Qual dos dois foi concebido por violação? |
Argumenta o Henrique que embora seja contra o aborto e a
sua legalização, acha indispensável que haja exceções para casos de violação e
de incesto, invocando para isto a noção de legítima defesa.
Gosto de ler os artigos do Henrique e penso que não estou
só em admirar a forma honesta como ele tem descrito a caminhada religiosa e
ideológica que tem feito ao longo dos últimos anos. Mas neste caso penso que
comete alguns erros básicos de raciocínio, que devem ser confrontados.
Para começar, a analogia é muito fraca. Permitir o aborto
por “legítima defesa” apenas faria sentido se considerássemos que o feto gerado
é um agressor. Sem dúvida que existe um agressor em todos os casos de violação,
e na maior parte dos casos de incesto, mas não é o bebé.
A questão do aborto é fraturante, e as discussões sobre
ele tendem a tornar-se conversas de surdos. Mas na verdade o assunto é muito
mais simples do que muitas vezes pensamos. O nascituro ou é um ser humano com
dignidade e direitos, ou não é. Se acreditamos que é – e parece-me que o
Henrique assim pensa – então basta pensarmos se o que propomos faria sentido se
ele já fosse nascido. O Henrique aceitaria que uma mãe matasse, ou mandasse
matar o seu filho recém-nascido, ou de dois anos, por ser parecido com o pai,
violador? Claro que não.
Se, pelo contrário, acreditamos que o feto não é
merecedor de qualquer direito e não tem dignidade humana, então é descartável.
A discussão centra-se então na ideia de quando é que o
feto se torna um ser humano, com todos os direitos e dignidade inerentes. Sobre
isso compreendo que existam posições diferentes, embora o defensor do aborto
encontra-se na situação difícil de mostrar então precisamente quando é que se
dá essa transformação mística. Por mais que não o queiram admitir, a
embriologia e a lógica estão solidamente do lado dos pró-vida neste aspeto.
Logo, o aborto ou é uma coisa aceitável – nem se devia
falar em mal-menor – ou não é. Qualquer posição intermédia, como dizer que é
aceitável em casos em que o feto é deficiente, mas não quando é saudável; ou
que é aceitável em casos de violação, mas não quando o bebé é desejado pode satisfazer a nossa vontade de não ofender sensibilidades, mas não têm ponta por
onde se pegue em termos lógicos.
Neste sentido, a lei do Alabama é perfeitamente
compreensível e os argumentos de Henrique Raposo não convencem quem pensa que a
vida intrauterina tem tanto valor às 10 semanas como às 40, ou como aos quatro
anos ou aos 18, seja quem for o progenitor, seja qual for a condição em que foi
gerado. Não se trata de falta de sensibilidade pelo drama vivido pela mulher
que, certamente, merece toda a nossa compaixão e ajuda. Posso, até, dizer que compreendo
que uma mulher nessa situação aborte, ou queira abortar, sem ter de ceder que
do ponto de vista racional não o devia fazer nem a sociedade tem a obrigação de
a ajudar nesse propósito.
Desafio ao Supremo
Tribunal
Já outra questão é a oportunidade política da lei do
Alabama. Aqui devemos compreender que esta lei é um balão de ensaio. Vai
inevitavelmente chegar ao Supremo Tribunal, criando assim a oportunidade de os
juízes, agora com maioria conservadora, reverterem o famoso “Roe v. Wade” que
na prática legalizou o aborto nos Estados Unidos a nível federal, podendo levar
à proibição do aborto em muitos outros Estados americanos. A lei só entrará em
efeito depois de passar esse obstáculo, e não é de todo certo que passe.
O problema é que estes tiros podem sair pela culatra. Já
estamos a ver vários Estados a liberalizar as suas leis ao ponto do absurdo e
esta semana a Câmara dos Representantes voltou a rejeitar, pela 49ª vez, uma
lei que obrigaria um médico a fazer tudo para salvar a vida de um bebé que
nasça vivo após uma tentativa de aborto.
Tendo em conta o estado de divisão que existe atualmente
entre republicanos e democratas sobre esta questão, o tempo dirá se esta lei do
Alabama faz mais bem do que mal.
Filipe d'Avillez
Filipe d'Avillez
Muito bom Filipe. Bom texto. Eu sou pró-escolha, o que é diferente de ser pró-aborto, pois acredito que as mulheres devem ser livres para decidir o que fazer com o seu próprio corpo, não lhes devendo ser imposto nenhum dever quer legal quer moral sobre a vida que carregam dentro de si, não devendo ser instrumentalizadas nesse sentido, mas tenho que concordar com a tua argumentação para quem é pró-vida e contra o aborto. Bom texto.
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