James V. Schall S.J. |
Tanto o Antigo como o Novo Testamento contêm passagens em
que somos advertidos a odiar algo, como o mal, mas não o nosso irmão. Estamos
familiarizados, talvez demasiado, com a expressão “odiar o pecado mas amar o
pecador”. Este aforismo corre o risco de nos deixar com a impressão de que o
nosso pecado é algo que flutua por aí, totalmente independente de nós, que nos
mantemos puros como a neve virgem. Mas não existe pecado sem pecador. Mais, há
pecadores que fazemos bem em evitar ou, pelo menos, tratar de forma cautelosa.
Quando Aristóteles trata a ira, que em si é uma coisa
boa, fala do controlo, ou descontrolo de uma reacção apaixonada a algo que é
perigoso ou errado. Normalmente exageramos. Mas não nos irarmos com coisas más
é um vício. Algumas coisas devem despertar em nós a ira.
O ódio é uma resposta emocional ao nosso reconhecimento
de que há algo de específico errado com o mundo. Diz-me o que odeias e
dir-te-ei quem és. E se me dizes que nada odeias porque não há nada de errado
no mundo, então fico com uma imagem ainda mais clara do que és – incuravelmente
ingénuo.
Dito isto, estou interessado neste fenómeno relativamente
novo a que se chama “discurso de ódio”. Poucas coisas são potencialmente mais
perniciosas, sobretudo quando os governos e as instituições começam a defini-lo
ou a fazer cumprir a sua proibição. O “discurso de ódio” e a liberdade de
expressão estão claramente em conflito um com o outro. As pessoas que em tempos
estavam interessadas em explorar as fronteiras da liberdade de expressão – ao
ponto de se poder dizer praticamente qualquer coisa com impunidade – são as
mesmas que agora, que controlam a cultura, querem suprimir qualquer expressão
que não seja do seu agrado.
Mas afinal de contas de onde veio esta questão do “discurso
de ódio”? A sua origem está no esforço, agora em larga medida bem-sucedido, de
derrubar a estrutura moral da sociedade. De forma geral, esta transformação foi
levada a cabo através do uso perspicaz da conversa de “direitos”. Aquilo a que
antes se chamava, por razões racionais, uma desordem ou um vício começou por
ser tolerado, depois finalmente um “direito”. Mal se torna um “direito”
qualquer pessoa que lhe chama pecado ou mal torna-se automaticamente um
caluniador e violador da dignidade e do orgulho humanos.
A linguagem tem um propósito. Serve para definir, e
depois nomear, aquilo que designa realmente. Se começarmos a usar a mesma
palavra para duas realidades diferentes, temos de passar a deduzir pelo contexto
a realidade a que nos referimos. Se casamento passa a designar tanto a relação
entre macho/fêmea e macho/macho, a realidade a que a palavra se refere não
muda. Uma coisa não é a outra.
É aqui que entra em cena o “discurso de ódio”. Uma vez
que a lei afirma agora que ambos os arranjos maritais são “iguais”, deixamos de
ter a liberdade de afirmar que não o são. As pessoas sentem-se magoadas se lhes
disserem que aquilo que fazem é, ou não é, um casamento. A afirmação de que não
é ganha estatuto de desordem cívica que deve, em nome da prevenção da
perturbação, ser proibida. Podemos dar por nós ostracizados ou até detidos por
afirmar aquilo que é verdade e argumentar nesse sentido. A liberdade de
expressão, que tinha como objectivo afirmar a verdade das coisas, já não é
permitida. A verdade é uma ameaça à sociedade.
Uma nova revolução cultural |
Quando se universaliza esta situação percebemos que temos
de providenciar espaços onde as pessoas estão protegidas de ouvir sequer algo
que questione a rectidão das suas escolhas ou da lei civil que agora reivindica
jurisdição sobre todo o nosso discurso. Um dos aspectos mais odiosos das
sociedades totalitárias era a montagem de postos de escuta, ou o hábito de
levar as crianças a revelar o que os seus pais diziam em privado. Este mesmo
fenómeno já está entre nós. Agora está disfarçada de forma de proteger as
vítimas do ódio daqueles que se recusam a aceitar o novo regime de “direitos”
que insiste que a sua lei é a única e mais alta lei da nação.
Ao discutir o direito, são Tomás de Aquino perguntava se
devemos ter uma lei que proíba todos os vícios. Inicialmente parecia uma boa
ideia, mas na verdade é uma ideia terrível. Aquino compreendia que dar tal
poder ao Estado implicaria um conhecimento divino e acabaria com a liberdade de
errar que nos permite estabelecer o nosso próprio destino.
São Tomás sabia que alguns vícios tinham de ser
reprimidos, caso contrário estaríamos num estado de guerra constante. Mas dar
poder ao Estado para nos livrar de todos os vícios equivaleria a dar-lhe poder
absoluto, algo que demasiados políticos anseiam. Os cidadãos perderiam então
esse espaço de liberdade e de inteligência em que podem tomar as suas próprias
decisões. As “leis de ódio” radicam, em última análise, do esforço do Estado
moderno para alterar a natureza humana.
James V. Schall, S.J., foi professor na Universidade de
Georgetown durante mais de 35 anos e é um dos autores católicos mais prolíficos
da América. O seus mais
recentes livros são The Mind That
Is Catholic, The Modern Age, Political
Philosophy and Revelation: A Catholic Reading, e Reasonable
Pleasures
(Publicado pela primeira vez na segunda-feira, 9 de Outubro de 2017 em The Catholic Thing)
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