Wednesday 15 May 2019

Doação de Órgãos e Morte Cerebral

E. Christian Brugger
Nota: Recebemos de um leitor a seguinte pergunta, que nos pareceu merecer uma resposta cuidadosa por parte de um especialista em bioética.

Pergunta: A minha amiga enfermeira diz que os órgãos principais não podem ser doados a não ser que o dador esteja vivo, logo administra-se anestesia na altura em que são retirados. Se isto for correto, então o ato de recolher os órgãos provocaria a morte do dador, certo? Isto não é uma forma de eutanásia? Eu disse-lhe que a Igreja jamais aprovaria isto. Contudo, sempre ouvi dizer que a Igreja não só aprova como elogia a doação de órgãos. Podem esclarecer este assunto?

Se por órgãos principais a sua amiga quer dizer órgãos vitais, então o que ela diz é ambíguo. Os órgãos vitais são aqueles de que precisamos para permanecer vivos (como coração, um par de rins, um par de pulmões, fígado e cólon). A regra nos Estados Unidos, e na maioria dos outros países do mundo é o “dead donor rule” (DDR). Isto significa, ou pelo menos devia significar, que os órgãos vitais apenas podem ser recolhidos de dadores já mortos. Embora a oposição ao DDR tenha estado a crescer há mais de uma década (ver 123,4), a regra continua a prevalecer de forma universal na medicina de transplante.

O ensino moral católico sobre doação de órgãos também afirma o DDR (ver o Catecismo da Igreja Católica, #2296, 2301; Os parágrafos 15, 86 do Evangelium Vitae de João Paulo II e Ethical and Religious Directives for Health Care Services, 6thEd., 2018, nos. 29, 30, 62-64).

Ensina ainda que, como você diz, e bem, a doação de órgãos pode ser uma coisa boa. De facto, João Paulo II ensinou que, quando feito de forma eticamente aceitável, é um exemplo de “heroísmo do dia-a-dia”.

Logo, para melhor compreender a posição da Igreja é importante perceber bem o que significa “forma eticamente aceitável”.

Uma vez que a doação de órgãos vitais levaria alguém a sacrificar ou a prejudicar seriamente as funções corporais necessárias para a vida ou para uma saúde estável – isto é, põe em causa aquilo a que a teologia moral se refere como integridade funcional – não seria moralmente lícito, uma vez que ao escolhê-lo estaríamos a violar o dever que temos de cuidar da nossa própria vida corporal.

Mas também seria errado se prevíssemos que a doação de um órgão não-vital nos poderia levar a falhar em relação a um dever pré-existente. Por exemplo, se temos ao nosso cuidado uma criança deficiente e a doação de um órgão (como um único pulmão, por exemplo) tornaria essa tarefa mais difícil ou mesmo impossível, então não devemos doar o órgão a não ser que tenhamos a certeza moral de que a criança possa ser cuidada por outros. O contrário seria injusto para a criança.

Também seria moralmente condenável a doação de órgãos para transplante que envolvam o estabelecimento ou a transmissão de identidade pessoal (por exemplo, ovários, testículos ou cérebro); tal como é a doação por motivos moralmente triviais (por exemplo, a minha namorada sempre quis ter um olho azul, e eu tenho dois); por fim, a doação é inaceitável sem o consentimento livre do dador ou de um seu representante, ou caso existam formas acessíveis e menos prejudiciais (como o uso de órgãos bovinos) ou se a doação é motivada por recompensa económica. Em todas estas situações seria errado optar por doar órgãos.

No que diz respeito a dadores mortos, à partida qualquer órgão, incluindo órgãos que outrora eram vitais, pode ser recolhido, desde que se cumpram três condições: 1) se certifique que o dador está morto; isto deve ser feito por clínicos competentes, de acordo com critérios científicos responsáveis e aceites. Para evitar qualquer conflito de interesse, os médicos que determinam a morte não devem integrar as equipas de transplantes correspondentes. 2) o dador, ou um seu representante, devem dar o seu consentimento livre; e 3) a intenção por detrás da recolha dos órgãos deve ser boa (por exemplo, não se deve ter por objectivo o transplante de órgãos envolvidos na transmissão de identidade pessoal).

