Paulo VI a celebrar missa pós-conciliar |
Transcrição integral da entrevista ao padre Luís Manuel
Pereira da Silva, sobre a abertura da liturgia ao vernáculo. A reportagem está aqui. Ver também a entrevista, no sentido contrário, ao
padre Manuel Vaz Patto.
Faz 50 anos que
Paulo VI celebrou a primeira missa no vernáculo. Que diferença é que isto fez
na vida dos católicos?
Foi uma das grandes realizações da reforma que o concílio
promoveu, o acesso às línguas vernáculas. É certo que o concílio não acabou com
a missa em latim, ela sempre foi possível, inclusive o missal de Paulo VI
também está em latim, e sempre a Igreja teve a faculdade de celebrar o latim,
se se justificar.
Todavia, o Papa Paulo VI celebrar pela primeira vez no
vernáculo é uma forma de chancelar toda uma reforma litúrgica que estava a ser
empreendida e que era um desejo de grandes sectores da Igreja.
Antes do concílio o Movimento Litúrgico, uma das ideias e
sugestões que fazia à Santa Sé era para que a celebração fosse na língua que as
pessoas percebessem.
Rezar numa língua que não se entende pode-se transformar
numa cacofonia. A prova disso é que as pessoas, quando queriam rezar, rezavam
na sua língua própria. Rezavam o terço, tinham orações nos missais em
português, porque é a forma de expressão.
Aliás a Igreja reza, em cada sítio, conforme a língua que
usa, tal como no tempo de Jesus e tal como na história da salvação. Quando o
povo de Deus falava aramaico ou hebraico, rezava em hebraico e escreveu parte
da Bíblia em hebraico.
No tempo de Jesus, a língua maioritária do Império Romano
era o grego, tanto que a Igreja nascente celebrou em grego até ao Papa Dâmaso e
o Papa Dâmaso morre no século IV. Por isso é que os Evangelhos, à excepção do Evangelho
de São Mateus, estão escritos em grego.
Quando o latim começou a ser a língua maioritária a
Igreja também começou a rezar em latim. O que se sucedeu é que a liturgia
continua a ser celebrada em latim, uma língua que o povo cada vez mais não
percebia, sobretudo a partir do século IX, quando começam a surgir as línguas
nacionais. O que depois se sentiu, e cada vez mais se acentuou, foi um
desfasamento entre a língua oficial da liturgia e a língua em que o povo reza,
canta e louva o senhor.
Portanto, voltar à língua vernácula é voltar ao contexto
natural, porque não há línguas sagradas. Nosso Senhor não falou latim. Não era
a língua do seu tempo. Quando vemos algumas tendências para endeusar o latim… Hoje
em dia quem é que entende o latim e se expressa em latim? Ninguém.
A oração é a oração do povo de Deus, unido à sua cabeça
que é Cristo. E cada povo tem a sua língua, cada povo tem a sua forma de se
expressar e a celebração em vernáculo é uma consequência natural de uma oração
que se quer participada pela comunidade, conscientemente celebrada,
conscientemente vivida e que se torna, como diz o Concilio, a glorificação de
Deus e a santificação do homem.
Faria sentido
haver algumas orações das missas em latim, como sinal de unidade a nível global?
É uma possibilidade e é uma prática já que existe.
Nas grandes celebrações internacionais o Ordo, o Kyrie, o
Santo e o Agnus Dei muitas vezes são em latim. Às vezes o Pai Nosso, o Credo ou
o Glória, mas o Credo e o Glória, como hino e como afirmação de fé, mesmo nas
celebrações internacionais, se quisermos ser objectivos, em que estejam 100 mil
pessoas, dessas quem é que entende o latim? É o querer manter uma coisa, a meu
ver, que não faz contexto.
Aliás o motu próprio de Bento XVI diz isso com clareza, logo ao princípio. Quando a
assembleia e o grupo celebrante percebe o latim, justifica-se. Quando isso não
acontece, não há condições reunidas para se manter. Portanto eu, que até
defendo essas grandes orações, acho que não é por isso que há mais unidade. A
unidade faz-se à volta do mistério que celebramos. As outras formas são apenas
formas de celebrar.
Quem vê as celebrações de Fátima vê que é muitas vezes assim.
Na Santa Sé, chega-se a certos momentos e reza-se em latim, sem problema
nenhum.
Os documentos do
CVII promovem o vernáculo, mas de modo algum prescrevem o latim. Na prática viu-se
o quase desaparecimento total do latim da vida diária dos fiéis. Foi-se longe
de mais?
Não. Seguiu o curso natural das coisas. O contexto do Sacrosanctum Concilio é de 1963 e portanto na Igreja que ainda não tinha optado pelo
vernáculo, não podia dizer outra coisa. A prática das comunidades cristãs, das
conferências episcopais, da realidade da Igreja, é que ajudou a aclarar o que
aconteceu. De facto, as pessoas optaram pela língua vernácula.
Veja, em Lisboa, houve missa em latim durante décadas depois
do concílio, concretamente na Igreja de Santo António, e acabou porque não
tinha povo. Manteve-se, porque era permitido, era normal e depois teve de
acabar, porque não vinha ninguém.
Portanto não foi um abuso, nem um ir para lá do que diz o
concílio. Foi um actualizar o que o concílio abre e responder às necessidades e
à tendência que havia na Igreja.
Mas o latim continua a ser uma língua importante para a
Igreja…
Claro que o latim continua a ser a língua oficial da Igreja,
porque os documentos principais estão escritos em latim. Mas depois o que é que
se tem de fazer? Traduzir tudo para as línguas vernáculas. Quem é que lê, hoje,
uma encíclica do Papa em latim?
Um grupo que saiba latim e que reze em latim, tudo bem.
De resto, pode-se tornar o pegar numa coisa para fazer dela um ex-libris, mas de
quê?
No comments:
Post a Comment