Cada vez mais penso que os europeus não estão equipados para
lidar com o fenómeno das auto-imolações no Tibete. De que outra maneira se pode
explicar que depois de
95 casos (sim 95!), cada nova notícia de imolação é tratada com uma notícia
de um ou dois parágrafos?
Muitos têm dificuldade em compreender que haja quem esteja
disposto a morrer por uma causa, mas isso, ainda assim, é um conceito que faz
parte da nossa cultura cristã, religião fundada por vagas sucessivas de
mártires. Deploramos o facto de haver quem esteja disposto a matar, matando-se
no processo, por uma causa ou por uma fé. Isso já não faz parte da nossa
matriz. Mas há algo repulsivamente lógico em dar a nossa vida desde que
consigamos causar danos graves ao “inimigo”, ou matar mais deles do que os que
perdemos.
Mas o que se passa no Tibete é totalmente diferente. Lá,
homens, mulheres e jovens estão a tirar a sua própria vida como manifestação
política, sem ferir mais ninguém. Estão-se a imolar em ambos os sentidos da
palavra, isto é, fazendo-se consumir pelo fogo mas também como acto sacrificial.
É por isso que, como
já escrevi aqui, o gesto da auto-imolação tem tão maior impacto que outras
formas de suicídio. A imolação pelo fogo tem recorda-nos temas religiosos,
os sacrifícios do Antigo Testamento. Nada disto é acidental.
Em dois anos são 95 as pessoas que, em defesa da liberdade
da sua nação e em protesto contra o exílio do seu líder, se regam com gasolina
e dão a vida às chamas. Dois dos casos, pelo menos, deram-se fora do país, um na
Índia e outro
em França.
Se nós temos dificuldade em lidar com isto os chineses
também têm. Como
é que se impede este tipo de protesto? Como é que se continua a dizer que
os tibetanos estão melhor com a China do que estavam quando eram independentes
quando as pessoas em causa se incendeiam para protestar a sua presença?
A solução até agora tem passado por culpar o Dalai Lama.
Este, por sua vez, já disse que os tibetanos devem evitar este tipo de actos,
mas os Governo tibetano no exílio recusa-se a condenar as vítimas e fala actos
compreensíveis e uma “expressão
de liberdade”.
Não está aqui em causa a glorificação do acto. Um acto que
para os cristãos, e não só, é inteiramente condenável, por ser suicídio, mas
que revela também a diferente visão que os budistas têm da vida e da existência
humana, como essencialmente marcada por sofrimento e decadência da qual nos
devemos tentar libertar.*
Estas notícias têm, por isso, uma incontornável carga
religiosa. Primeiro porque o Tibete é uma nação profundamente religiosa e o
Dalai Lama, por quem estas pessoas dão a vida, é antes de mais um líder
religioso. Depois, porque é precisamente a religião budista, professada pela
esmagadora maioria dos tibetanos, que molda e informa esta opção tão extrema.
Dizia, não está em causa a glorificação mas sim o espanto
por este tema não ser tratado com a seriedade que merece. Mas como podemos
esperar que os media tratem um assunto que simplesmente não conseguem
compreender? E atenção que me incluo nesta crítica, eu que me tenho esforçado
por acompanhar o problema e dar as notícias, mas que também tenho dificuldade
em captar o seu verdadeiro significado e a sua verdadeira magnitude.
* Tendo em conta que surgiram algumas dúvidas, não estou a insinuar que essa "libertação" deva ser alcançada por via do suicídio.
* Tendo em conta que surgiram algumas dúvidas, não estou a insinuar que essa "libertação" deva ser alcançada por via do suicídio.
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