E. Christian Brugger |
Pergunta: A minha amiga enfermeira
diz que os órgãos principais não podem ser doados a não ser que o dador esteja
vivo, logo administra-se anestesia na altura em que são retirados. Se isto for
correto, então o ato de recolher os órgãos provocaria a morte do dador, certo?
Isto não é uma forma de eutanásia? Eu disse-lhe que a Igreja jamais aprovaria
isto. Contudo, sempre ouvi dizer que a Igreja não só aprova como elogia a
doação de órgãos. Podem esclarecer este assunto?
Se por órgãos principais a sua amiga quer dizer órgãos
vitais, então o que ela diz é ambíguo. Os órgãos vitais são aqueles de que
precisamos para permanecer vivos (como coração, um par de rins, um par de pulmões,
fígado e cólon). A regra nos Estados Unidos, e na maioria dos outros países do
mundo é o “dead donor rule” (DDR). Isto significa, ou pelo menos devia
significar, que os órgãos vitais apenas podem ser recolhidos de dadores já
mortos. Embora a oposição ao DDR tenha estado a crescer há mais de uma década
(ver 1, 2, 3,4), a regra continua a prevalecer de forma universal na
medicina de transplante.
O ensino moral católico sobre doação de órgãos também
afirma o DDR (ver o Catecismo da Igreja Católica, #2296, 2301; Os parágrafos
15, 86 do Evangelium Vitae de João Paulo II e Ethical and Religious
Directives for Health Care Services, 6thEd., 2018, nos. 29, 30, 62-64).
Ensina ainda que, como você diz, e bem, a doação de
órgãos pode ser uma coisa boa. De facto, João Paulo II ensinou que, quando
feito de forma eticamente aceitável, é um exemplo de “heroísmo do dia-a-dia”.
Logo, para melhor compreender a posição da Igreja é
importante perceber bem o que significa “forma eticamente aceitável”.
Uma vez que a doação de órgãos vitais levaria alguém a
sacrificar ou a prejudicar seriamente as funções corporais necessárias para a
vida ou para uma saúde estável – isto é, põe em causa aquilo a que a teologia
moral se refere como integridade funcional – não seria moralmente
lícito, uma vez que ao escolhê-lo estaríamos a violar o dever que temos de
cuidar da nossa própria vida corporal.
Mas também seria errado se prevíssemos que a doação de um
órgão não-vital nos poderia levar a falhar em relação a um dever pré-existente.
Por exemplo, se temos ao nosso cuidado uma criança deficiente e a doação de um
órgão (como um único pulmão, por exemplo) tornaria essa tarefa mais difícil ou
mesmo impossível, então não devemos doar o órgão a não ser que tenhamos a
certeza moral de que a criança possa ser cuidada por outros. O contrário seria
injusto para a criança.
Também seria moralmente condenável a doação de órgãos
para transplante que envolvam o estabelecimento ou a transmissão de identidade
pessoal (por exemplo, ovários, testículos ou cérebro); tal como é a doação por
motivos moralmente triviais (por exemplo, a minha namorada sempre quis ter um
olho azul, e eu tenho dois); por fim, a doação é inaceitável sem o
consentimento livre do dador ou de um seu representante, ou caso existam formas
acessíveis e menos prejudiciais (como o uso de órgãos bovinos) ou se a doação é
motivada por recompensa económica. Em todas estas situações seria errado optar
por doar órgãos.
No que diz respeito a dadores mortos, à partida qualquer
órgão, incluindo órgãos que outrora eram vitais, pode ser recolhido, desde que
se cumpram três condições: 1) se certifique que o dador está morto; isto deve
ser feito por clínicos competentes, de acordo com critérios científicos
responsáveis e aceites. Para evitar qualquer conflito de interesse, os médicos
que determinam a morte não devem integrar as equipas de transplantes
correspondentes. 2) o dador, ou um seu representante, devem dar o seu
consentimento livre; e 3) a intenção por detrás da recolha dos órgãos deve ser
boa (por exemplo, não se deve ter por objectivo o transplante de órgãos
envolvidos na transmissão de identidade pessoal).
