Hadley Arkes |
George Orwell imaginou, no seu livro “1984”, um regime
totalitário a impor uma inversão da linguagem moral, uma Novilíngua em que “guerra”
significa “paz” e “paz” significa “guerra”. Orwell causou um impacto tão forte
que tínhamos a certeza que conseguiríamos detetar esse novo despotismo à
distância, bem antes de ele nos atingir.
Mas essa deriva linguística já aconteceu, de forma tão
suave que quase nem demos por isso. Isso revelou-se outra vez na semana
passada, de forma tranquila, sem o som de trombetas. Veio numa decisão do
Supremo Tribunal de não aceitar ouvir um processo. Ao recusar, o Tribunal
deixou no lugar a decisão de um tribunal inferior a sustentar uma lei do
Kentucky sobre o “consentimento informado” em relação ao aborto.
A lei estipulava que um médico que se preparasse para
fazer um aborto tinha a obrigação de disponibiliza à mulher uma ecografia do
seu bebé. A mulher não tinha a obrigação de ver a ecografia, mas ainda assim o
mero acto de manter essa lei foi o suficiente para lançar uma onda de pânico
entre os defensores do aborto.
Mas qual era o problema? Inicialmente foi-nos dito que o aborto
era uma “escolha” privada, a ser respeitada, sem ter em conta o que a escolha
implicava. Mas Aristóteles lembra-nos que uma decisão tomada em ignorância não
é um acto voluntário. Esclarecer uma mulher sobre a realidade da cirurgia a que
se vai submeter não foi considerado inconsistente com a “liberdade de escolha”
e a lei do Kentucky continua a deixar essa decisão nas mãos da mulher.
Mas agora dizem-nos que essa prova, quase palpável, da
natureza do ser no útero foi “extraordinariamente perturbadora” para uma mulher
e que outras foram reduzidas a choro e pranto.
Claro que se um homem mata injustificadamente outra
pessoa, isto é, assassina-a, o facto de isso o deixar incomodado em nada afeta
a natureza desordenada do assassinato. Esta noção de mal causado a qualquer
pessoa a quem é negado um aborto depende, evidentemente, de uma total
dissociação do aborto do raciocínio moral que entra em jogo noutras áreas da
vida.
A Planned Parenthood argumentou que a lei obrigava a um “discurso
ideológico”, porque obrigava a explicar que “o aborto acabará com a vida de um
ser humano vivo, único, separado e inteiro”.
Mas claro que é exatamente disso que se trata. Se o
organismo não estivesse vivo e a crescer, então o aborto teria tanta relevância
como uma amigdalectomia. Estando vivo, não pode ser outra coisa que não um ser
humano e, como nos dizem os manuais de embriologia, nunca foi verdadeiramente
uma parte do corpo da mulher.
Ainda assim, o discurso tem sido de que a legislatura
está a impor uma “ideologia anti-aborto”. A legislatura ordena que seja
mostrado aquilo que é objetivamente verdade e essa verdade objetiva é depois
descartada como sendo mera “ideologia”.
A única coisa que mantém o estatuto de verdade
incontestável é, aparentemente, o direito a matar um ser humano inocente no
ventre, por qualquer razão, ou por nenhuma. Paz é guerra, guerra é paz.
A decisão do tribunal inferior foi escrita por John Bush,
um advogado com um currículo bem sucedido e uma das nomeações mais distintas do
Presidente Trump. O juiz Bush conseguiu mostrar, com base em precedentes sobre
o consentimento informado, incluindo decisões escritas pelo juiz Kennedy, que o
Supremo Tribunal reconheceu de forma implícita que o “desconforto do paciente
devido à revelação obrigatória de informação correcta e relevante não invalida
uma lei de consentimento informado”. Saber que o propósito da lei é encorajar o
nascimento em vez do aborto também não afecta a validade da lei.
E, no entanto, a juíza Bernice Donald, na decisão
minoritária, achou importante argumentar que estes requisitos “ideológicos” não
têm “qualquer base médica”. Não são relevantes para a mecânica da cirurgia e
negam ao profissional o direito a exercer “o discernimento médico de decidir se
o procedimento é apropriado ou ético”.
O argumento dela parte do princípio que as preocupações
morais da legislatura constituem uma interferência despropositada com o juízo médico.
Mas os juízos morais que dizem respeito à prática da medicina não são “juízos médicos”.
Num famoso caso em Long Island, com uma criança que
nasceu com espinha bífica e com trissomia 21, a Administração Reagan disse que
não teria qualquer objeção se uma cirurgia correctiva fosse fútil, mas que se a
decisão de recusar cuidados médicos fosse tomada com base na ideia de que uma
vida afectada por espinha bífida e trissomia 21 não era uma vida que valesse a
pena viver, então isso já não seria uma avaliação médica, mas sim moral.
Houve um momento notável no julgamento de Adolf Eichmann
em que o seu advogado, Robert Serviatus, se referiu às matanças nos campos de
concentração como “matanças por gaseamento e assuntos médicos similares”.
Questionado sobre uma afirmação tão bizarra, respondeu que estes assuntos eram “médicos”
na medida em que eram “preparados por médicos… e matar é, também, um assunto
médico”.
Por outras palavras, o acto de matar podia ser isolado da
avaliação moral se fosse levado a cabo por médicos. A juíza Donald não parece
ter mais noção que outros juízes progressistas de que já vimos estes argumentos
antes e tal como eles não se lembra do mundo moral em que esses argumentos
causavam embaraço entre os pensantes.
1984 já passou há muito, mas nem reparámos que já lá tínhamos
chegado.
Hadley
Arkes é Professor de Jurisprudência em Amherst College e director do Claremont
Center for the Jurisprudence of Natural Law, em Washington D.C. O seu mais
recente livro é Constitutional Illusions & Anchoring Truths: The Touchstone
of the Natural Law.
(Publicado pela primeira vez na Terça-feira, 18 de Dezembro
de 2019 em The Catholic Thing)
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