Em 2009 e 2010, Ano Sacerdotal, fiz uma série de reportagens sobre padres de diferentes áreas pastorais, a que chamei "Vidas Consagradas". Desde essa altura morreram já dois desses padres, o padre Ricardo Neves e o padre Dâmaso, agora em Fevereiro. Na verdade, o padre Saul também morreu, mas no caso dele - o único padre católico casado em Portugal - a entrevista foi precisamente com a mulher dele e a Dª Maria Fernanda ainda está connosco!
Tal como fiz com o padre Ricardo, por ocasião da morte do padre Dâmaso publico agora a transcrição completa da conversa que deu origem à reportagem. Foi uma honra para mim fazer a entrevista, é uma honra poder partilhá-la convosco.
Nasceu na Holanda,
sempre quis ser padre?
Eu senti-me muito cedo atraído por Deus, muito cedo.
Vivíamos numa casa grande e eu e os meus dois irmãos tínhamos o quarto no
segundo andar. Muitas vezes quando era rapaz ia para cima para rezar. A minha
mãe ia à minha procura e perguntava o que é que eu estava a fazer e eu
respondia que estava a rezar.
Senti-me muito atraído por Deus. Ia todos os dias à missa.
Fiz-me acólito bastante cedo. Foi tudo muito natural, ninguém me empurrou, fui
eu. Eu procurei isto tudo. Tem muita piada. Fiz a minha primeira comunhão com 7
anos de idade e praticamente desde esse dia até hoje, comunguei todos os dias.
Eu vivia Jesus, vivia Deus. Por isso em 42, durante a 2ª Guerra Mundial comecei
a pensar em ir para o seminário. Não pude ir logo porque nessa altura os
quartéis eram bombardeados e eles ocupavam os seminários como quartéis, e então
os seminários eram bombardeados e eles ocupavam outras coisas.
Mas comecei a ter uma orientação. Através dos sacerdotes da
minha congregação que estavam lá perto. Havia vários padres que deviam ir para
as missões mas não podiam, e interessavam-se por estes jovens que queriam ser
padres mas não podiam ainda ir para o seminário.
Depois da guerra fui para o seminário e quis ser sacerdote e
religioso. Quis consagrar realmente a minha vida a Deus.
Como era a vida nessa
altura da Segunda Guerra Mundial?
Os rapazes da paróquia iam buscar lenha para os doentes e
para os idosos, porque os alemães ficavam com o carvão todos. Era tudo muito
miserável, mas vivíamos nisto e tentávamos ajudar.
Depois no último ano da guerra não havia mesmo nada para
comer. Então os alemães, na sua “generosidade fantástica” começaram a oferecer
comida aos holandeses. Era considerado tão ridículo. Aquela sopa que ofereciam
era 99,9% de água, e não alimentava rigorosamente nada. Mas a gente não tinha
nada e por isso aproveitávamos.
Como é que se começou
a envolver na pastoral prisional?
Eu não queria ser pároco. Por acaso o Cardeal Cerejeira
gostou muito de mim. Em 61 ele disse-me: “Oh Padre Dâmaso, eu gosto muito de
si, só falta uma coisa na sua vida, que é ser português”, então eu perguntei se
ele gostaria que eu me naturalizasse e ele disse que sim, que gostava muito.
Ele queria-me prender à diocese. E então eu fiz isso. Eu fazia tudo o que o
Cardeal queria. Viva com uma disponibilidade total, era a minha vida.
Queria dedicar-me aos necessitados. Queria ir para as
missões, mas o cardeal tinha pedido mais uns padres holandeses para as missões
populares, então o meu superior pediu-me para vir para Portugal e eu aceitei.
Em 69 fui convidado para fazer umas conferências na prisão
de Tires. Tiveram um certo impacto e então pediram-me para fazer conferências
noutras cadeias. E eu senti nisto um chamamento de Deus para me dedicar aos
presos. O Cardeal não queria, achava que eu tinha qualidades para outras
coisas, mas eu quis. Comecei por ser visitador voluntário. Este ano faz 50 anos
que entrei numa cadeia pela primeira vez.
O que e que me movia? Movia-me dar a minha vida por gente que
sofria, mais nada. Não sabia nada de presos, nada daquele mundo, ainda pensei
em tirar um curso de psicologia, para me dedicar mais aos presos, mas não o fiz
porque tinha matemática e eu detestava matemática. Mas os anos ensinaram-me
muito, trabalhar uns anos na cadeia como sacerdote já dá um curso de
psicologia.
