James V. Schall S.J. |
A misericórdia é uma questão secundária. Não é necessária
a não ser que algo corra mal no mundo. Cristo veio para os pecadores, não para
os justos (Lc. 5,32). Num mundo impecável, ninguém precisa de misericórdia. Mas
o nosso mundo não é impecável, por mais que neguemos, em privado ou em público,
que certos pecados são pecados.
Antes de haver quem precisasse de ser perdoado, São Tomás
de Aquino já tinha defendido que o Universo foi criado num acto de
misericórdia, não de justiça. Deus não precisava de criar nada. A criação não
aconteceu porque Deus “devia” algo a alguém por uma questão de justiça. Ao
criar criaturas livres, Deus compreendia bem que estas poderiam precisar de
misericórdia para além de justiça. Sabendo-o, prosseguiu com o seu plano.
A misericórdia não se “opõe” à justiça, como se diluísse
a justiça de Deus e do homem. Não é preciso escolher entre misericórdia e
justiça, podemos ter as duas coisas. A misericórdia só entra em acção quando a
justiça é vingada.
No Evangelho de São João (20,23), os discípulos recebem o
Espírito Santo. Depois é-lhes dito: “Aqueles a quem perdoardes os pecados
ser-lhes-ão perdoados; aqueles aos quais retiverdes ser-lhes-ão retidos.”
Ouvimos falar muito da primeira parte dessa frase, mas pouco da segunda. “A
quem os retiverdes”.
Do ponto de vista da lógica, há coisas que são evidentes.
As coisas que não são pecado não precisam de ser perdoadas. A maior parte das
coisas que fazemos não são “pecados”. Mesmo para quem nega que o pecado existe
(e ao que parece existem tais pessoas), a lógica parece evidente. Algumas das
coisas que fazemos, ou pensamos, são pecados; outras não. É-nos possível
identificar tanto o que é pecado como se decidimos agir sobre ele. Se alguém
pensa que escovar os dentes de manhã é pecado então não precisa de perdão, mas
sim de informação, embora mesmo uma consciência desinformada seja vinculativa.
Como vemos, o poder de perdoar pecados está ligado à
retenção dos pecados. Quais devem ser perdoados? Quais retidos? Um confessor
não tem a liberdade de perdoar aquilo que deve ser retido. Por outras palavras,
quais são os princípios que guiam a retenção dos pecados?
Parece-me que os Evangelhos não deixam espaço para dúvida
de que alguns pecados devem ser “retidos”. Com o devido respeito para com as
teorias que defendem que o inferno está vazio e que todos são salvos, parece-me
que, caso sejam verdade, então ninguém precisa de se preocupar com os pecados,
pois serão perdoados em todo o caso. Mas isto não é possível. Se não houver
qualquer acto da nossa parte que indique que sabemos o que é um pecado e que o
cometemos, então não podemos estar no ramo do perdão.
O perdão exige algo que se possa perdoar e alguma
indicação de que queremos ser perdoados. Reconhecemos que com o nosso pecado
destruímos a ordem da bondade. No que me diz respeito, não quero nada com um
Deus que se limita a “perdoar” sem fazer perguntas, sem qualquer exigência.
Que pecados são “retidos”? Só aqueles que não
apresentamos, juntamente com a nossa participação na sua realização, para serem
julgados. O acto de “retenção” cabe ao mesmo a quem é dado o poder de perdoar.
Os fundamentos podem ser vários – negar que os pecados são pecados, negar que
sabíamos o que estávamos a fazer, negar que existe o poder de perdoar ou reter
os pecados.
A “retenção” é um acto tão solene quanto o perdão, talvez
até mais. Se aqueles que são responsáveis pelo perdão e pela retenção
esconderem ou obliterarem a diferença entre os dois, para que tudo seja
perdoado, independentemente das circunstâncias, então a própria delegação de
Jesus esvazia-se de sentido. A retenção dos pecados significa que não são
perdoados.
Paradoxalmente, essa retenção é um acto de misericórdia.
É a misericórdia da verdade que vai ao encontro do pecador. Fica a saber que
não está de bem com Deus e consigo mesmo. Só sabendo a verdade sobre si mesmo é
que se apercebe que precisa de reconhecer e arrepender-se.
Chamar o pecado pelo nome é simultaneamente um acto de
coragem, justiça e misericórdia.
James V. Schall, S.J., foi professor na Universidade de
Georgetown durante mais de 35 anos e é um dos autores católicos mais prolíficos
da América. O seus mais
recentes livros são The Mind That
Is Catholic, The Modern Age, Political
Philosophy and Revelation: A Catholic Reading, e Reasonable
Pleasures
(Publicado pela primeira vez na Terça-feira, 5 de Julho
de 2016 em The Catholic Thing)
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