderno e descristianizado já não consegue distinguir. É a diferença entre o erro e a corrupção.


João Paulo II cometeu um erro. Foi ingénuo, talvez. Preferiu dar crédito a um homem que não o merecia, e a Igreja pagou por isso. Mas foi isso mesmo, um erro. Não tenho a menor dúvida de que se tivesse sido confrontado com provas concretas não teria promovido o americano como promoveu. Aliás, o facto de ter hesitado em duas ocasiões anteriores parece comprová-lo. Também não chego ao ponto de dizer que teria agido como se espera hoje que um bispo ou o Papa aja nessa situação, aplicando a tolerância zero. Provavelmente teria pedido ao cardeal para se retirar da vida pública, ir para um convento levar uma vida de oração e penitência… Enfim, era assim que se fazia naqueles tempos – erradamente – pensando que o escândalo para os fiéis era pior do que saber a verdade.

Já Jean Vanier, para minha grande tristeza, mostrou ser um homem corrupto. Um homem que aproveita uma posição de superioridade, manipulando uma pessoa frágil para satisfazer as suas vontades, ainda por cima travestindo isso com roupagens pseudo-espirituais, é um homem doente e corrupto. O erro e o pecado já não são fruto de uma fraqueza momentânea, são o fruto natural de um estado de alma em que a pessoa se deixou cair. E isso faz toda a diferença.  

O que é que isso nos diz sobre as muitas e inegáveis boas acções de Vanier? Da obra de uma vida? Nada que nos deva surpreender. Mostra, antes, da forma mais crua e triste, o paradoxo da humanidade decaída. As boas obras de Vanier permanecem boas e se Deus quiser continuarão a dar muitos frutos.

Ao pensar novamente no seu caso hoje, não pude deixar de me lembrar da parábola, tão difícil de entender, do administrador prudente e da conclusão que Cristo nos deixa:

“Então, o senhor elogiou aquele administrador da injustiça, pois agiu com sabedoria. Porquanto os filhos deste mundo são mais sagazes entre si, na conquista dos seus interesses, do que os filhos da luz em meio à sua própria geração. Portanto, Eu vos recomendo: Usai as riquezas deste mundo ímpio para ajudar ao próximo e ganhai amigos, para que, quando aquelas chegarem ao fim, esses amigos vos recebam com alegria nas moradas eternas”

Jean Vanier era um pecador, um homem pelos vistos incapaz de se desprender do pecado que o agarrava. Mas durante a sua vida ganhou muitos amigos, aquelas pessoas com deficiência cuja dignidade promoveu, de quem se fez verdadeiramente próximo. Será que ele vai para Céu, apesar dos abusos que cometeu? Não sei. Espero que sim. Sei que terá uma multidão de amigos a torcer por isso e a interceder por ele.

5 comments:

  1. Caríssimo, já há provas do que diz do Vanier?? Ou é mais um para arder na fogueira da inquisição do niilismo?

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    1. Há o testemunho coincidente de seis mulheres diferentes e a admissão da culpa por parte da organização que ele fundou e dirigiu. Infelizmente não restam dúvidas. Ninguém mais do que eu o desejaria.

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  2. Não posso nem nunca aceitarei, quem sou eu para julgar, que alguém seja condenado por haver testemunho coincidente de seis mulheres diferentes

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  3. Filipe, obrigado pela partilha da tuas reflexões, também acredito que o São JPII foi vítima dos logros do McCarrick. Algo a que todos somos suscetíveis. O que é pior? Condenar injustamente um inocente, ou deixar livre um criminoso?

    Outro triste exemplo é o do Marcial Maciel. Apesar de todo o mal que ele causou, criou os Legionários de Cristo que são um movimento muito fértil na Igreja.

    um abraço,
    João Fonseca

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  4. Filipe,

    No entanto, o que o relatório revela é que S.S. o Papa João Paulo II, foi, de facto, confrontado com provas concretas. Ex.: denúncias do cardeal de NY John O'Connor, relatórios particularmente credíveis do Dr. Richard Fitzgibbons, psiquiatra da Diocese de Metuchen, e até testemunhos pessoais de vítimas (que o relatório assinala como não tendo sido corroboradas).
    A probidade intelectual que se exige à Igreja perante estas situações é a mesma que se deve exigir ao olharmos sobre os envolvidos. De nada vale escamotear o se afiguram factos, como tal reconhecidos no relatório do Vaticano.

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