Acabei de ler a “História da Igreja Católica” de James
Hitchcock, o que me levou a reflectir sobre alguns desenvolvimentos históricos
que nos podem dar que pensar hoje em dia, sobretudo em três áreas específicas:
1. Desenvolvimentos Litúrgicos
No que diz respeito à Missa, o latim tornou-se a língua
litúrgica em vez do grego no terceiro século, por ser o vernáculo. O “beijo da
paz” era um costume pagão que foi gradualmente incorporado na liturgia. A
comunhão na mão prevaleceu até ao século nono, altura em que se formulou a
doutrina da presença real e a comunhão na boca tornou-se a respectiva afirmação
doutrinal, (hereges como Ratramnus atacaram a ideia). Durante a Idade Média,
sob influência do clero franco, as genuflexões, o sinal da cruz e outros gestos
tornaram-se lugares-comuns litúrgicos. A comunhão era pouco frequente. O
Concílio de Trento viria a encorajar a comunhão frequente, mas aquilo em que os
padres conciliares estavam a pensar era comunhão semanal para seminaristas e
comunhão mensal para freiras. Foi Pio X, no século XX, quem abriu a porta para
aquilo que hoje compreendemos como “comunhão frequente”.
Enquanto académico de línguas clássicas, tendo estudado
grego e latim no liceu e na universidade, tendo ensinado latim em África e na
Califórnia e memorizado grande parte da missa em latim, fiquei de rastos quando
se começou a celebrar o Novus Ordo em inglês. Graças às maravilhas da
tecnologia Android, agora consigo ler partes do ofício divino em latim no meu
Smartphone. Mas ainda não sei de cor o Glória nem o Credo em inglês. Seja como
for, a missa não é sobre mim! Não se pode voltar atrás: a nossa é uma Igreja de
muitos ritos – romano, bizantino, alexandrino, siríaco, arménio, maronita,
caldeu… - com uma variedade de línguas – grego, sírio, árabe, russo, eslovaco,
etc. A missa nos países de língua inglesa continuará a ser em inglês, com
pequenos bolsos aqui e ali para quem ama a forma “extraordinária”. Ainda há
padres fluentes em latim? Se não, será que têm tempo para aprender?
Mas a prática de celebrar a missa “versus populum”, de
frente para a congregação, em vez de “ad orientem”, de frente para o altar, é
um problema. Se há esperança para o diálogo ecuménico com os ortodoxos, esta
prática, bem como a primazia do Papa, é um obstáculo gritante. A arquitectura
das igrejas católicas de rito latino mudou significativamente desde o Vaticano
II, com uma mesa próxima da congregação, ao estilo protestante, em vez de
enfatizar o altar em frente, onde o padre continua a renovar o mistério do
sacrifício de Cristo na Cruz.
Temos de perguntar: quais são as nossas prioridades ecuménicas?
Queremos investir na união com os protestantes, que se sentem confortáveis numa
igreja com uma mesa para a “Ceia do Senhor”? O senso comum deve levar-nos a dar
prioridade aos ortodoxos, que são “igrejas irmãs” com sucessão apostólica
válida e perpetuam de forma reverente o sacrifício da missa.
Entretanto, continuando a assistir a missas “Novus Ordo”,
ficaria razoavelmente satisfeito se os padres apresentassem claramente a missa
como um sacrifício em vez de uma refeição comunitária, deixassem de usar termos
neutros para substituir os masculinos no Evangelho e no missal e deixassem de
atravessar toda a Igreja para socializar na altura da comunhão.
2. Escândalos na Igreja
Jesus avisou os seus discípulos de antemão: “Ai do mundo,
por causa dos escândalos; porque é mister que venham escândalos, mas ai daquele
homem por quem o escândalo vem!” (Mt. 18,7). Os séculos IX e X foram o auge dos
escândalos, tanto na Igreja como na política. Carlos Magno casou-se cinco
vezes, teve seis concubinas e forçou as filhas a ter filhos fora do casamento,
para evitar problemas com genros sedentes de poder. O Papa Estêvão VI exumou o
cadáver do seu antecessor, o Papa Formoso, para o profanar publicamente por
causa de desentendimentos sobre direito canónico, mas ele também acabou preso e
estrangulado até à morte.