A questão da morte cerebral
Disse atrás que a doação de órgãos nos Estados Unidos é governada pelo DDR, e que quase todos concordam com este princípio.

Mas os comentários da sua amiga levantam uma questão importante no debate bioético, que está actualmente a ser debatido seriamente por especialistas cristãos.

A questão passa por determinar se indivíduos em morte cerebral, ventilados artificialmente, estão de facto mortos. Será que a morte neurológica é uma definição adequada da morte humana?

Para que os órgãos possam ser transplantados precisam de ser mantidos até ao momento em que são removidos. Logo, os corpos em morte cerebral são mantidos ligados a máquinas de respiração mecânica (ventiladores) que garantem que o sangue oxigenado chegue aos órgãos até que a equipa de transplante esteja pronta.

Durante anos ninguém questionou seriamente se corpos em morte cerebral podiam ser seres humanos vivos, partiam do princípio que sem o cérebro a funcionar, o corpo não conseguia sobreviver.

Mas em 2001 o chefe de neurologia do Centro Médico de UCLA, Alan Shewmon, um católico devoto, publicou investigação alarmante sobre corpos em morte cerebral ventilados. Ele demonstrou, de forma conclusiva, que há casos em que estes corpos são capazes de respirar (sem o auxílio de ventilação), mas de assimilar nutrição, sarar feridas, combater infeções responder ao stress, manter a homeostasia, crescer de forma proporcional e até gerar nascituros. Por outras palavras, comportavam-se tal como outros corpos humanos. 

Se aceitarmos a antropologia cristã mais básica, onde existe um corpo humano vivo, existe uma pessoa, por mais incapacitada que possa estar.

A investigação de Shewmon levou-o a concluir – e com ele vários notáveis cientistas e filósofos, incluindo católicos como Josef Seifart e Nicanor Austriaco – que alguns corpos em morte cerebral são seres humanos vivos que, erradamente dados como falecidos, são de facto mortos quando os seus órgãos são recolhidos para transplante. 

Com base nisto a minha conclusão é de que as provas levantam pelo menos sérias dúvidas e de que, perante tais dúvidas, temos obrigação moral de os tratar como se estivessem vivos, a não ser que as dúvidas sejam dissipadas.

Em breve realiza-se em Roma uma conferência patrocinada pela Academia João Paulo II para a Vida Humana e Família, precisamente sobre esta questão e Shewmon será um dos oradores.

Há centros e especialistas em bioética importantes nos Estados Unidos que discordam das conclusões de Shewmon. Infelizmente, contudo, alguns deles insistem que os que levantam dúvidas sérias sobre os critérios neurológicos são maus católicos. Baseiam-se no facto de João Paulo II ter dito, num discurso no ano 2000 que: “a cessação total irreversível de toda a actividade encefálica, se for aplicado de maneira escrupulosa, não parece contrastar os elementos essenciais duma sólida antropologia.”

Mas se, à luz de novas provas empíricas, questionamos um juízo provisório de um Papa, sobretudo quando esse juízo foi feito numa esfera – como é a medicina – sobre a qual ele não tem qualquer autoridade divinamente mandatada, isso não é certamente um ato de infidelidade.


E. Christian Brugger é professor de Teologia Moral no Seminário Regional de St. Vincent, na Flórida, onde vive com a sua mulher e cinco filhos. Foi reitor da Escola de Filosofia e Teologia da Universidade de Notre Dame Austrália, em Sidnei e é consultor teológico para a comissão de doutrina da Conferência Episcopal dos Estados Unidos. É autor do livro “TheIndissolubility of Marriage and the Council of Trent”.

(Publicado pela primeira vez na terça-feira, 7 de Maio de 2019 em The Catholic Thing)

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