Nesta entrevista o rabino fala do seu percurso, do que espera fazer na comunidade de Lisboa, e de alguns assuntos de importância geopolítica, como a crise de refugiados e o estatuto de Jerusalém.
A versão da entrevista publicada na Renasença pode ser lida aqui.
Pode-se apresentar
e indicar um pouco do seu percurso?
O meu nome é Natan Peres, tenho 44 anos.
Nasci no Brasil, no Rio de Janeiro, mas saí do Brasil
ainda jovem e estive muitos anos em Nova Iorque, onde estudei em academias
rabínicas. Depois continuei com os meus estudos em Jerusalém, voltando depois
aos Estados Unidos. Estive agora algum tempo no Reino Unido, uns cinco anos,
depois dois anos em Amesterdão, onde tive o privilégio de oficiar na Sinagoga
Portuguesa de Amesterdão, e agora estou cá em Lisboa. O percurso trouxe-me de
volta às origens do Judaísmo português.
A sua ascendência
é sefardita, originalmente de Portugal?
Exactamente.
Faz ideia há
quanto tempo é que a sua família foi para o Brasil?
Não fomos directos ao Brasil, foi recente, nos anos 30. E
temos raízes até muito fortes aqui em Portugal, pela parte da minha família de
ascendência portuguesa.
Eram de onde?
Eramos de Seia, de Vila Verde.
Conheci há uns
anos um judeu de origem sefardita, que me dizia que a família mantinha a chave
da casa de onde tinha sido expulsa. Manteve-se muito essa herança, essa ligação
a Portugal, nas tradições das famílias que saíram de cá...
Sem dúvida. Não só as famílias que saíram mais recentemente,
mas as comunidades que saíram de Portugal há 400 anos ou mais, também
continuaram com estas tradições e com este legado, esta tradição à volta de
Portugal. Na Sinagoga de Amesterdão, até hoje, certos anúncios em relação aos
serviços são feitos em português.
Português mesmo,
ou ladino?
Não! Português mesmo.
É interessante que a herança sefardita dos que foram
expulsos de Espanha e de Portugal naquele tempo, tem a conexão mais forte com o
ladino, mas as comunidades da diáspora portuguesa, como em Amesterdão, Londres,
Nova Iorque e no Caribe, eram mais conectadas com Portugal e com o português.
Então em Amesterdão, até hoje, fazem-se esses anúncios em português. Obviamente
é um português que foi transmitido ao longo dos anos e hoje em dia tem uma
pronuncia não tão portuguesa assim, uma influência holandesa, mas acho isto
muito interessante.
É interessante
haver essa ligação. Obviamente os contextos são diferentes, mas é uma coisa que
também vemos entre judeus asquenaze da Europa de Leste que fugiram mais no
contexto da Shoah para os EUA? Também mantêm a ligação às suas terras
europeias? Ou isto é uma coisa particular dos judeus que estiveram em Portugal?
Acho que acontece com eles também, mas os judeus
sefarditas portugueses têm uma conexão mais forte com o legado português. Acho
que o judaísmo ao longo dos anos, foi sempre influenciado pelo meio social onde
se criou. O judaísmo português contribuiu tanto para o judaísmo global ao longo
dos anos, em relação aos rabinos, em relação à filosofia, e tudo o mais, que
acho que isto cria uma conexão ainda mais forte do que noutros países, como por
exemplo a Polónia.
Quando é que
decidiu que queria ser rabino? Foi ainda nos EUA?
Foi ainda no Brasil. Eu estudei numa yeshiva...
Então saiu do
Brasil com que idade?
Adolescente.
Estudei lá alguns anos, mas ao mesmo tempo que estudava
no sistema secular. Continuei a carreira focada em estudos religiosos nos
Estados Unidos, depois estive em Jerusalém numa yeshiva muito famosa, chamada
Shevat Mir, que segue as tradições de estudo da Lituânia, e era uma academia
importante antes da Shoah, estudei lá uns três anos, três anos e meio, e depois
continuei. Mas ao lado da minha carreira religiosa também segui uma carreira
profissional, o que também é um legado do judaísmo sefardita, os rabinos e os
líderes comunitários sefarditas sempre acumularam os dois.
Disse que estudou
numa academia de tradição lituana, e por isso imagino que asquenaze, e não
sefardita. Tem então formação nos dois ramos...
Sim, sem dúvida. Falo fluentemente o iídiche e tenho
formação dos dois lados.
