Um dos recursos
de estilo mais irritantes no discurso público actual é quando se critica uma
coisa como sendo “medieval”. O crítico não está a referir-se à janela de rosa
da catedral de Chartres, nem os tratados místicos de Bernardo de Clairvaux
sobre o amor divino, nem o código de conduta elaborado da tradição
cavalheiresca. Essas tradições, por alguma razão, não contam como “medievais”.
Só a brutalidade, que é comum a todas as eras, infelizmente, define o que é
medieval, bem como um certo obscurantismo religioso, cujos registo históricos
são difíceis de encontrar, mesmo quando comparado com a confusão dos nossos
tempos.
As calúnias sobre
a superstição e a violência da Idade Média começaram durante o Renascimento –
apesar de a suposta “redescoberta da razão” ter sido na verdade um declínio em
relação â racionalidade medieval. Basta dar uma vista de olhos sobre a política
no Renascimento para se perceber que não se trata propriamente de um grande
avanço.
Mas as calúnias
foram reforçadas pela Reforma e pela Revolução Científica. São Edmund Campion
foi enforcado e esquartejado por causa das suas crenças religiosas em
Inglaterra em 1581, mas curiosamente não criticamos esse tipo de comportamento
como sendo “tão reformista” ou “tão pré-modernismo”.
Mas a maior
impostura na nossa história imaginada do Ocidente tem a ver com o Iluminismo. O
verdadeiro Iluminismo apresentou-se sob várias formas. Algumas foram úteis –
algo de que nos devemos lembrar quando precisarmos de antibiótico – e poderiam
ter sido ainda mais se tivessem beneficiado de alguma continuidade com
conhecimentos mais antigos. Muitas figuras do Iluminismo, mesmo que se tenham
tornado deístas, continuavam a acreditar num Ser Supremo, na imortalidade da
alma, no juízo final e na vida eterna no Céu ou no Inferno (ver o Vigário de
Saboia de Rousseau). Sem esses mínimos, pensavam, a moralidade humana não teria
rumo.
Mas o Iluminismo
radical – a parte que Edmund Burke discerniu na Revolução Francesa e que
descreveu como operando “com a metafísica de um caloiro e a matemática e
aritmética de um cobrador de impostos”, continua connosco e fornece grande
parte da banda sonora das nossas vidas. Vêmo-lo nas figuras públicas que
parecem acreditar na existencia de curas conhecidas para todos os males
sociais, que apenas não se aplicam por causa da má-vontade dos privilegiados ou
a ignorância dos pobres, sendo que tanto uns como outros podem ser ignorados e,
até, eliminados da conversa.
Burke
acrescentava que: “É notável, que num grande arranjamento de humanidade, não se
encontra qualquer referência a qualquer coisa moral ou qualquer coisa política;
nada que se relacione às preocupações, acções, paixões, ou interesses dos
homens. Hominem non sapient [Eles não conhecem o homem].”
Desde então as
coisas não melhoraram muito. Olhando à volta continuamos a ver que as grandes
influências do Iluminismo para nós continuam a ser coisas como a ideia de que
os “verdadeiros” interesses das pessoas são económicos e que tudo o resto é
ilusão, loucura ou pior. É evidente que houve guerras travadas por razões
económicas, mas são surpreendentemente poucas ao longo dos últimos séculos.
Basta pensar na Primeira e Segunda Guerra Mundial, Coreia, Vietname,
Afeganistão e Iraque.
Neste momento
decorre uma guerra na Ucrânia que o nosso presidente pensa derivar de uma
mentalidade “do século XIX” que, como sabem os sofisticados da comunidade
internacional, nem compreende os seus próprios interesses. Ou seja, nós
compreendemos Vladimir Putin melhor do que ele próprio. As elites bem-pensantes
sabem que devíamos limitar-nos ao desenvolvimento económico e cooperação
internacional e, claro, sabemos que
forma deve assumir essa cooperação, porque todos os objectivos humanos
legítimos são já conhecidos: uma presunção tão Iluminista.
Temos guerras
entre o povo antigo de Israel e os habitantes muçulmanos de Gaza e da Cisjordânia,
bem como entre as diferentes facções religiosas da Síria, Iraque, Líbia, Egipto,
Sudão, Nigéria, etc. É tão deprimente – e tão Iluminista – pensar que os seres
humanos se mantêm agarrados dessa forma à religião e à história. A não ser que,
em vez de olharmos para o mundo pelo prisma dos nossos critérios olharmos, como
diz Burke, para as “preocupações, acções, paixões e interesses dos homens” – os
seres humanos verdadeiros e não aqueles que gostaríamos que existissem.
Quando pensamos
desta forma começa a fazer sentido que as pessoas se agarrem à religião,
família e pátria – e que estejam dispostos a defendê-las, pela força, se for
caso disso, mesmo que isso não beneficie os seus “interesses económicos” –
porque a maioria das pessoas não se
entusiasmam nem se inspiram em abstracções. Os homens simplesmente não são
assim. É muito iluminista pensar que sim.
Ou melhor, essa é
uma das contradições do Iluminismo. Porque se levássemos a sério os esforços
para se reduzir o homem a um mero animal, essas ligações de matilha fariam todo
o sentido. Foi Vladimir Soloviev que ironizou, certa vez, que a visão moderna é
de que “todos descendemos de macacos, por isso amêmo-nos uns aos outros”.
Claro que se
levássemos a sério a redução iluminista dos seres humanos a um mero animal
complexo, ou mais ainda a uma série de interacções químicas complexas, não
acreditaríamos em nenhuma daquelas coisas que verdadeiramente nos tornam humanos.
E porque razão pensaríamos que algo que não passa de uma série de reacções
químicas complexas tem direitos, liberdades ou objectivos para além do
bem-estar físico? Os tecnocratas estão a investir em força nesse raciocínio.
Levou o seu tempo
para que esta atitude iluminista entrasse no discurso público. Há correntes na
nossa cultura – pós-modernas, neo-ortodoxas, filosóficas – que já compreenderam
as limitações e os perigos deste desenvolvimento. Remam contra a maré, mas
acabam muitas vezes por dar mais força ao cepticismo em vez de restaurar sentido
de verdade mais rico do que um orgulhoso racionalismo anterior permitia.
Aquele pensamento
antigo e medieval que suportava a ideia de que o ser humano é algo especial –
enraizado num mundo que tinha um lugar especial para essa especialidade – pode
ter sido banido da praça pública. Alguns até podem pensar que se trata de uma
libertação. Mas essa é uma visão tão iluminista e à medida que as consequências
se fizerem notar, poderá não tardar o dia em que sentimos saudades de um tempo
menos iluminado.
Robert
Royal é editor de The Catholic Thing e presidente do Faith and Reason Institute
em Washington D.C. O seu mais recente livro The God That Did Not Fail: How
Religion Built and Sustains the West está agora disponível em capa mole da
Encounter Books.
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