Charlotte Allen |
Assinala-se hoje o 500.º aniversário do dia em que
Martinho Lutero (alegadamente) pregou as suas 95 teses na porta do castelo de
Witenberg, dando início à reforma. Em 1999 católicos e luteranos sentaram-se à mesa
e chegaram ao consenso de que afinal os dois ramos do Cristianismo concordam
precisamente sobre a questão que tinha levado Lutero a romper com a Igreja
Católica: que a “justificação” – isto é, o perdão dos pecados dos homens através
do poder salvífico de Cristo – se consegue apenas pela graça de Deus e não por
méritos humanos, como alguns católicos tinham argumentado, ou pareciam ter
argumentado. Depois, a 19 de Outubro deste ano, o bispo italiano Nunzio
Galantino, secretário-geral da conferência episcopal italiana, foi mais longe e
declarou que Lutero nem herege era e que a reforma tinha sido “obra do Espírito
Santo”. Bom, eu não diria tanto, mas sinto uma espécie de obrigação ecuménica
de dizer algo de simpático sobre Martinho Lutero.
Mas o problema é que não é fácil… Não é preciso ser
freudiano para concluir que Lutero era um caso muito complicado. Era arrogante,
egoísta, dramático e pensava que era o centro do mundo por ser mais esperto e
espiritualmente superior a toda a gente.
Passou a juventude e hesitar sobre o que fazer com a vida
(e a desperdiçar o dinheiro das propinas que o pai lhe dava) numa época – a alta
Idade Média – em que um jovem adulto não se podia dar ao luxo de perder tempo,
porque a maior parte deles não vivia para além dos 40. Depois, quando
finalmente entrou para um mosteiro agostiniano (num gesto tipicamente
melodramático, anunciando que jamais o iriam ver), lamentou-se durante uma
década por não conseguir obter uma garantia de que a sua alma seria salva –
pecando assim contra a virtude cristã da esperança.
Quando chegou a hora de “reformar” a Igreja, depois de
1517, o que interessava verdadeiramente a Lutero não era livrar-se das
indulgências ou “jamais” ser visto. Lutero passou a ser visto em todo o lado, a
conviver com poderosos príncipes alemães que tinham contas a ajustar com o Sacro
Império Romano, ajudando-os a confiscar mosteiros a torto e a direito (será que
não ficou com uma única memória boa dos agostinianos com quem tinha vivido
tantos anos?), e perseguindo furiosamente os antepassados anabaptistas daquelas
simpáticas senhoras amish que vendem legumes no mercado ao pé de minha casa.
Lutero pregava a sola scriptura, mas quando a
Bíblia não se ajustava à sua teologia sentiu-se autorizado a mexer com ela. Inseriu
o termo “somente” depois da palavra “fé” na sua tradução para alemão da
Epístola de São Paulo aos Romanos e tentou relegar a Carta de Tiago para
segundo plano porque mencionava as boas obras. Quando quis casar não podia
contentar-se com uma simpática filha de um proprietário alemão, não, teve de
casar com uma ex-freira, Katharina von Bura, que pessoalmente convenceu a sair
do convento.
É possível ser mais ressabiado contra a Igreja Católica?
Os dois mudaram-se para um mosteiro confiscado, que é como despejar o vizinho
para poder ficar-lhe com a casa. Lutero foi pessoalmente responsável pela
destruição maciça de arte medieval de valor incalculável, com incontáveis
recém-luteranos a caiar alegremente os frescos das suas igrejas previamente
católicas e a lançar para a fogueira as imagens de santos. Felizmente Lutero
não era italiano, por isso ainda temos alguns Giottos.
Também tinha uma estranha fixação escatológica, e
recorria facilmente à ordinarice para insultar os seus inimigos, o que fazia
frequentemente, porque criava muitos. E para culminar, era ferozmente anti-judeu.
É certo que os católicos medievais também não eram particularmente queridos na
forma como tratavam os judeus, mas pelo menos nenhum deles escreveu um tratado
chamado “Sobre os Judeus e as suas Mentiras”, que era um dos livros favoritos
de Julius Streicher, um dos pais da propaganda nazi.
E não,
Martinho Lutero não inventou a árvore de Natal, nem escreveu o “Away in a Manger”. Mas conseguiu estragar o Halloween, rebaptizando-o “Dia da Reforma”. Que desmancha-prazeres! Não podia ter pregado as teses no dia 30 de Outubro?
Mas por uma questão de justiça, há algumas coisas boas a
dizer sobre Martinho Lutero. Vou enumerá-las:
·
Vender indulgências foi mesmo má ideia. Se ao
menos tivesse parado por aí.
·
Gostava muito dos seus filhos. Isso é bom.
·
Consta que Katharina von Bora fazia excelente
cerveja – mas aposto que aprendeu isso no convento.
·
“Castelo Forte é Nosso Deus”, que foi de facto
escrito por Lutero, é um cântico fantástico.
·
J.S. Bach foi o melhor compositor que alguma vez
existiu. Søren Kierkegaard foi um dos melhores teólogos. Dietrich Bonhoeffer um
dos mais nobres mártires cristãos.
·
Os actuais luteranos que fizeram do “Midwest”
americano um bastião de conservadorismo social (e de excelentes escolas
públicas) são o sal da terra – embora a sua gastronomia deixe algo a desejar.
Chegado a este ponto, o meu leitor protestante e
evangélico deve estar a pensar que não passo de uma versão moderna do Padre
Feeney, a insultar indiscriminadamente “os nossos irmãos separados”, como nós,
católicos, lhes chamamos hoje em dia. Mas não é o caso. O meu marido é
protestante! E tiro o chapéu aos irmãos Wesley, a William Wilberforce, a C.S.
Lewis, Billy Graham, ao biblista anglicano N.T. Wright e a tantos outros que
testemunharam de forma tão vibrante a fé cristã fora da Igreja Católica. Não
concordo com a sua visão do que é, ou deve ser, a Igreja de Cristo, mas admiro
profundamente a sua relação intensa com Jesus.
Só preferia que esta história toda não tivesse começado
com… Martinho Lutero.
Charlotte Allen é doutorada em estudos medievais pela Catholic
University of America e é autora de “The Human Christ: The Search for the
Historical Jesus”. Escreve no First Things tem colunas regulares no Weekly
Standard, Acculturated, e no Wall Street Journal.
(Publicado pela primeira vez na terça-feira, 31 de
Outubro de 2017 em The Catholic Thing)
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