Comecei por ser visitador no Linhó, porque aquele director
ficou muito meu amigo, e também na penitenciária em Lisboa, que agora é cadeia
de preventivos. Mas naquele tempo eram as duas cadeias principais desta zona.
Linhó era de penas curtas, para homens, e a penitenciária era para penas mais
longas.
Alcoentre era para gente da província, gente que tinha morto
o vizinho por causa de uma galinha, ou um pedaço de terra. Homens bons. Era uma
espécie de preso totalmente diferente.
Trabalhar com os
presos é uma vocação?
Estou convencido que sim. Quem não tem vocação não deve lá
ir.
Gratificante ou
desgastante, como descreveria este trabalho?
Não é fácil. Mas é gratificante, para quem se quer dar, para
quem quer fazer da sua vida dádiva. Também tem alguns momentos muito bons, em
que damos graças a Deus, mas no princípio, é preciso meter-se no mundo dos
presos. E para se meter no mundo dos presos é preciso renunciar a nós mesmos.
Eu no princípio não fazia isto. Às vezes ia a sair da cadeia e mandava tudo
aquilo para detrás das costas. Mas depois compreendi que não eram eles que
tinham que mudar, eu tinha que mudar, eu tinha que me dar, sem procurar os meus
próprios interesses, a minha própria vida. Eu tentei crescer nisto.
Já se encontrou em
situações de perigo alguma vez?
Não. Perigo propriamente não. Tivemos muitos problemas e
muitas dificuldades depois do 25 de Abril. Não logo, mas depois por uma
política errada do Ministério de Justiça que prometeu uma amnistia mas que
demorou muito tempo e os presos ficaram cada vez mais nervosos e por isso
tivemos problemas. Houve dias que eu dizia ao guarda: “Eu vou entrar na parte
prisional, se passado uma hora e meia não tiver saído, entrem à minha procura”.
Podíamos entrar, mas não sabíamos se íamos sair.
Tive outro problema, quando um preso me bateu, mas logo os
outros vieram para me defender. Não foi assim tão grave.
Assistiu a histórias
de conversão?
Há conversões. Muitas vezes não vemos estas conversões, há
conversões que às vezes ouvimos anos depois. O ano passado encontrei na rua um
homem bem vestido com dois filhos pequenos e ele cumprimentou-me, eu disse que
não o conhecia, mas ele disse que tinha estado no Linhó quatro anos no fim dos
anos 60 e depois disse aos filhos: “Este é o padre da cadeia onde o pai
esteve”, ele não se importou que os filhos soubessem que o pai tinha estado
preso. Era um homem totalmente recuperado. E ele disse-me: “O senhor nunca
soube, mas marcou-me profundamente. O senhor e o que fazia na cadeia. Por isso,
embora muito tarde, quero agradecer-lhe pelo que fez por mim, porque você que
me marcou naqueles quatro anos.”
Tenho muitos encontros destes. Homens que mais tarde me
falam e dizem “o senhor significou muito para mim, foi isto, foi aquilo”,
homens que vinham à missa ou não, mas eu convivia com os presos, como ainda
convivo com os presos. Talvez haja mais conversões do que sabemos.
Há homens que encontraram alguma coisa na minha maneira de
ser, outros não. Também há muitos que não se converteram. Mas estou convencido
que um capelão marca muito a vida de uma cadeia, um capelão que se dedica. Eu
vou muitas vezes aos pátios no Domingo à tarde para estar com os rapazes,
porque a cadeia do Linhó é para jovens. E um tipo veio ter comigo e disse:
“Sabe capelão, quando o senhor vem ter connosco, nós sentimo-nos mais
valorizados”, a minha presença tem um certo impacto para eles.
Qual é o papel de um
padre numa prisão?
Celebro missa. Antigamente tinha muita gente, antes do 25 de
Abril era mais de 50%, depois diminuiu. Hoje são poucos, mas os rapazes cá fora
também não vão à missa.
Mas naquele momento que celebro a missa Deus é o centro da
cadeia. Vivo isto muito intensamente, naquele momento é Jesus Cristo que enche
a cadeia, não só aquela sala, mas toda a cadeia com a sua presença. Isto é a
eucaristia na cadeia, por isso para mim é muito importante. Celebro sempre a
missa na cadeia com o cálice que os meus pais me ofereceram. Porque eu recebi
tudo dos meus pais, a educação, a bondade, a minha mãe foi uma pessoa que
também se deu pelos pobres e necessitados. Na Holanda os pais não mandam os
filhos para a Igreja como fazem aqui. Nunca fui mandado para a Igreja. Os meus
pais apoiavam-me, no fundo, mas não queriam obrigar-me.
