Wednesday, 6 January 2021

Catolicismo e a Plenitude da Verdade

Casey Chalk
“Se tivermos de escolher entre abdicar da religião ou da educação”, afirmou o fundamentalista cristão e populista William Jennings Bryan, “então abdicaremos da educação”. É fácil rirmo-nos hoje de tamanho absurdo, embora Bryan, por mais falhas que tivesse, estivesse a defender o Cristianismo daquilo que considerava serem ataques modernistas e antirreligiosos da escola pública americana. Embora muitos protestantes tenham vergonha, hoje, do anti-intelectualismo de Bryan eu, como católico convertido do protestantismo, detecto uma perspectiva muito problemática na sua visão absolutista que contrapõe a fé á razão.

O teólogo italiano Mauro Gagliardi argumenta no seu livro “A Verdade é Sintética: Teologia Dogmática Católica”, que o Protestantismo opera segundo um modelo de “ou-ou” que vê a verdade como um conjunto de binários simplistas. Já a teologia católica emprega um princípio de “não só, mas também” que sintetiza diferentes realidades.

Gagliardi identifica dois princípios fundacionais do Protestantismo. O primeiro é biblicismo, a crença de que a Bíblia é auto-interpretativa. Mas “quando Lutero diz que a Bíblia se interpreta a si mesma ele quer dizer, de facto, que é o leitor individual que o interpreta. O leitor das Escrituras não precisa… da Tradição, do Magistério, dos Padres nem dos Doutores da Igreja”.

Os protestantes costumam responder que isso confunde a noção de “sola scriptura” de alguns evangélicos com a noção de “sola scriptura” do Protestantismo histórico. Esta última, afirmam, aprecia a necessidade de se interpretar a Bíblia à luz da tradição eclesial.

É verdade que alguns protestantes falam favoravelmente da tradição. Porém, como os filósofos católicos Bryan Cross e Neal Judisch argumentam, acaba sempre por ser o protestante como indivíduo quem decide quais são as tradições que devem ser normativas. Os protestantes adoram citar Santo Agostinho sobre a soteriologia, por exemplo, já não tanto sobre a eclesiologia ou a mariologia. Sem outro princípio unificador para além da Bíblia, o Protestantismo é inerentemente instável e frágil. “É por isso que, desde o início, o Protestantismo se dividiu em centenas de diferentes denominações, todas obviamente convencidas de que são os intérpretes corretos da palavra de Deus”, refere Gagliardi.

O segundo princípio fundamental do Protestantismo é a justificação, nomeadamente a crença de que o cristão se salva unicamente pela Graça de Deus, através da fé – daí os credos reformados da “sola gratia” e da “sola fide”. Gagliardi refere-se a isto como uma conceção de soteriologia totalmente passiva: “mesmo em relação à fé, a pessoa não é um agente positivo; é Deus quem dá o dom e também é Ele quem está activo no dom”.

Isto é ainda mais evidente na famosa doutrina teológica luterana de “simul justus et peccator” (simultaneamente justo e pecador), que ensina que mesmo depois do momento salvífico o cristão retém quer o pecado original quer todos os seus pecados pessoais.

Gagliardi argumenta que a doutrina protestante da justificação reflete a manifestação do princípio “ou-ou” na forma como opõe a humanidade e Deus. A salvação é ou uma obra humana ou divina, e por isso “é preciso escolher”. Uma vez que no homem não existe nada de bom, o agente inteiro e exclusivo na salvação é Deus. Vemos algo de semelhante nos ensinamentos luterano e calvinista sobre a predestinação: uma vez que o homem é impotente em relação ao seu destino eterno, é só Deus quem escolhe. De facto, Calvino popularizou a noção da “dupla predestinação”: em toda a eternidade é Deus quem determina quem será salvo e quem será condenado, independentemente da escolha.

Esta dinâmica é visível também na cristologia protestante, especificamente no que diz respeito à humanidade de Cristo. Gagliardi escreve: “se Cristo é o Salvador, e se nele falamos de mérito, então é devido ao facto de que a divindade do Logos habita na sua humanidade. Pode-se dizer que mesmo para Jesus é verdade que é Deus quem faz tudo, que o ser humano não faz nada”.

Segundo este sistema, a humanidade de Cristo não é um instrumento junto com a sua divindade que colabora verdadeiramente na redenção do homem, mas um tipo de recipiente em que Deus se revela. Isto conduz a uma antropologia muito diferente daquela que encontramos no Catolicismo.


Consideremos, por exemplo, a própria ideia de um santo. Ou, em alternativa, pensemos na diferença entre uma soteriologia protestante em que a fúria divina cai sobre um Cristo que se “faz pecado” por nós e uma soteriologia católica em que o Deus-homem se oferece a si mesmo como sacrifício perfeito de expiação.

O paradigma do “ou-ou” vê-se também na doutrina protestante de “soli deo gloria”. Uma vez que só Deus é digno de glória, não só se proíbe a veneração de santos, mas também a devoção mariana. A veneração de humanos, dizem os protestantes, detrai necessariamente da adoração devida a Deus. Os iconoclastas da Reforma acreditavam que as imagens, ícones e relíquias eram blasfemos e que deviam ser destruídos para bem da pureza litúrgica e eclesial. Os huguenotes franceses, por exemplo, destruíram as relíquias de Santo Ireneu de Lyon, um dos maiores padres da Igreja.

Tendo em conta estes exemplos (e outros), Gagliardi descreve o princípio “ou-ou” como “a assunção fundamental do Protestantismo” e explica:

A Palavra de Deus ou se encontra na Escritura ou na Tradição; logo, devemos escolher, e Lutero escolhe a Escritura, apagando a Tradição. A justificação acontece ou pela fé ou pelas obras humanas, por isso só a fé salva. A salvação é fruto ou da graça divina ou do mérito humano, por isso só a graça salva. Só se deve honrar a Cristo ou a Maria e aos santos, por isso, obviamente, escolhe-se Cristo. Por fim, a glória é devida a Deus ou a um ser humano.

O resultado desta oposição dialética é uma visão profundamente pessimista do homem, bem como a priorização do subjectivo sobre o objectivo.

Os católicos têm sido tentados frequentemente pelo mesmo pensamento dualista, quer isso se manifeste na importação de pensamento protestante, na nossa teologia ou na apresentação do pensamento e da prática católica como sendo uma coisa e não outra, ainda que não exista nenhum pronunciamento do magistério sobre o assunto. Porém, como argumenta Gagliardi, o Catolicismo é inerentemente sintético: a revelação é não só Escritura, mas também Tradição; a salvação requer não só acção divina, mas também humana; Deus é digno de adoração, mas os santos são dignos de veneração.  

O princípio de “não só, mas também” é o que mantém o Catolicismo católico, isto é, fiel à plenitude da Verdade.


Casey Chalk escreve para a Crisis MagazineThe AmericanConservative e a New Oxford Review. É licenciado em história e ensino pela Univesidade de Virgínia em tem um mestrado em Teologia da Cristendom College.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 5 de janeiro, de 2021)

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