Nota prévia: Tenho o privilégio de contar entre os meus leitores muitas pessoas de tradição protestante. Publico este artigo de Howard Kainz certo de que compreendam que o faço no espírito do conhecimento e troca de ideias e não como qualquer ataque mesquinho às suas crenças religiosas. Se vos servir de consolo, traduzi-o ao som de "Amamos Duvall", que Tiago Guillul simpaticamente me ofereceu antes do Natal.
Filipe d'Avillez
Duas publicações recentes partilham um tema que podíamos resumir como “O que nos trouxe o Protestantismo?”. Em “The Unintended Reformation”, o professor Brad Gregory, da Universidade de Notre Dame, enumera os desenvolvimentos históricos através dos quais o Protestantismo, cujo objectivo inicial era a reforma da Igreja, resultou em milhares de “denominações” com mensagens contraditórias, isoladas umas das outras por mecanismos secularistas de tolerância e relativismo. Em “If Protestantism is True”, Devin Rose dá conta das suas investigações teológicas pessoais que o conduziram, inesperadamente, para o seio da Igreja Católica.
Face à aparente corrupção e má gestão das autoridades
eclesiais e do papado, a ideia aparentemente inspirada dos primeiros “reformadores”
protestantes, era simplesmente de regressar
às Escrituras para encontrar orientação. No Verão de 1519 Martinho Lutero,
por exemplo, tinha chegado à conclusão que só nas escrituras é que se podia
encontrar a única verdadeira e inquestionável fundação da fé e vivência cristãs.
Sola scriptura.
Mas quais escrituras? Devin Rose começou a sua busca com a
pressuposição de que a única autoridade infalível é a Bíblia protestante,
composta de sessenta e seis livros. Mas poderia ter a certeza de que os
restantes sete livros – Tobit, Judite, Sabedoria, Ben Sirá, Baruc, 1 e 2
Macabeus – da Bíblia católica não são fiáveis? Fossem quais fossem as
escrituras aceites, nenhuma afirma
que deve ser recebida como autoridade final. Na verdade os sessenta e seis
livros incluídos na Bíblia Protestante foram inicialmente considerados “canónicos”
com base na autoridade da Igreja Católica – uma fonte suspeita, aos olhos dos
reformadores.
Mas mesmo partindo do princípio de que a Bíblia protestante é
definitiva, qual dos reformadores devemos seguir? Tal como Devin Rose, Brad
Gregory deparou-se com inúmeras discussões entre os principais reformadores,
precisamente na altura em que procuravam lançar as fundações da restauração do
Cristianismo:
Lutero e Melanchthon
discordaram de Zwingli e dos seus aliados sobre a natureza da presença de
Cristo na Ceia do Senhor... Perante o testemunho de Zwingli: “Tenho por certo
que Deus me ensina, porque o experimentei”, Lutero contrapõe: “Tenham atenção a
Zwingly e evitem os seus livros como se fossem o veneno infernal de Satanás...”.
Muitos cristãos anti-romanos discordaram suficientemente de Lutero, Zwingly,
Bucer, João Calvino e todos os outros líderes luteranos ou da reforma
protestante sobre verdade de Deus ao ponto de se recusarem a prestar culto ou
estar em comunhão com eles.
Mas é preciso interpretar correctamente a Bíblia. Gregory
demonstra como os princípios tradicionais
de interpretação foram descartados à medida que os vários reformadores,
certos da sua inspiração, deixaram de se considerar obrigados a respeitar a
tradição:
Os reformadores
rejeitaram as interpretações e afirmações patrísticas sobre a Escritura, tal
como rejeitaram a exegese medieval, os decretos papais, o direito canónico, os
decretos conciliares e as práticas eclesiais em tudo quanto contradizia as suas
próprias interpretações da Bíblia... Discordaram sobre o significado e a
prioridade dos textos bíblicos e da relação entre esses textos e as doutrinas
sobre os sacramentos, culto, graça, Igreja e por aí fora. Discordaram sobre os princípios
interpretativas que deviam orientar a compreensão das Escrituras, como por
exemplo a relação entre o Antigo e o Novo Testamento, ou a permissibilidade de
práticas religiosas que não tinham sido explicitamente proibidas ou sancionadas
na Bíblia.
