Wednesday, 26 August 2020

A Voz do Autor

Pe. Paul Scalia
Uma leitura superficial dos motins deste verão dir-nos-ia que se trata de uma rejeição da autoridade. Claro que se trata, sim, de uma rejeição de algum tipo de autoridade. Mas isso não significa que rejeitem a autoridade per se. Pelo contrário, os manifestantes são uma autoridade para consigo mesmos. Ninguém se atreve a divergir dos seus dogmas. A cultura “woke”, que despreza de tal forma as figuras tradicionais de autoridade, exerce uma autoridade muito mais severa e censória do que as instituições que rejeita. Amordaça a dissidência e excomunga os hereges muito mais rápida e absolutamente do que qualquer inquisição alguma vez fez.

Nada disto nos deve surpreender e, de certa forma, não os podemos culpar. A atitude autoritária anti-autoridade a que estamos a assistir é simplesmente uma distorção de algo que é um bem para os homens. A questão é que teremos de reconhecer alguma autoridade. Fomos criados para isso. Somos criados por e para o Autor da vida. Enquanto criaturas estamos programados para escutar e obedecer à voz do Criador, procurá-lo e à sua autoridade.

Infelizmente, devido à ferida profunda na nossa natureza humana, esta busca pelo Autor porta-se, por vezes, como um míssil errante, que se desvia louca e desastrosamente do seu alvo. Podemos remover Deus das nossas vidas, mas não podemos remover das nossas almas a tendência para a autoridade. Por isso, na nossa revolta contra o Autor da vida, em vez de nos libertarmos (como pensamos) submetemo-nos a falsas autoridades e contentamo-nos com falsidades: o estado, seitas, raça, ideologias, cientismo, etc. São ídolos que nós fazemos e que nos escravizam ao erro.

Na sua misericórdia, nosso Senhor entregou-nos da escravidão. Estabeleceu a sua Igreja para ser a voz do Autor no mundo.

Eu te digo, tu és Pedro,

e sobre esta rocha edificarei a minha igreja,

e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.

Eu te darei as chaves do reino do Céu.

O que ligares na terra será ligado no Céu;

e o que desligares na terra será desligado no Céu.

Estas são palavras solenes e autoritárias: E eu te digo. E são sobre autoridade: Eu te darei as chaves do reino do Céu. Aqui o Autor de todas as coisas estabelece a Igreja e confere-lhe a autoridade para ensinar a sua verdade de forma autêntica e sem erro. A Igreja torna-se, assim, a sua voz no mundo, o “Oráculo de Deus”, como lhe chamou o cardeal Newman. Esta autoridade da Igreja corresponde ao nosso desejo de uma voz clara. Pela nossa natureza procuramos o Autor, mas muito facilmente nos desviamos. Assim, Ele estabeleceu a Igreja para ser para nós a sua voz infalível, contra a qual as portas do inferno não prevalecerão.

Longe de ser uma imposição divina, então, a autoridade da Igreja dá-nos liberdade. Liberta-nos dessas autoridades falsas que escravizam. A sua voz diz agora, de facto, Não sigam essas falsas vozes que só conduzem à morte. Aqui está o Autor da vida que vos fala em verdade e autenticidade, para vos conduzir à vida.

É uma autoridade bem séria. Mas está ordenada para a nossa felicidade. E não é contradição nenhuma ver que tal autoridade – de ligar e de desligar – está intrinsecamente ligada à nossa felicidade. Como qualquer pessoa sabe, o jogo só começa com o apito inicial do árbitro e essa autoridade – de validar e de anular em campo – garante que o jogo seja divertido. Sem ela, as coisas começam rapidamente a desenvencilhar-se. Um jogador faz batota para ganhar, o outro pega na bola e leva-a para casa. A alegria dos filhos de Deus não é diferente: dependemos da voz do autor para defender o jogo.

 ideia de que podemos viver sem autoridade é uma coisa singularmente moderna. As grandes disputas na Igreja antiga não eram sobre a existência de autoridade, mas sobre quem a devia exercer. Hoje o mundo descarta a autoridade da Igreja, como faz com todas as outras. Isso não significa que as pessoas estão libertadas da autoridade, apenas que se passaram a sujeitar às versões contrafeitas.

No mundo antigo a autoridade da Igreja defendia a verdade de Nosso Senhor contra as grandes heresias cristológicas. No Século XVI defendeu a verdade da Igreja contra a revolta protestante.

Hoje a voz do Autor deve defender a prerrogativa mais básica de Deus: a Criação. O Papa emérito Bento XVI descreveu o nosso tempo como o “do pecado contra Deus o Criador”. No centro disto encontra-se a ideologia transgénero, a rejeição da natureza humana, que ao mesmo tempo que descarta a autoridade da Criação condena todos os que questionam a sua própria autoridade.

“O que muitas vezes se expressa e se compreende com o termo ‘género’ acaba por ser a tentativa do homem de se emancipar da criação e do Criador. O Homem quer ser o seu próprio mestre, e determinar sozinho – sempre e exclusivamente – tudo o que lhe diz respeito. Porém, desta forma vive em oposição à verdade, em oposição ao Espírito Criador.”

(Bento XVI, 2008)

No início é uma liberdade intoxicante, a de sermos os nossos próprios criadores, nossos próprios deuses. Mas rapidamente cansa. Sermos autoridade para nós mesmos é demais para nós. As coisas, tais como são, acabarão por se desenvencilhar.

O Concílio Vaticano II fez uma observação maravilhosa: “Sem o Criador, a criatura desaparece”. (GS 36; cf. CCC 49). Vemos agora que isso também funciona no sentido contrário: ao negar a nossa natureza de criaturas, o Criador desaparece de vista.

Mais razão ainda para rezar para que a voz infalível do Autor se torne mais clara e mais forte, para defender a verdade do Criador e da criação. Pois “quando Deus é negado, a dignidade humana também desaparece. Quem defende Deus defende o homem” (Bento XVI, 2012).

 

O Pe. Paul Scalia (filho do falecido juiz Antonin Scalia, do Supremo Tribunal americano) é sacerdote na diocese de Arlington e é o delegado do bispo para o clero. 

(Publicado pela primeira vez no domingo, 23 de Agosto de 2020 em The Catholic Thing

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