James Matthew Wilson |
Uma pergunta feita pelos meus filhos fez-me lembrar uma música que lhes canto todos os dias, de manhã, desde que me lembro. É a mesma música que a minha mãe me cantava, naquelas manhãs desagradáveis da minha juventude, para amortecer a dura realidade do despertar. Deixem-me repetir: canto esta música praticamente todos os dias.
Mas aqui estava eu, numa tarde de Advento, e não me
conseguia lembrar da letra. Algumas partes sim, mas outras claramente estavam
erradas. Por mais que tentasse, não me conseguia lembrar de tudo.
Porém, no dia seguinte, às 6h30, entrei na escuridão do
quarto dos meus filhos e cantei-a de cor. As palavras vieram-me sem pensar e
sem esforço. “Bom dia, bom dia, está uma linda manhã” (trata-se de uma variação
do “Good Morning” do filme Singing in the Rain, de 1952).
Estamos perante um caso daquilo que aprendi a chamar
memória somática: a mansão que é a mente, em que nos podemos perder nos
pensamentos, abstraídos, como se nos esquecêssemos completamente do nosso corpo
– na verdade não permite tal esquecimento. Podemos divagar sobre os anjos, mas os
intelectos humanos são feitos para depender do corpo. Dependemos do corpo para
aprender o que quer que seja; este é o meio através do qual obtemos algo da
solidez do mundo exterior para o grande interior do intelecto. Mas isso é só o
começo. Corpo e alma formam um só.
O bispo Robert Barron escreve sobre esta unidade no seu
excelente livro “The
Strangest Way”, rejeitando uma separação que para muitos é tentadora.
Estamos habituados a pensar nas coisas corporais como animalescas e inferiores,
e das coisas da mente como espirituais e dignas. Frequentemente menosprezamos a
bondade dos actos exteriores, por exemplo, caso não tenham sido intencionadas
pela mente, e louvamos as intenções interiores, ainda que não se cumpram
através de um acto corporal.
Barron discorda. São Tomás diz-nos que a alma é a forma
do corpo. Logo, não existe nenhum lugar em que o corpo esteja, mas a alma não.
Se é esse o caso, então a prática da fé, as acções muito físicas do corpo em
oração – o joelho dobrado, as mãos juntas, as palavras nos lábios – ou nas
obras da misericórdia, são elas mesmas práticas da alma.
A encarnação de Cristo, que é simultaneamente
inteiramente Deus e inteiramente homem, é um evento singular, sem precedentes e
irrepetível. E, porém, revela também algo universal sobre a realidade em geral.
O Logos, o Verbo criador, de Deus, tem primazia sobre o mundo material que gera.
Todavia, enquanto o mundo desta criação é inferior ao espírito não criado de
Deus, o mundo não é de forma alguma meramente acidental. Expressa em si mesmo
algo da verdade sobre Nosso Senhor e, na realidade, é um dos caminhos através
dos quais regressamos para Ele e o vimos a conhecer. “Cada criatura é, em si
mesma, uma teofania”, escreve Henri de Lubac.
O mundo material é uma revelação da glória divina. Na
verdade, essa forma provou ser tão adequada que o próprio Senhor, na pessoa de
Jesus Cristo, se revelou a nós na carne. Os cristãos são chamados a respeitar a
matéria corporal da criação na sua capacidade de revelar Deus. Somos ainda
chamados a respeitar a matéria corporal da criação, na medida em que não é
Deus, mas uma realidade posta em moção pelo acto amoroso de criação de Deus.
No maravilhoso romance de G. K. Chesterton “O Napoleão de
Notting Hill”, todos os países do mundo foram absorvidos pela ordem única e
unificada da civilização britânica. Até a Nicarágua (pequena, mas recalcitrante
e patriótica) foi colocada em ordem pela “civilização cosmopolita” do
“secretário universal” de Inglaterra, o Rei.
Para Quin tudo isto não passa de uma piada. Mas um jovem
chamado Adam Wayne dedica-se de corpo e alma ao programa e em breve dá por si a
liderar Notting Hill numa rebelião corajosa para preservar a sua vetusta terra
das invasões da razão universal, que aqui assumem a forma de uma importante
estrada. Wayne entende o seu bairro nativo como algo poético, uma pura “Terra
de Elfos”, onde “os candeeiros da rua” são “coisas tão eternas como as
estrelas”. O corpo particular de um lugar particular deve ser reverenciado por
si mesmo e pela beleza transcendental que revela aos olhos daqueles que o
querem bem.
Esta personagem de Chesterton tem algo do conservadorismo
de Burke, na forma como encarna essa sua frase batida do amor pelo “pequeno
pelotão a que pertencemos na sociedade”. Mas o patriotismo local de Wayne é
também particularmente católico. Ele ama Notting Hill pela sua profundeza,
mistério e beleza – tudo coisas que o ajudam a melhor recordar e reverenciar
aquilo que os transcende.
Em reconhecimento pela cada vez maior interdependência
global, há muito que o ensinamento da Igreja clama por instituições
internacionais munidas daquilo a que Bento XVI chama “verdadeiros dentes”.
Porém, a Igreja também reconhece que o patriotismo local e a soberania são
verdadeiros bens que não devem ser absorvidos pela “regulamentação uniforme”,
as “soluções técnicas” ou, sobretudo, “economias de escala”, como argumenta o
Papa Francisco em Laudato Si’.
Nessa encíclica o Papa até pausa para apreciar as favelas
gigantescas das cidades da América Latina, enquanto lugares “capazes de tecer
laços de pertença e convivência que transformam a superlotação numa experiência
comunitária”.
Mesmo as particularidades mais esquálidas da carne em que
nascemos são dignas da nossa reverência, fidelidade e defesa. Só penetrando o
particular é que chegamos ao universal. Dele dependemos, tal como dependemos
dos nossos corpos fracos para desempenhar aqueles actos espirituais de
pensamento e de memória que iluminam ao som da música a escuridão da manhã.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no sábado, 15 de janeiro de 2022)
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