Wednesday 3 June 2020

Conflito Total, a Toda a Hora

Francis X. Maier

Cerca de 60% dos americanos acredita na existência do Inferno. Para o benefício dos que não acreditam, temos assistido a uma réplica bem fiel nas nossas ruas desde 25 de Maio, quando um polícia assassinou George Floyd. Se o Inferno é uma imagem demasiado forte, pense antes na República de Weimar. Mas Inferno é mais próximo da verdade.

As pessoas tendem a pensar no Inferno como um lago de fogo, graças às Escrituras, ou então como nove círculos descendentes de tormenta, graças a Dante. Mas eu suspeito que o Inferno é ao mesmo tempo mais prosaico e mais aterrador. É mais próximo da resposta obtida por Fausto quando perguntou ao demónio Mefistófeles como é que conseguia sair do inferno, uma vez que tinha sido condenado. “Mas isto é o inferno”, respondeu o demónio, “eu não saí”.

Tal como o amor é a energia que alimenta o Ceu, a fúria – com todos os seus afluentes de confusão, desespero, frustração e conflito – irradia o inferno. Os condenados não podem escapar porque não podem escapar a si mesmos. O inferno tem a forma que eles próprios fizeram.

Mas o que é que isso tem a ver com os últimos dias (e noites) a que assistimos na América?

Henri de Lubac notou certa vez que, nos tempos modernos, o ódio pelos hereges diminuiu. Mas isso não se deve, disse ele, ao facto de os nossos corações se terem tornado mais caridosos. Simplesmente transferimos os nossos interesses e os nossos ódios para a política. A nossa verdadeira paixão hoje é o poder e a eliminação de tudo o que esteja entre nós e o seu exercício.

A revolta na América causada pela morte de George Floyd tem raízes profundas e legítimas. O racismo é um dos pecados primordiais da nossa nação. Os seus resíduos continuam a envenenar a nossa vida pública. Muitos dos motins a que assistimos ao longo da última semana resultam de uma explosão de fúria por causa de mais uma dose desse veneno. As frustrações acumuladas por causa da quarentena da Pandemia, receios de saúde e problemas por causa do desemprego ajudaram a alimentar o caos nas ruas. Mas os motins também provocaram uma violência sistémica e um ódio político que não víamos há décadas.

Ao longo da vida da geração “boomer” houve uma altura em que a maioria dos americanos acreditavam que eram corresponsáveis pelo Governo da nação. A maioria conhecia as ideias básicas da Fundação. É verdade que a política americana sempre teve um lado feio e toda a gente que viveu os tempos conturbados dos anos 1960 sabe que a unidade nacional não passa de uma ilusão.

Mas apesar das diferenças, a maioria dos americanos sentia que tinha alguma responsabilidade partilhada pelo curso do país. E muitos ainda acreditam. Mas à medida que os anos passam, esse acto de fé parece ter cada vez menos bases factuais. Eramos uma república. Agora, pelo menos em termos substanciais, somos um império.

Mudanças económicas e demográficas, sentenças judiciais e guerras estrangeiras ao longo dos últimos 50 anos transformaram a realidade americana. As nossas instituições públicas e estruturas legais dão ares de perdurar, mas não são imortais. Para sobreviver têm de ser alimentadas por confiança popular, um espírito de compromisso e uma sensação partilhada de propósito nacional que vá para além do “e o que é que eu ganho com isso?”

Uma cultura consumista – que é o que temos – é excelente para saciar os apetites pessoais, mas não consegue promover ou suster nada para além do eu. Essa fraqueza congénita começa por esvaziar de vida uma política de solidariedade e depois substitui-a por tribalismo e uma guerra hobbesiana de tudo contra todos. Esse ambiente de conflito total, a toda a hora, é um bom retrato do Inferno.


Seria fácil culpar a actual falta de nível da nossa política em Donald Trump, na sua tendência para o insulto desnecessário, os seus tweets beligerantes e o seu estilo pessoal agressivo. Muitos querem fazer isso mesmo e certamente ele merece alguma da responsabilidade. Mas ele é um sintoma e não a causa.

Líderes democratas como Pelosi, Schumer, Schiff e outros também fizeram mais do que a sua parte para alimentar o tom tóxico e extremista do nosso ambiente político. Sem um sentimento partilhado de obrigação para Deus ou um poder superior que nos responsabilize pelas nossas acções – algo a que hoje apenas se presta homenagem com a boca na nossa vida pública – a política não passa de um mecanismo para alcançar o poder e a guerra travada nesse sentido.

E a intensidade do espírito de conflito em D.C. desce para a população, levando a incontáveis tabuletas a dizer “O Ódio Não Tem Lugar Aqui” nos jardins, alguns dos quais são sinceros, mas outros que apenas mascaram as suas próprias sementes de amargura, fingindo virtudes.

É fácil sentirmo-nos demasiado pequenos diante da dimensão dos problemas que temos de enfrentar. A questão é, o que fazer? Posso oferecer duas ideias.

A primeira vem novamente de De Lubac. Ele escreveu que “Eu não preciso de conquistar o mundo, mesmo para Cristo: Tenho de salvar a minha alma. É disso que me devo lembrar sempre, contra a tentação de sucesso no apostolado. E assim me guardarei contra meios impuros. Não é nossa missão fazer triunfar a verdade, mas testemunhá-la.”

A segunda é da Primeira Epístola de São Pedro: “Deixem, portanto, toda a espécie de maldade, toda a mentira, fingimento, invejas e murmurações … Comportem-se como pessoas livres e não usem a liberdade como uma desculpa para fazerem o mal, mas para servirem a Deus. Respeitem toda a gente, amem os irmãos na fé, tenham temor a Deus” e, sim, até “respeitem o rei”, independentemente de quem ele seja. (1 Pedro, 2, 1-18)

Não é uma mensagem muito satisfatória. Temos vontade de justificar os bons e punir os maus, tenham eles a forma que tiverem. Mas fazemo-lo, ironicamente, através da forma que construímos e assumimos para nós mesmos. As nações mudam quando nós mudamos. E destas, a segunda é a tarefa mais difícil.


Francis X. Maier é pesquisador em Estudos Católicos na Ethics and Public Policy Center.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Quarta-feira, 3 de Junho de 2020)

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