Monday, 9 March 2015

"Rezar numa língua que não se entende pode-se transformar numa cacofonia"

Paulo VI a celebrar missa pós-conciliar
Transcrição integral da entrevista ao padre Luís Manuel Pereira da Silva, sobre a abertura da liturgia ao vernáculo. A reportagem está aqui. Ver também a entrevista, no sentido contrário, ao padre Manuel Vaz Patto.

Faz 50 anos que Paulo VI celebrou a primeira missa no vernáculo. Que diferença é que isto fez na vida dos católicos?
Foi uma das grandes realizações da reforma que o concílio promoveu, o acesso às línguas vernáculas. É certo que o concílio não acabou com a missa em latim, ela sempre foi possível, inclusive o missal de Paulo VI também está em latim, e sempre a Igreja teve a faculdade de celebrar o latim, se se justificar.

Todavia, o Papa Paulo VI celebrar pela primeira vez no vernáculo é uma forma de chancelar toda uma reforma litúrgica que estava a ser empreendida e que era um desejo de grandes sectores da Igreja.

Antes do concílio o Movimento Litúrgico, uma das ideias e sugestões que fazia à Santa Sé era para que a celebração fosse na língua que as pessoas percebessem.

Rezar numa língua que não se entende pode-se transformar numa cacofonia. A prova disso é que as pessoas, quando queriam rezar, rezavam na sua língua própria. Rezavam o terço, tinham orações nos missais em português, porque é a forma de expressão.

Aliás a Igreja reza, em cada sítio, conforme a língua que usa, tal como no tempo de Jesus e tal como na história da salvação. Quando o povo de Deus falava aramaico ou hebraico, rezava em hebraico e escreveu parte da Bíblia em hebraico.

No tempo de Jesus, a língua maioritária do Império Romano era o grego, tanto que a Igreja nascente celebrou em grego até ao Papa Dâmaso e o Papa Dâmaso morre no século IV. Por isso é que os Evangelhos, à excepção do Evangelho de São Mateus, estão escritos em grego.

Quando o latim começou a ser a língua maioritária a Igreja também começou a rezar em latim. O que se sucedeu é que a liturgia continua a ser celebrada em latim, uma língua que o povo cada vez mais não percebia, sobretudo a partir do século IX, quando começam a surgir as línguas nacionais. O que depois se sentiu, e cada vez mais se acentuou, foi um desfasamento entre a língua oficial da liturgia e a língua em que o povo reza, canta e louva o senhor.

Portanto, voltar à língua vernácula é voltar ao contexto natural, porque não há línguas sagradas. Nosso Senhor não falou latim. Não era a língua do seu tempo. Quando vemos algumas tendências para endeusar o latim… Hoje em dia quem é que entende o latim e se expressa em latim? Ninguém.

A oração é a oração do povo de Deus, unido à sua cabeça que é Cristo. E cada povo tem a sua língua, cada povo tem a sua forma de se expressar e a celebração em vernáculo é uma consequência natural de uma oração que se quer participada pela comunidade, conscientemente celebrada, conscientemente vivida e que se torna, como diz o Concilio, a glorificação de Deus e a santificação do homem.

Faria sentido haver algumas orações das missas em latim, como sinal de unidade a nível global?
É uma possibilidade e é uma prática já que existe.

Nas grandes celebrações internacionais o Ordo, o Kyrie, o Santo e o Agnus Dei muitas vezes são em latim. Às vezes o Pai Nosso, o Credo ou o Glória, mas o Credo e o Glória, como hino e como afirmação de fé, mesmo nas celebrações internacionais, se quisermos ser objectivos, em que estejam 100 mil pessoas, dessas quem é que entende o latim? É o querer manter uma coisa, a meu ver, que não faz contexto.

Aliás o motu próprio de Bento XVI diz isso com clareza, logo ao princípio. Quando a assembleia e o grupo celebrante percebe o latim, justifica-se. Quando isso não acontece, não há condições reunidas para se manter. Portanto eu, que até defendo essas grandes orações, acho que não é por isso que há mais unidade. A unidade faz-se à volta do mistério que celebramos. As outras formas são apenas formas de celebrar.

Quem vê as celebrações de Fátima vê que é muitas vezes assim. Na Santa Sé, chega-se a certos momentos e reza-se em latim, sem problema nenhum.

Os documentos do CVII promovem o vernáculo, mas de modo algum prescrevem o latim. Na prática viu-se o quase desaparecimento total do latim da vida diária dos fiéis. Foi-se longe de mais?
Não. Seguiu o curso natural das coisas. O contexto do Sacrosanctum Concilio é de 1963 e portanto na Igreja que ainda não tinha optado pelo vernáculo, não podia dizer outra coisa. A prática das comunidades cristãs, das conferências episcopais, da realidade da Igreja, é que ajudou a aclarar o que aconteceu. De facto, as pessoas optaram pela língua vernácula.

Veja, em Lisboa, houve missa em latim durante décadas depois do concílio, concretamente na Igreja de Santo António, e acabou porque não tinha povo. Manteve-se, porque era permitido, era normal e depois teve de acabar, porque não vinha ninguém.

Portanto não foi um abuso, nem um ir para lá do que diz o concílio. Foi um actualizar o que o concílio abre e responder às necessidades e à tendência que havia na Igreja.

Mas o latim continua a ser uma língua importante para a Igreja…
Claro que o latim continua a ser a língua oficial da Igreja, porque os documentos principais estão escritos em latim. Mas depois o que é que se tem de fazer? Traduzir tudo para as línguas vernáculas. Quem é que lê, hoje, uma encíclica do Papa em latim?

Um grupo que saiba latim e que reze em latim, tudo bem. De resto, pode-se tornar o pegar numa coisa para fazer dela um ex-libris, mas de quê?

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