No século XI Bento IX tornou-se Papa através de subornos,
mas acabou por resignar, na condição de ser reembolsado. No século XV o Papa
Sexto mandou dois padres assassinar alguns Medicis que representavam obstáculos
a alianças estratégicas que tinha em mente; e o Papa Alexandre VI, depois de
uma feroz campanha para se tornar Papa, viria a ser um dos pontífices mais
infames. Pio II, o único Papa a escrever uma autobiografia, também era
conhecido por escrever obras pornográficas antes de ter conseguido alcançar o
pontificado através de esquemas ambiciosos.
Contudo, as reformas proliferaram juntamente com os escândalos.
No século XII, Pedro Abelardo, famoso pelos encontros com Heloísa, acabou por
se tornar um director espiritual e um abade reformador, a tal ponto que os seus
monges o tentaram envenenar, enquanto Heloísa se tornou abadessa de uma
comunidade de freiras. No século XIV, Santa Catarina de Sena, que não deixava
de melgar os papas desnorteados, dedicou o capítulo 124 dos seus famosos
diálogos à necessidade de obliterar o escândalo dos padres sodomitas para se
poder reformar a igreja. No século XVI o Papa Paulo III, cuja carreira foi
auxiliada pelo facto de a sua irmã ter sido amante de Alexandre VI, deixou para
trás uma vida de escândalos para se tornar um Papa reformista. E no século XVII
a grande reforma trapista da ordem cisterciense foi conseguida por Armand-Jean
de Rancé, depois da morte da sua amante.
No século XX, para além do escândalo de padres e freiras
a abandonar os seus ministérios, o maior escândalo tem sido o dos abusos
sexuais, incluindo pedofilia, por padres em boa conta, bem como o encobrimento
e as “transferências”. Mas enquanto recuperávamos deste pesadelo tivemos dois
grandes e santos papas, bem como uma reforma gradual e bem-sucedida numa área
de disciplina interna da Igreja que costumava passar-se só atrás de portas
fechadas, mas agora se tornou mais transparente.
E agora, perante desafios abertos à liberdade religiosa
por parte dos governos, é possível que vejamos os bispos e outros líderes
religiosos a chegarem-se à frente e a fechar serviços, como agências de
adopção, em vez de ceder à pressão de servir “casais” homossexuais ou fechar
hospitais em vez de sucumbir às exigências de financiar contraceptivos nos
seguros. A “reforma”, nestes casos, poderá exigir atitudes verdadeiramente heroicas.
3. Concílios
Temos assistido a críticas incessantes ao Concílio
Vaticano II por não ter clarificado nem fortalecido a posição da Igreja no mundo
e de, pelo contrário, ter levado a uma fuga de fiéis. Mas como Hitchcock faz
questão de sublinhar, historicamente os concílios nunca resolveram os problemas
da época em que foram convocados. Pelo contrário, em muitos casos ajudaram a
intensificá-los. O Concílio de Nicéia (325), que tinha como objectivo
clarificar questões sobre a divindade de Cristo, acabou por gerar ambiguidades
sobre a sua “consubstancialidade” com o Pai. O Concílio de Calcedónia (451) não
resolveu o problema da relação de estatuto entre as sés de Roma e de
Constantinopla.
O Concílio de Trento (1545-63) foi recheado de divisões
políticas. Boicotado pelos bispos franceses, teve a oposição de Paulo IV mas
foi retomado por Pio IV, embora sujeito a relações tempestuosas entre facções
nacionais e doutrinais. Os objectivos contra-reformistas de resolver as
questões da justificação e da relação entre a graça e o livre arbítrio foram em
larga medida falhados e a missa no vernáculo foi proibida, apesar de o latim
ter alcançado a primazia precisamente por ser o vernáculo.
Igualmente, o Vaticano I (1869-70) enfrentou oposição
episcopal considerável à declaração de infalibilidade papal. Um dos problemas
era que, historicamente, dois papas tinham estado perto de heresias. Honório,
no século VII aceitou o monoteletismo e o Papa João XXII, no século XIV
defendeu, por um período, a doutrina de “alma adormecida” após a morte, antes
do juízo final. Foi por isso que se incorporou a condição de se falar “ex
cathedra” na declaração, para diminuir a probabilidade de pronunciamentos
heterodoxos.