Falo muitas vezes com a minha irmã mais velha e digo-lhe:
“Eu sou o sacerdote mais feliz do mundo” e eu vivo muito isto.
A ideia que se tem é
de que os reclusos tendem a recusar a responsabilidade pelos seus actos, como
Padre pode ajudar nesse sentido?
Quando eu falo com um preso digo, “eu não sei se fizeste mal
ou não. Isso é contigo”. Às vezes contam-me, outras vezes até me contam outras
coisas más que fizeram, mas pelas quais nunca foram apanhados. Fazem-no para
aliviar a consciência, não confessam, mas contam.
A nossa presença, o exemplo, a maneira de falar… eu procuro
animar aquela gente, que eles vejam que estão numa cadeia, e uma cadeia é um
não mundo, e eles podiam ter uma outra vida.
Procuro abrir-lhes os olhos, para eles pensarem. Eu não
imponho nada, mas ajudo a que eles pensem e vejam a sua miséria, para que vejam
as possibilidades de uma vida diferente. A este respeito não tenho resultados
concretos muitas vezes, mas sei que tenho resultados. Nós padres, na cadeia não
nos devemos impor. Nós acompanhamos, somos guias, temos uma missão. Eu trabalho
muito com os educadores, falamos muito sobre determinados reclusos que me
preocupam. Falo com os educadores o que é que podemos fazer por estes rapazes,
por aquele homem? É este o espírito. Não ando à procura de resultados
concretos.
Qual é a sua
liberdade na cadeia? Pode estar à vontade com os presos?
Total! Total! Eu já faço parte daquela cadeia, estou lá há
quase 50 anos, sou prata da casa. Estou lá há mais tempo que os guardas, sou o
mais velho. Fui 6 anos visitador voluntário, mas nessa altura o capelão não
gostava de o ser, e por isso quando tinha os domingos livres ia lá celebrar.
Por isso já tive bastante influência, mesmo naqueles anos em que era visitador.
Depois, em 66 o cardeal cedeu e nomeou-me para capelão para o Linhó.
Comecei a trabalhar, tenho liberdade de acção. Até fiz,
durante muitos anos, parte do concelho técnico. Estive metido nas deliberações
sobre os reclusos, e foi um trabalhão. Mas nessa altura eu dedicava grande
parte da minha vida às cadeias, e era maravilhoso.
Fazia teatro e jogos com os reclusos. Naquele tempo podia-me
dedicar mais. Depois fui nomeado capelão chefe e a minha vida mudou porque já
não me podia dedicar tanto. Eu tenho acesso às celas disciplinares, a tudo.
É fácil celebrar
missa e confessar? E outros sacramentos? Já baptizou ou crismou na cadeia?
Sim. Não o faço com facilidade. Quando um adulto quer ser
baptizado tem de se comprometer a ser cristão. De outra maneira estamos a
brincar. Por isso o rapaz tem de demonstrar que tem boa vontade e que quer ser
cristão. Isso não é fácil. Mesmo assim tenho tido alguns fracassos… Mas há boas
surpresas. Ainda há pouco tempo baptizei um rapaz, é maravilhoso aquele rapaz,
ele não é muito inteligente mas é muito bom. Estou convencido que foi uma festa
para ele e para os visitadores, foi muito bom.
Fale-nos de O
Companheiro?
Eu a certa altura, em 66 fui à zona prisional da PJ para
falar com um preso. Mas essa cadeia não era da Direcção Geral dos Serviços
Prisionais, era da PJ e por isso não tinha previsto assistência religiosa. E os
presos ficavam lá muito poucos dias, e depois iam para o Limoeiro.
Naquele tempo não havia muitos presos porque ainda não era o
tempo da droga, isso só começou no fim dos anos 60 e princípio dos anos 70. Eu
fui lá visitar um homem e havia só guardas e um inspector da PJ que era
director. Não havia mais gente. Fui cumprimentar o inspector e ele achou graça
a um padre que trabalhava nas cadeias, e disse: “Porque é que o senhor não vem
cá mais vezes” e eu comecei a ir, uma manhã por semana, faço-o até agora. Nunca
ganhei nem um centavo, vou voluntariamente, mas é bom. Estão lá aqueles que
foram presos há poucos dias. Sentem-se um bocado perdidos no meio de certos
presos, há lá muita malandragem também. Mas também há gente com cultura, temos
lá um banqueiro neste momento, tivemos lá os da Universidade Moderna também, e
esta gente anda lá perdida no meio daquele ambiente. Estou convencido que a
minha presença é muito importante. É uma presença totalmente diferente do que
numa cadeia de condenados, também o ambiente é totalmente diferente. Eles estão
a dar os primeiros passos no mundo terrível das cadeias. E eu procuro ser uma
presença positiva junto deles.