Até porque em Nova
Iorque a comunidade com mais peso não é sefardita...
Exacto.
Foi fácil manter a
ligação às tradições sefarditas crescendo nesse ambiente?
É interessante a pergunta. Eu sempre tive aquele
pragmatismo, a realidade à nossa volta é o que é e sempre fui uma pessoa que se
integrou naquele meio, mas no fundo sempre tive este sentido de voltar a
contribuir para o judaísmo português e foi isso que ao longo dos anos me guiou
e continuei ligado ao rabinato com a ideia de um dia voltar a contribuir para o
judaísmo português.
É interessante porque em relação a Nova Iorque, hoje em
dia associamos a uma sociedade de maioria asquenaze, mas a primeira sinagoga de
Nova Iorque foi fundada por judeus portugueses, vindos do Brasil para o que na
altura era Nova Amesterdão.
Como disse eu tive uma carreira profissional paralela com
o judaísmo...
Qual é, já agora?
Tem a ver com TI, “big data”, analítica, etc.
Mas aquele chamamento que referi antes, de contribuir
para o judaísmo português começou uns 10 anos atrás, quando eu contactei um
pouco mais com as comunidades portuguesas, quando morava em Nova Iorque e
depois em Londres e aí envolvi-me mais com o rabinato, indo a Amesterdão, para
contribuir de uma forma mais forte com o rabinato de Amesterdão, e aí surgiu a
ideia de fazer um projecto maior em relação ao judaísmo português e acho muito
interessante o que está a acontecer em Portugal em geral, não só em relação ao
judaísmo, mas em relação ao que acontece no turismo e em tudo o mais, o que
cria oportunidades para o judaísmo português criar projectos mais ambiciosos, e
então foi isso que me entusiasmou para essa oportunidade, temos uma ligação
através de um judeu português nova-iorquino e fizemos esta ligação e as coisas
acabaram acontecendo.
Teve algum
contacto com o anterior rabino Eliezer di Martinno?
Sim, estive cá em Portugal para visitar há alguns anos
atrás e conheci-o.
Ele deu-lhe alguns
conselhos?
Sim, deu. Muitos dão conselhos. Nas comunidades judaicas
todos têm conselhos para dar, mas os conselhos do rabino Eliezer são especiais,
obviamente.
Quais são as
prioridades, perspectivas e a realidade actual da comunidade em Lisboa?
Acho que a comunidade em Lisboa tem um legado muito
importante, tem uma história muito rica, tem tradições, mas o que aconteceu ao
longo dos últimos 20 anos, não só em relação a Portugal, mas em geral, com a
globalização e a internet, a ligação às outras comunidades, ao Estado de Israel
e tudo o mais… Acho que o judaísmo hoje – como as outras religiões – está a
tentar usar as redes sociais e outras coisas para conectar com a realidade
global do judaísmo hoje em dia.
Então acho que temos muito para criar em relação a
infraestrutura judaica, em relação à disponibilidade de alimentos kasher, para
a dieta judaica, o ensino e a educação judaica, temos de criar algumas
estruturas. A ideia é criar uma estrutura judaica mais forte em Lisboa,
recolocar o judaísmo português no mapa do judaísmo mundial.
Não é fácil ser
judeu em Portugal... Se quiser ir jantar ou almoçar fora, tem escolhas muito
limitadas, imagino...
Exacto. Claro que o nível de conexão dos judeus ao
judaísmo varia muito entre as pessoas, e a nossa comunidade não é diferente.
Mas as pessoas que vivem de acordo com os princípios judaicos e aqueles que vêm
visitar e se interessam por poder vir viver para Portugal, eles sim querem
saber desse tipo de coisas. Temos muito trabalho a fazer em relação a
isso.
Existem muitas oportunidades que nos vão ajudar a criar
esta infraestrutura de que tanto precisamos.
Sabemos que há
muitos estrangeiros a vir viver para Portugal. Isso tem tido reflexos já na
comunidade em Lisboa?
Sim, muito grande! Em relação ao turismo, obviamente,
segundo os últimos números que vi, recebemos cerca de cinco mil turistas o ano
passado na comunidade de Lisboa.
São turistas
judeus que vão aos serviços, ou apenas pessoas interessadas em visitar a sinagoga?
Inclui também pessoas que vêm só visitar a sinagoga, mas
é um turismo judaico, muitos desses vêm e participam nos serviços na sinagoga.