Sem surpresas, a disseminação de diferentes interpretações
por denominações protestantes ao longo dos séculos tem perturbado muitos dos
nossos contemporâneos que procuram a mais plena expressão da verdade cristã. Devin
Rose comenta:
O espectro protestante
cobre agora uma grande variedade de crenças contraditórias: baptismo infantil
contra baptismo de crentes, a presença, de alguma forma ou apenas simbólica, de
Cristo na Eucaristia, a indissolubilidade do casamento ou a aceitação do divórcio,
a condenação do aborto enquanto homicídio ou a permissibilidade do aborto, a
ordenação de mulheres ou só de homens, a trindade enquanto Deus em três Pessoas
ou enquanto um Deus com três propósitos. Há diferenças sobre a predestinação e
o livre arbítrio, sobre se é possível perder-se a salvação, sobre a validade do
“casamento” homossexual, e por aí fora... O casamento já foi, em tempos,
considerado uma união indissolúvel por todos os cristãos mas, tal como a
contracepção, a esterilização e o aborto, a maioria das comunidades
protestantes já inverteu os seus ensinamentos sobre a impossibilidade do divórcio
e recasamento, permitindo agora aos seus membros que se casem, desde que tenham
obtido primeiro do seu anterior esposo um divórcio civil.
Os pais do Protestantismo |
Perante uma disparidade tal de interpretações vem-nos à
mente 1 Coríntios 14,8: “E, se a trombeta só emitir sons confusos, quem é que
se prepara para a guerra?” A World
Christian Encyclopedia afirma que existem mais de 33 mil denominações cristãs.
A escolha difícil, enfrentada muitas vezes por protestantes sérios, é entre a
Igreja e “igrejas”.
De acordo com Devin Rose, a consequência última e inevitável
de se basear a religião num livro, mesmo um livro sagrado e inspirado como a Bíblia,
foi uma variedade de interpretações contraditórias, sem que exista qualquer
critério fiável de escolha para o crente. Rose foi coerente com a sua própria
proposição, “se o Protestantismo é verdade”, e encontrou... a Igreja.
Brad Gregory vai ainda mais longe, traçando a origem da
hegemonia actual do secularismo às discórdias incessantes e intratáveis entre
protestantes e entre católicos e protestantes. Sem outra solução para
harmonizar a dissensão, a Holanda foi pioneira na condução do mundo Ocidental à
“liberdade de religião”. Os juízes holandeses:
Romperam com mais de
um milénio de Cristianismo... ao transformar a fé “numa questão privada de
preferência individual”. A liberdade de religião protegeu a sociedade da religião
e, por isso, secularizou a sociedade e a religião...
No meio desta secularização, “os cristãos americanos estão
divididos em relação a todas as questões polémicas políticas e morais, do divórcio
ao aborto, ao sistema de saúde e à ecologia.”
Como lidamos, então,com as “Questões de Vida” tão prementes?
Gregory explica que nos voltámos para as ciências empíricas e o cientismo
materialista como fonte de verdade por defeito. Depositamos a nossa confiança
em ciências como a física que, depois de oitenta anos, ainda não faz a menor
ideia como conciliar a teoria quântica com a teoria da relatividade; ou ciências
como a psicologia evolucionária, que nos apresenta uma longa lista de
comportamentos contraditórios que alegadamente têm a sua origem na evolução
biológica: o Ser Humano enquanto ferozmente competitivo ou naturalmente
cooperativo; essencialmente monogâmico ou polígamo; genocida ou pacífico; que
cuida dos pobres ou os ignora.
Não obstante aderimos, religiosamente, à ciência como juiz
supremo. Deus nos valha.
Howard
Kainz é professor emérito de Filosofia na Universidade de Marquette University. Os
seus livros mais recentes incluem Natural Law: an Introduction and
Reexamination(2004), The Philosophy of Human Nature (2008), e The
Existence of God and the Faith-Instinct (2010)
(Publicado pela primeira vez em www.thecatholicthing.com no Domingo,
23 de Dezembro de 2012)
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