Wednesday, 19 January 2022

O Corpo de Notting Hill

James Matthew Wilson

Uma pergunta feita pelos meus filhos fez-me lembrar uma música que lhes canto todos os dias, de manhã, desde que me lembro. É a mesma música que a minha mãe me cantava, naquelas manhãs desagradáveis da minha juventude, para amortecer a dura realidade do despertar. Deixem-me repetir: canto esta música praticamente todos os dias.

Mas aqui estava eu, numa tarde de Advento, e não me conseguia lembrar da letra. Algumas partes sim, mas outras claramente estavam erradas. Por mais que tentasse, não me conseguia lembrar de tudo.

Porém, no dia seguinte, às 6h30, entrei na escuridão do quarto dos meus filhos e cantei-a de cor. As palavras vieram-me sem pensar e sem esforço. “Bom dia, bom dia, está uma linda manhã” (trata-se de uma variação do “Good Morning” do filme Singing in the Rain, de 1952).

Estamos perante um caso daquilo que aprendi a chamar memória somática: a mansão que é a mente, em que nos podemos perder nos pensamentos, abstraídos, como se nos esquecêssemos completamente do nosso corpo – na verdade não permite tal esquecimento. Podemos divagar sobre os anjos, mas os intelectos humanos são feitos para depender do corpo. Dependemos do corpo para aprender o que quer que seja; este é o meio através do qual obtemos algo da solidez do mundo exterior para o grande interior do intelecto. Mas isso é só o começo. Corpo e alma formam um só.

O bispo Robert Barron escreve sobre esta unidade no seu excelente livro “The Strangest Way”, rejeitando uma separação que para muitos é tentadora. Estamos habituados a pensar nas coisas corporais como animalescas e inferiores, e das coisas da mente como espirituais e dignas. Frequentemente menosprezamos a bondade dos actos exteriores, por exemplo, caso não tenham sido intencionadas pela mente, e louvamos as intenções interiores, ainda que não se cumpram através de um acto corporal.

Barron discorda. São Tomás diz-nos que a alma é a forma do corpo. Logo, não existe nenhum lugar em que o corpo esteja, mas a alma não. Se é esse o caso, então a prática da fé, as acções muito físicas do corpo em oração – o joelho dobrado, as mãos juntas, as palavras nos lábios – ou nas obras da misericórdia, são elas mesmas práticas da alma.

A encarnação de Cristo, que é simultaneamente inteiramente Deus e inteiramente homem, é um evento singular, sem precedentes e irrepetível. E, porém, revela também algo universal sobre a realidade em geral. O Logos, o Verbo criador, de Deus, tem primazia sobre o mundo material que gera. Todavia, enquanto o mundo desta criação é inferior ao espírito não criado de Deus, o mundo não é de forma alguma meramente acidental. Expressa em si mesmo algo da verdade sobre Nosso Senhor e, na realidade, é um dos caminhos através dos quais regressamos para Ele e o vimos a conhecer. “Cada criatura é, em si mesma, uma teofania”, escreve Henri de Lubac.

O mundo material é uma revelação da glória divina. Na verdade, essa forma provou ser tão adequada que o próprio Senhor, na pessoa de Jesus Cristo, se revelou a nós na carne. Os cristãos são chamados a respeitar a matéria corporal da criação na sua capacidade de revelar Deus. Somos ainda chamados a respeitar a matéria corporal da criação, na medida em que não é Deus, mas uma realidade posta em moção pelo acto amoroso de criação de Deus.

No maravilhoso romance de G. K. Chesterton “O Napoleão de Notting Hill”, todos os países do mundo foram absorvidos pela ordem única e unificada da civilização britânica. Até a Nicarágua (pequena, mas recalcitrante e patriótica) foi colocada em ordem pela “civilização cosmopolita” do “secretário universal” de Inglaterra, o Rei.

Mas um dia um pateta sem quaisquer capacidades chamado Auberon Quin é nomeado Rei e decide, por puro capricho, dedicar o resto da sua vida “a cultivar um sentido mais apurado de patriotismo local nos vários municípios de Londres”. Hammersmith, Kensington, Bayswater, Brompton e Notting Hill devem, por assim dizer, reavivar as suas antigas divindades, tradições e lealdades.


Para Quin tudo isto não passa de uma piada. Mas um jovem chamado Adam Wayne dedica-se de corpo e alma ao programa e em breve dá por si a liderar Notting Hill numa rebelião corajosa para preservar a sua vetusta terra das invasões da razão universal, que aqui assumem a forma de uma importante estrada. Wayne entende o seu bairro nativo como algo poético, uma pura “Terra de Elfos”, onde “os candeeiros da rua” são “coisas tão eternas como as estrelas”. O corpo particular de um lugar particular deve ser reverenciado por si mesmo e pela beleza transcendental que revela aos olhos daqueles que o querem bem.

Esta personagem de Chesterton tem algo do conservadorismo de Burke, na forma como encarna essa sua frase batida do amor pelo “pequeno pelotão a que pertencemos na sociedade”. Mas o patriotismo local de Wayne é também particularmente católico. Ele ama Notting Hill pela sua profundeza, mistério e beleza – tudo coisas que o ajudam a melhor recordar e reverenciar aquilo que os transcende.

Em reconhecimento pela cada vez maior interdependência global, há muito que o ensinamento da Igreja clama por instituições internacionais munidas daquilo a que Bento XVI chama “verdadeiros dentes”. Porém, a Igreja também reconhece que o patriotismo local e a soberania são verdadeiros bens que não devem ser absorvidos pela “regulamentação uniforme”, as “soluções técnicas” ou, sobretudo, “economias de escala”, como argumenta o Papa Francisco em Laudato Si’.

Nessa encíclica o Papa até pausa para apreciar as favelas gigantescas das cidades da América Latina, enquanto lugares “capazes de tecer laços de pertença e convivência que transformam a superlotação numa experiência comunitária”.

Mesmo as particularidades mais esquálidas da carne em que nascemos são dignas da nossa reverência, fidelidade e defesa. Só penetrando o particular é que chegamos ao universal. Dele dependemos, tal como dependemos dos nossos corpos fracos para desempenhar aqueles actos espirituais de pensamento e de memória que iluminam ao som da música a escuridão da manhã.


(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no sábado, 15 de janeiro de 2022)

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Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

 


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