Por isso o Vaticano II, por mais falhas que tenha tido, não
foi caso único. As divisões políticas eram imensas. Os principais agentes no
Concílio foram principalmente teólogos, muitos dos quais do género “progressista”,
e os bispos e os cardeais tendiam a dar lugar a esses “peritos”, como explica
Hitchcock:
Juntamente com
Schillebeeckx, Haering e, em menor escala, Rahner, o padre e teólogo
germano-suíço Hans Küng tornou-se o mais apaixonado e audaz porta-voz do
aggiornamento, exigindo que a Igreja se acomodasse a uma cultura em mudança,
enquanto Lubac, Danielou, Maritain, Balthasar, Bouyer, Ratzinger e outros
protestavam o que consideravam ser distorções do concílio.
Um dos principais pontos de viragem do Vaticano II teve
lugar quando a Comissão Teológica, presidida pelo Cardeal Ottaviani, foi
ultrapassada pela berma pelo recém-criado Secretariado para a Promoção da
Unidade dos Cristãos, presidido pelo Cardeal Bea. Este secretariado era
idealista em relação à possibilidade de se restaurar a unidade e pragmática
quanto aos métodos, que incluíam gestos diplomáticos para com os soviéticos e
os representantes ortodoxos que simpatizavam com os soviéticos.
Vários dos “schemata” foram submetidos a critérios ecuménicos.
Assim, os progressistas conseguiram descarrilar os esforços para enfatizar a
Virgem Maria como Mediadora de todas as Graças e co-redentora, uma vez que isso
era visto como um obstáculo à unidade co os protestantes. Os braços do
secretariado chegavam mesmo bem mais longe que o Cristianismo, em direcção ao
Islão, visto como uma religião “abraâmica” que adorava “o Deus único e
misericordioso”. (Tanto quanto sei nem um dos peritos que escreveu a
Constituição Dogmática Lumen Gentium era um estudante sério da doutrina,
prática e história do Islão.)
Apesar destes exageros e talvez algumas ambiguidades noutros
documentos, (o concílio não emitiu leis ou declarações definitivas sobre
questões de fé e de moral), o Vaticano II não produziu nada de claramente herético.
Os progressistas avançaram com propostas que tresandavam a heresia, como o
conciliarismo, modernismo, a primazia da colegialidade episcopal, compromissos
com a liberdade religiosa, etc. Mas a organização tardia de “conservadores”
como como os cardeais Ottaviani, Siri, Ruffini e o arcebispo Lefebvre, entre
outros, bem como as suas intervenções nas conferências, ajudaram a modificar
estas iniciativas e a colocar os debates novamente em linha com a tradição e os
anteriores concílios.
Aqueles que apontam para o Vaticano II como o princípio
de uma espiral de declínio para o Catolicismo não têm em conta que o Concílio
teve lugar mesmo durante a revolução sexual dos anos 60. Enquanto o Concílio
começava, em 1962, a pílula contraceptiva estava no mercado há dois anos e
esperava-se que um dos resultados deste concílio “pastoral” fosse a aprovação
de pelo menos esta forma de contracepção. Quando isto não aconteceu e quando a
encíclica Humanae Vitae (1968), de Paulo VI, enfrentou a rejeição ou a
indiferença esmagadora de muitos bispos e teólogos, isso conduziu a uma crise
de autoridade, que se mantém. O feminismo militante e o ataque a todas as
formas de “patriarquia” também foram um factor muito importante.
Será que o Vaticano II conseguiu “abrir as janelas para
deixar entrar ar fresco”, como o Papa João XXIII esperava? De certa maneira,
sim. No Vaticano I, por exemplo, não havia cardeais da Ásia nem de África. No
Vaticano II, contudo, os cardeais africanos, asiáticos e da América Latina
estavam bem representados. Foi sem dúvida mais “ecuménico” no sentido de abrir
a Igreja ao mundo. Aliás, Hitchcock apresenta uma estatística interessante, que
em 2010 a Igreja duplicou de tamanho em relação ao fim do Concílio Vaticano II.
Howard Kainz é professor emérito de Filosofia na
Universidade de Marquette University. Os seus livros mais recentes incluem Natural Law: an Introduction and
Reexamination(2004), The Philosophy of Human Nature (2008), e The
Existence of God and the Faith-Instinct (2010)
(Publicado pela primeira vez em TheCatholic Thing no sábado, 16 de Agosto de 2014)
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