Inclui pessoas que vêm do Brasil, de França e outros países, então quase todos
os dias recebemos emails de pessoas à procura de hotel, ou de comida kasher.
Isso acordou a nossa comunidade em relação à oportunidade para podermos usar
isso como maneira para criar infraestrutura, também, e que sirva a nós e para
esta oportunidade que está a acontecer agora.
Há três principais
polos da comunidade judaica em Portugal, Lisboa, Porto e Belmonte. Como estão
as relações entre as três?
A nível de comunidades, não é bem o meu departamento,
seria de perguntar ao Presidente da comunidade. Mas a nível de rabinato, eu
estive em contacto directo agora com o rabino do Porto, estou em contacto com
ele quase diariamente. É uma coisa que queremos realmente fortalecer. A
comunidade do Porto aprendeu até mais cedo em relação às oportunidaes que esta
dinâmica pode gerar e criaram uma infraestrutura que até é um bom início para
Portugal, e estamos a colaborar.
Como as comunidades não são assim tão grandes, temos de
nos unir para criar esta realidade nova que tanto queremos.
Tem-se falado
muito nos últimos anos de uma lei nova que permite atribuir cidadania
portuguesa a judeus sefarditas que possam comprovar a sua ascendência
portuguesa. Essa lei tem tido já reflexos na prática? Há números? Aplica-se a
si, por exemplo?
No meu caso eu já tenho na família, sem ter tido que aproveitar
esta lei.
Em relação a números, não os tenho, mas vejo que existe e
está-se a gerar este interesse. Acho interessante e é isso que quero fazer,
temos de usar esta lei como oportunidade para criar esta comunidade em
Portugal. Mas tudo isto gera um interesse ainda maior e atrai turistas com o
interesse de eventualmente virem a viver em Portugal, o que tem ajudado também.
Saindo agora da
realidade exclusivamente portuguesa, olhando mais para o mundo e para a Europa,
há casos no norte e no centro da Europa que parecem ser preocupantes ao nível
da liberdade religiosa. Estou a falar de tentativas de proibir ou limitar o
abate ritual de animais e a circuncisão, o que afecta tanto comunidades
judaicas como muçulmanas. Tem acompanhado estes debates? Qual a sua opinião
sobre esta tendência?
Temos acompanhado isso, mas antes de falar sobre o que
está a acontecer lá, acho importante começar por colocar ênfase no que está a
acontecer de positivo em Portugal, e nós congratulamo-nos muito pelo facto de
não ter que lidar com este tipo de realidade em Portugal, o antissemitismo cá
não é uma coisa que se sinta e isso é uma coisa muito importante que tem de ser
dita.
Em relação ao que acontece lá, acho que sim, assistimos a
isso, mas ao mesmo tempo não existe só o ângulo judaico e religioso, o que está
a acontecer no mundo todo e na Europa também, em relação a mudanças, desde
extrema-direita ou radicalismo de todos os lados, isso tem uma influência
indirecta no que está a acontecer lá. Isto é uma coisa que nós, não só judeus,
mas todos, portugueses e cidadãos da Europa, temos de acompanhar e perceber o
que está a criar isso, para ver se não evolui de uma maneira negativa.
Sendo, na sua
opinião, um desenvolvimento negativo, tem apresentado também oportunidades que
- dado o contexto internacional actual - podem ser positivas, de união entre as
comunidades judaicas e muçulmanas, sabendo também que a Igreja Católica nesses
países tem apoiado os judeus e muçulmanos nas suas reivindicações…
Exacto. Isso é muito interessante. As circunstâncias e os
desafios em relação à religião em geral podem nos unir e perceber o que temos
em comum e não as diferenças.
Vemos de facto isso a acontecer na Holanda, na Bélgica e
noutros países, onde estamos a colaborar e esse diálogo é também muito
importante, porque começa em relação a assuntos de interesse mútuo, mas que
começam a criar uma realidade de maior comunicação entre as religiões, o que me
parece muito positivo.
Em Portugal as
relações entre diferentes confissões religiosas sempre foram, segundo sei,
exemplares. Isso mantém-se?
Sim! A Comunidade Israelita de Lisboa tem relações muito
positivas com a comunidade Islâmica. Eu cheguei recentemente e então ainda não
tive oportunidade de participar, mas o nosso interesse é de manter este legado
de relações positivas.
Embora não sejam a
mesma realidade, é impossível separar o que se passa em Israel das comunidades
em cada país. Recentemente houve novamente um foco de conflito sobre Jerusalém
ser a capital de Israel... Isso acaba por afectar os judeus em todo o mundo.