Mas havia lá rapazes que eu já tinha conhecido de outra cadeias.
E eles diziam-me “ninguém nos ajudou!” e eu fundei o companheiro precisamente
para presos em dificuldade, e ex-reclusos em dificuldade, para que eles pudesse
contar com ajuda, e contar com trabalho, durante algum tempo enquanto procurem
uma coisa melhor. Procuramos ajudar todos os ex-reclusos em dificuldade, e
também outros. Eu nunca quis que nos estatutos estivesse ex-reclusos para que
as pessoas lá à volta não pensassem que só lá estavam ex-reclusos. E isto
funciona.
Gosto imenso daquilo, porque é muito importante, conseguimos
que certas pessoas não voltassem para a cadeia. Ao mesmo tempo, presos que não
têm para onde ir numa precária, podem vir ter connosco. Também damos hospedagem
a reclusos em precárias. E também ajudamos em outras coisas, tentamos ser uma
presença de ajuda para pessoas em necessidade.
E prisões femininas?
Fui quase seis anos capelão em Tires. A mulher é
completamente diferente do homem, as mulheres não nasceram para ser presas. O
homem adapta-se mais facilmente que as mulheres. Antes do 25 de Abril havia lá
mais prostitutas e esse tipo de mulheres. Actualmente temos em Tires umas 25
nacionalidades, sobretudo por causa da droga, e temos mulheres que matam o
marido. E isto para mim é uma tristeza, porque muitas das mulheres que matam o
marido já passaram por uma Via-sacra, por muitas humilhações, muitos problemas.
Tenho uma ternura por estas senhoras. Elas aceitam, porque mataram o seu
marido, mas no fundo não estão arrependidas. Porque sofreram tanto dos seus
homens… isto é completamente diferente dos homens que matam as suas mulheres.
Pode haver excepções, mas normalmente é totalmente diferente. Acontece
principalmente na província. Porque estas mulheres passaram por tantos
sofrimentos, tantos castigos, tantas pancadarias, é impressionante. Às vezes há
pessoas da família que me contam que de facto compreendem o que aquela mulher
sofreu, mas pronto, a lei é para cumprir, eu não vou discutir isso, mas acho
que deviam estar pouco tempo na cadeia, porque a cadeia em si não resolve nada.
Estas mulheres já estão recuperadas porque o marido morreu…
Mas foi bom ter estado uns anos com mulheres, foi bom
abriu-me o mundo das mulheres nas cadeias, e completou a minha formação geral
para lidar com presos e com presas. Ainda há mulheres que me procuram, que já
estão em liberdade mas que têm necessidades, principalmente mulheres daquele
tempo, mas também, mulheres que me ouvem na Rádio Renascença, por isso ainda
tenho contactos com mulheres. Normalmente são contactos diferentes do que com
os homens. Os problemas são diferentes, precisam mais de uma palavra de ânimo,
precisam de apoio, porque se sentem sós, não compreendidas pelos filhos, por
exemplo.
As principais figuras
do cristianismo passaram pela prisão, fala disso aos presos?
Sim, mas a motivação deles é muito diferente, e eles sabem
isso. Não posso usar isso demasiadamente, porque é outro mundo, é outra
motivação. Para mim, o meu contacto com os presos, principalmente aos sábados
de manhã temos uma reunião informal com presos, à qual vão alguns visitadores,
é o Evangelho. Eu vivo Jesus Cristo muito intensamente, tenho vivido sempre ao
longo da vida, é ele que procura comunicar. Jesus Cristo que compreende, que
perdoa, que quer salvar, que nos quer fazer homens novos. Em volta de Jesus
Cristo podemos comunicar muito aos reclusos.
O que é para si ser
Padre?
É felicidade, é gratidão. É tão fantástico. Não tenho
palavras. Ser padre é… é tudo. Ser Padre, viver a consagração… todos os dias eu
posso viver a consagração. Jesus ofereceu a sua vida, isto é o meu corpo
entregue por vós, este é o meu sangue derramado por vós. Eu vivo de manhã para
a consagração e o resto do dia vivo a partir da consagração. Ser padre é a
consagração da Eucaristia. É maravilhoso, é tudo.
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- Padre Ricardo Neves: "Ser padre é uma experiência dolorosa, porque amar dói"
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