A questão da morte cerebral
Disse atrás que a doação de órgãos nos Estados Unidos é
governada pelo DDR, e que quase todos concordam com este princípio.
Mas os comentários da sua amiga levantam uma questão
importante no debate bioético, que está actualmente a ser debatido seriamente
por especialistas cristãos.
A questão passa por determinar se indivíduos em morte
cerebral, ventilados artificialmente, estão de facto mortos. Será que a morte
neurológica é uma definição adequada da morte humana?
Para que os órgãos possam ser transplantados precisam de
ser mantidos até ao momento em que são removidos. Logo, os corpos em morte
cerebral são mantidos ligados a máquinas de respiração mecânica (ventiladores)
que garantem que o sangue oxigenado chegue aos órgãos até que a equipa de
transplante esteja pronta.
Durante anos ninguém questionou seriamente se corpos em
morte cerebral podiam ser seres humanos vivos, partiam do princípio que sem o
cérebro a funcionar, o corpo não conseguia sobreviver.
Mas em 2001 o chefe de neurologia do Centro Médico de
UCLA, Alan Shewmon, um católico devoto, publicou investigação
alarmante sobre corpos em morte cerebral ventilados. Ele demonstrou, de forma
conclusiva, que há casos em que estes corpos são capazes de respirar (sem o
auxílio de ventilação), mas de assimilar nutrição, sarar feridas, combater
infeções responder ao stress, manter a homeostasia, crescer de forma
proporcional e até gerar nascituros. Por outras palavras, comportavam-se tal
como outros corpos humanos.
Se aceitarmos a antropologia cristã mais básica, onde
existe um corpo humano vivo, existe uma pessoa, por mais incapacitada que possa
estar.
A investigação de Shewmon levou-o a concluir – e com ele
vários notáveis cientistas e filósofos, incluindo católicos como Josef Seifart
e Nicanor Austriaco – que alguns corpos em morte cerebral são seres humanos
vivos que, erradamente dados como falecidos, são de facto mortos quando os seus
órgãos são recolhidos para transplante.
Com base nisto a minha conclusão é de que as
provas levantam pelo menos sérias dúvidas e de que, perante tais dúvidas, temos
obrigação moral de os tratar como se estivessem vivos, a não ser que as
dúvidas sejam dissipadas.
Em breve realiza-se em Roma uma conferência patrocinada
pela Academia João Paulo II para a Vida Humana e Família, precisamente sobre
esta questão e Shewmon será um dos oradores.
Há centros e especialistas em bioética importantes nos
Estados Unidos que discordam das conclusões de Shewmon. Infelizmente, contudo,
alguns deles insistem que os que levantam dúvidas sérias sobre os critérios
neurológicos são maus católicos. Baseiam-se no facto de João Paulo II ter dito,
num discurso
no ano 2000 que: “a cessação total e irreversível de
toda a actividade encefálica, se for aplicado de maneira escrupulosa, não
parece contrastar os elementos essenciais duma sólida antropologia.”
Mas se, à luz de novas provas empíricas, questionamos um
juízo provisório de um Papa, sobretudo quando esse juízo foi feito numa esfera
– como é a medicina – sobre a qual ele não tem qualquer autoridade divinamente
mandatada, isso não é certamente um ato de infidelidade.
E.
Christian Brugger é professor de Teologia Moral no Seminário Regional de St.
Vincent, na Flórida, onde vive com a sua mulher e cinco filhos. Foi
reitor da Escola de Filosofia e Teologia da Universidade de Notre Dame
Austrália, em Sidnei e é consultor teológico para a comissão de doutrina da
Conferência Episcopal dos Estados Unidos. É autor do livro “TheIndissolubility of Marriage and the Council of Trent”.
(Publicado pela primeira vez na terça-feira, 7 de Maio
de 2019 em The Catholic Thing)
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