David Warren |
Arrisco dizer que todos os leitores já ouviram falar
neste incidente e que também estão a par dos motins que ele desencadeou. Três
meses mais tarde, há ainda problemas em muitas grandes cidades americanas e há
bairros inteiros que são incendiados todas as noites, por este e outros
incidentes que ocorreram entretanto.
Os activistas de esquerda, que já mostraram e bem ao que
vêm (deixando um rasto de muitas vítimas inocentes), não dão qualquer sinal de abrandar.
Porém, ainda só temos informação parcial sobre cada um dos eventos.
Mas hoje não pretendo analisar o contexto passado dos
incidentes, nem as suas consequências. É evidente que qualquer ser humano
decente se sentiu horrorizado com o vídeo original. Então porque é que grandes
segmentos da população estão a ser condenados, como se fossem cúmplices do
crime?
É demasiado fácil refutar os argumentos feitos pelos Antifa
e militantes do Black Lives Matter, ou dos ideólogos dos media, mundo académico
e política que estão a explorar a questão – quase sempre no mesmo sentido, mas
no outro também. Aqui não me estou a debruçar sobre a “loucura das multidões”.
Antes, vou focar o evento original – o aparente homicídio
de George Floyd – com base no pouco que já sabemos do que se passou. Houve um homicida
e o homem que foi morto, tanto quanto se pôde ver; um agressor e a vítima. O
sentido de injustiça é um motivador potente em qualquer sociedade humana.
Com quem é que nos identificamos? Esta é precisamente a
pergunta errada.
A nossa resposta pode bem explicar, ou mesmo determinar,
onde nos posicionamos em relação à justiça. Neste caso devia ser simples, e
para a maioria das pessoas que estão actualmente vivas, é de facto bastante
simples. Só ouvi falar de uma pessoa que defendeu a actuação de Chauvin e mesmo
esse pensou melhor e retratou-se mais tarde. Duvido que mesmo os acusados
sintam que agiram de forma correcta.
Mas aqui estou a usar o termo “identidade” de forma perigosa,
como o mundo o faz, jogando o jogo dos esquerdistas. Nesse mundo identificamos
de forma abstrata. Questões de raça, credo, cor e outras são trazidas à baila,
quer sejam imediatamente relevantes ou não. É precisamente com este tipo de fogo
que a “política da identidade” brinca.
Mas mais fundamentalmente, será que o leitor se
identifica pessoalmente com Derek Chauvin? Consegue, mesmo nos seus pensamentos
mais obscuros, imaginar-se a agir da mesma forma? Não no sentido “será que eu
faria uma coisa destas?”, mas “porque não o faria?”
Não podemos saber o que aconteceu antes, e temos de assumir
que poderia ter acontecido qualquer coisa. Mas o leitor alguma vez odiou tanto
alguém que até pensou em matá-lo? E, pelo caminho, de o torturar?
Parto do princípio que, caso o tenha feito, terá
abandonado o pensamento, talvez instantaneamente. Alguns de nós, porém, já
cometeram homicídio no seu coração e se somos adultos devíamos saber que
milhares, se não milhões, já passaram dos pensamentos aos actos. Os seres
humanos já fizeram coisas tão sórdidas que já devíamos ter noção do que somos
capazes.
Pensemos aqui um pouco nos santos, incluindo aqueles que
perdoaram, antecipadamente, os seus carrascos. Enquanto cristãos, espero que
não nos limitaríamos a dizer que tinham uma noção de justiça deficiente. Não se
esqueceram simplesmente, no excitamento do momento, do mandamento de Moisés
contra o derramamento de sangue inocente. Isso é o que fazem os assassinos, não
as suas vítimas.
O acto verdadeiramente radical do perdão, elevado aqui ao seu expoente máximo, coloca-se em oposição à profundidade da culpa, que na nossa religião associamos ao Diabo. Pelo menos na nossa religião como ela era encarada até à pouco tempo.
Rezamos pelas vítimas, e ao nosso Salvador que foi, por
definição, a vítima perfeita. Rezamos por vítimas muito menos perfeitas e, em
momentos em que confundimos a justiça com a misericórdia, rezamos pelas vítimas
porque achamos que é a coisa correcta a fazer. E todos os que rezaram, e rezam,
pela alma de George Floyd fazem bem.
Mas o mesmo se aplica a todos os que rezaram, e rezam, por Derek Chauvin. Na verdade, ele poderá precisar mais das nossas orações, embora não possamos saber isso ao certo, uma vez que isso deve ser deixado ao juízo daquele que escrutina corações mais profundamente do que nós conhecemos o nosso próprio.
Penso aqui em como a perda da doutrina cristã, a começar
com a doutrina do Pecado Original, nos debilitou.
Não é apenas o facto de não perdoarmos, é que cada vez
mais somos incapazes do perdão. Até podemos compreender que os seres humanos
são, em abstrato, capazes de males terríveis. Mas esquecemos que eu, enquanto
ser humano, sou capaz de mal terrível.
E esquecendo isto perdemos tudo o que foi conquistado, a grande
preço, através das gerações quando fomos cristianizados.
Podemos ver as consequências disto nas ruas; nas caras
dos manifestantes; ou nas caras daqueles que ficam enfurecidos pelos
manifestantes. É o que acontece quando a sociedade, no geral, perde a
capacidade de perdoar. Passo a passo tornamo-nos mais, e não menos, capazes de
actos monstruosos.
E pior, sentimo-nos bem com isso, como se tivesse sido
feita justiça (“karma”). Na ausência da misericórdia, da magnanimidade, do
perdão – as verdadeiras qualidades que ficam frequentemente para lá do alcance
das palavras – a distinção entre homicida e vítima desaparece. A alma humana é
reduzida a um fragmento no contexto de um malévolo “nós contra eles”.
Claro que a é preciso fazer-se justiça. Talvez alguns
polícias deviam ir para a forca, ou para onde o consenso liberal decidir. Mas
se procuramos apenas justiça, a justiça será a última coisa que alcançamos. E,
como os cristãos de ontem bem sabiam, a história não termina no cadafalso.
David Warren é o ex-director da revista Idler e é
cronista no Ottowa Citizen. Tem uma larga experiência no próximo e extreme
oriente. O seu blog pessoal chama-se Essays in Idelness.
(Publicado pela primeira vez na sexta-feira, 28 de Agosto
de 2020 em The Catholic Thing)
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