Qual é a sua opinião sobre esse debate?
A questão de Jerusalém, fora do ponto de vista político e
do que isso significa para o conflito ou a realidade do Médio Oriente... Para
nós, povo judeu, Jerusalém é a nossa capital religiosa, a cidade que significa
tudo para o judaísmo e para a nossa história.
Existe essa realidade, mas depois existe a realidade geopolítica
e o que acontece no Médio Oriente não me cabe a mim, enquanto rabino na
diáspora, comentar. No fim de contas o mais importante é pôr de parte o ângulo
político e reconhecer a conexão do povo judeu com a cidade de Jerusalém. Estas
questões políticas de vez em quando influenciam-nos a questionar coisas que não
são questionáveis, em relação à nossa conexão com Jerusalém, é uma coisa que
não se deve questionar. Agora, ser ou não ser a capital de um Estado judeu, é
um departamento diferente. Sem misturar as coisas, o importante é reconhecer a
nossa relação com a cidade de Jerusalém. Mas cabe aos órgãos políticos resolver
a questão do estatuto de Jerusalém.
Em quase todos os
países onde estiveram os judeus acabaram por se ver na condição de refugiados.
Nessa perspectiva, o que têm a dizer sobre a actual crise de refugiados na
Europa?
O povo judeu encontrou-se várias vezes, ao longo da
história, numa posição de refugiados. Se há algum povo que pode compreender a
situação dos refugiados e o quão difícil isso é, somos nós.
Acho que também, em ligação com o que falámos antes, o
que está a acontecer na Europa em geral, e as mudanças geopolíticas, estas
coisas têm de ser lidadas de forma a não influenciar negativamente a situação
geopolítica em geral. Mas em relação a ajudar o próximo, ajudar os refugiados,
é nosso dever fazê-lo, obviamente de uma maneira que não crie outros problemas.
A Europa ainda está a aprender a lidar com este influxo, uma realidade nova, em
relação ao número de pessoas, mas como em tudo, acho que estamos na direcção certa
e temos de aprender como foram as coisas nos últimos anos e contribuir de uma
forma mais positiva.
As relações entre
o judaísmo e a Igreja Católica têm mudado muito nas últimas décadas, desde o
concílio Vaticano II, no seu entender como caracteriza essas relações hoje em
dia no geral e em Portugal.
Pessoalmente não tive muito convívio com estas relações
em Portugal, ainda, mas obviamente acho que está acontecer que a Igreja
Católica, até com o Papa Francisco, é uma pessoa que está a utilizar e a perceber
a nova realidade do mundo e a usar isso de uma maneira a ajudar e a facilitar a
reconexão com a religião.
Acho que isso é uma coisa muito positiva e que é o que
todas as religiões, e nós também, no judaísmo, estamos a tentar perceber, como
garantir a continuidade judaica para as nossas próximas gerações e como
envolver as pessoas. E acho que temos muito para contribuir uns para os outros.
Em relação a relações específicas, no nosso contexto de
comunidade, sempre foi positivo e gostaríamos de continuar a trabalhar junto
com a Igreja Católica em Portugal. Temos muito mais que nos une do que
diferenças e temos de nos focar nisso e nos aspectos positivos do futuro.
É casado?
Sim.
E tem filhos?
Sim.
Quando o rabino di
Martino saiu fiz-lhe uma entrevista de "fim de carreira" em Portugal
e o que ele disse foi que ele queria ir para um sítio onde fosse mais fácil as
suas filhas terem uma vida social mais judaica. Isso é algo que o preocupa?
Sim... De certa maneira sim...
Mas nós temos filhos mais velhos, que vivem nos Estados
Unidos, porque ainda temos uma casa lá. Mas o mais novo, que vive connosco, tem
uma distância muito grande dos outros. Então o problema é apenas com um, e não
são tantos.
Mas eu acho que há um aspecto positivo, para mim é um
desafio. Vir cá a Portugal para que daqui a cinco anos a realidade judaica seja
a mesma que de hoje em dia, não é o que vim cá fazer. Eu tenho também interesse
em criar um projecto que mude esta realidade, porque eu tenho também um filho
cá.
Trazendo o meu filho para cá dá-me ainda mais um sentido
da responsabilidade de criar um projecto que vai dar frutos e, eventualmente,
criar uma educação judaica em Portugal, uma comunidade maior. Se Deus quiser
vamos criar isto.
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