Monday 6 March 2023

Honestidade e inteligência exige-se (a bispos e a jornalistas)

Comecemos por reconhecer um facto inescapável. A conferência de imprensa de sexta-feira foi um desastre. Mas não foi um desastre em termos de conteúdo, tanto quanto um desastre em termos de forma.

Começou com a leitura de um comunicado cheio de frases corridas, quando o que se pedia era uma nota mais sucinta e por pontos, do estilo: “Estas são as medidas que vamos implementar para abordar e resolver este problema.”

Depois veio D. José Ornelas, de quem tenho boa impressão enquanto homem e pastor, mas que falou de forma confusa e pegou em todas as perguntas exactamente ao contrário daquilo que se exigia.

Questionado sobre o que fará com as listas dos nomes de padres alegadamente abusadores, o bispo disse algo do género: “Vai ser muito difícil, em alguns casos só temos nomes, sem factos, e não podemos suspender as pessoas assim, porque toda a gente tem direito à presunção de inocência, mas claro que vamos investigar”.

A resposta que se exigia seria algo assim: “Que ninguém tenha dúvidas de que os bispos irão fazer tudo o que estiver ao seu alcance para identificar e investigar rigorosamente todos os nomes nesta lista. Tal como está previsto no direito canónico, e como tem sido prática nas dioceses há muitos meses, em todos os casos em que a acusação seja considerada minimamente credível, o padre em questão será imediatamente suspenso preventivamente para que possa decorrer o devido processo canónico.

Dito isto, lamentamos que em muitos casos o nosso trabalho seja dificultado pelo facto de termos recebido da Comissão Independente unicamente uma lista de nomes, sem qualquer enquadramento, alegações ou factos que o acompanhem. Contudo, reafirmo que tudo faremos para investigar com o rigor possível os nomes em causa e convidamos as vítimas, tanto as que já falaram com a comissão, como as que ainda não o fizeram, a contactarem as respectivas dioceses para colaborar com essas investigações, fornecendo os detalhes possíveis, para ajudar nessa investigação e para que assim se possa fazer justiça”.

Estas respostas dizem essencialmente a mesma coisa, mas uma mostra vontade de chegar à verdade e outra dá primazia aos obstáculos e às dificuldades.

Porque vamos ser francos, esses obstáculos existem. Como tive oportunidade já de dizer em quase todos os comentários que tenho feito sobre este assunto na televisão e na rádio, não há muito para inventar aqui por parte dos bispos. Eles só têm de colocar em prática as normas que já existem e que têm sido implementadas noutros países com grande sucesso. No caso de haver uma acusação esta é analisada; no caso de ser uma acusação credível o padre é imediatamente suspenso de forma preventiva e impedido de ter qualquer contacto com crianças ou pessoas vulneráveis enquanto se investiga para ver se há matéria para se fazer um julgamento ou não. Caso haja, o padre é julgado (hoje em dia com bastante celeridade), caso contrário, o processo é arquivado. Simples.

Agora, esses indícios e essa matéria têm de existir. Não basta um nome escrito numa folha de papel. Pelo que pergunto, não será possível a comissão fornecer mais dados sem comprometer o anonimato das vítimas? O relatório está recheado de detalhes de abusos que são claramente credíveis. Descrevem o espaço em que o alegado abuso aconteceu, o ambiente, a época ou mesmo o ano. Essa informação não pode, pelo menos nalguns casos, acompanhar o nome? Parece-me estranho que isso não seja possível, ainda que nalguns casos possa existir o risco de isso levar à identificação da vítima por parte de quem conhece as situações.

O problema, para além da forma da comunicação pelos bispos, é que nas semanas que se passaram desde a publicação do relatório criou-se uma expectativa desmedida sobre o que iria acontecer aos padres nomeados na lista. Eu avisei contra isso várias vezes, incluindo na conversa com o Octávio Carmo, no podcast Hospital de Campanha. Nunca iria acontecer os nomes serem simplesmente transpostos para a base de dados das dioceses e riscados da lista. Há processos a seguir, sob risco de transformarmos a justiça numa caça às bruxas.

Isto é uma coisa tão evidente, que me espanta muitos jornalistas terem embarcado na narrativa de “afinal a Igreja não vai suspender os padres suspeitos”, quando ninguém disse isso. O que se disse foi que essa suspensão não pode ser automática e sem bases, tem de existir alguma informação para além da simples existência do nome numa lista.

Penso que enquanto sociedade temos, por isso, o direito a pedir honestidade e inteligência aos jornalistas que tratam estes assuntos e aos comentadores. As noções de presunção de primazia do direito e do processo jurídico são basilares numa sociedade que se quer justa e todos ficamos a ganhar quando isso é respeitado.

Dito isto, também é justo pedir honestidade e inteligência aos bispos, sendo que aqui a palavra honestidade pode ser substituída por transparência. Já que estoiraram magnificamente a oportunidade de esclarecer as pessoas e marcar a vossa posição na conferência de imprensa, tomem medidas rápidas para mostrar aos portugueses que estão comprometidos com a justiça e com a verdade.

Há três dias que receberam as ditas listas. Bastaram horas para que a diocese do Funchal publicasse um comunicado em que diz muito claramente que a lista que recebeu contém quatro nomes, um dos quais é desconhecido e que nenhum dos outros exerce funções na Igreja actualmente.

Porque razão as restantes dioceses não publicaram já comunicados neste sentido? Neste momento há uma boa parte dos portugueses que pensa que os bispos meteram a lista na gaveta e que a tencionam ignorar. Mostrem que isso não é assim. Publiquem os dados que têm – não é preciso publicar nomes ainda – e periodicamente vão dando conta dos progressos. Quando uma acusação for considerada credível e o padre for suspenso preventivamente, conforme está estabelecido, publiquem um comunicado a informar quem foi e porquê, como tem acontecido recentemente em várias dioceses com casos de suspeita de abusos, incluindo alguns em que o suspeito acabou por ser ilibado ou viu o caso arquivado. Depois, deixem o processo seguir o seu curso e publicitem o seu resultado, seja qual for.

E por amor de Deus, contratem alguém que vos ajude na comunicação. Seja a nível diocesano – sei que alguns já o fizeram – seja a nível da CEP. Eu sei que custa dinheiro, mas é nestas alturas que se percebe que é dinheiro bem gasto.

O resto do país pode não ter esta noção, mas eu tenho acompanhado isto há muitos anos e tenho visto claramente uma evolução na forma como a Igreja em Portugal lida com alegações e casos de abusos. Sei que há muito trabalho feito e muito terreno ganho. Não deixem que, pelo menos na opinião pública, tudo isso seja deitado a perder por causa de uma conferência de imprensa que correu mal.  

4 comments:

  1. "em todos os casos em que a acusação seja considerada minimamente credível" - será que é para que "padre em questão será imediatamente suspenso preventivamente para que possa decorrer o devido processo canónico" ?????

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  2. Quando se fala de padres suspeitos que continuam em funções, não se percebe se falamos da Igreja ou do futebol português.

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  3. Miguel Baptista7 March 2023 at 17:02

    Tem toda a razão, cometeram os erros todos que podiam. É urgente começar a dizer as coisas certas e pela ordem certa, caso contrário haverá danos enormes.

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  4. Claramente precisavam de te contratar! Obrigada Filipe pela clareza das tuas palavras e boa ajuda a interpretar o que se passa na comunicação social!

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