Tuesday 21 June 2022

A Visão Profética de Samuel Alito

David F. Forte
Em breve saberemos se o rascunho da sentença de Samuel Alito no caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization sobrevive enquanto opinião maioritária e ganha força de lei. Aconteça o que acontecer, o rascunho de Alito permanecerá como uma das maiores e mais corajosas decisões alguma fez redigidas por um juiz do Supremo Tribunal. É um documento purificador, que limpa muitos dos argumentos pretensiosos e errados feitos pelo Tribunal no passado.

A opinião é profética – no sentido clássico do termo. Frequentemente usamos a palavra profecia como sinónimo da previsão do futuro. Mas na Escritura os profetas não eram principalmente videntes, embora alguns emitissem avisos sobre o que aí vinha (Jonas ao povo de Nínive), ou afirmações sobre as coisas grandes e boas que Deus preparou (Isaías sobre a vinda do Messias).

O profeta não é, por isso, um leitor de sinas, mas aquele que diz a verdade. Ele dirige-se àqueles que se encontram apaixonados pelo seu próprio poder, tão envolvidos pela sua própria vontade ilimitada que cometem pecados graves. Foi nesse tom que Natã falou a David, que Eliseu desafiou Acab, Ester expôs Hamã e João Baptista condenou Herodes. Por sua parte, Alito expõe (de forma mal-educada, segundo os seus críticos) a sobranceria de Harry Blackmun, autor da sentença Roe v. Wade, que não só inventou um “direito” que não tem qualquer base na história ou na Constituição, mas apresenta também uma análise da gravidez que não tem lógica interna nem qualquer relação com a realidade médica.

Nas Escrituras os profetas não eram conhecidos pela sua linguagem polida. As palavras de Eliseu eram “como uma fornalha ardente”. De igual modo, o juiz Samuel Alito há muito que é conhecido por expor os factos por detrás de um caso, por mais feios ou chocantes que possam ser.

Em Stevens v. United States, por exemplo, na qualidade de único dissidente, Alito descreveu os gritos aflitos de um gatinho a ser morto num vídeo pornográfico “crush”*, apesar de a maioria ter revogado a lei do congresso que proíbe tais vídeos, com base na Primeira Emenda da Constituição.

Em Brown v. Enterntainment Merchants Association falou de jogos de computador em que: 

Dezenas de vítimas são mortas com qualquer utensílio imaginável, incluindo metralhadoras, caçadeiras, bastões, martelos, machados, espadas e motosserras. As vítimas são desmembradas, decapitadas, esventradas, imoladas e cortadas aos pedaços. Gritam em agonia e imploram por misericórdia. O sangue escorre, salpica e acumula. Partes de corpo decepadas e pedaços de restos mortais são exibidos de forma gráfica.

O Tribunal acabou por abolir uma lei que proibia a venda de tais jogos a menores e Alito votou com a maioria, mas apenas porque uma parte da lei era pouco clara.

E em Snyder v. Phelps protestou contra a protecção que a maioria decidiu dar a manifestantes em enterros de soldados mortos em combate, com cartazes como “Deus odeia-te”, “Vais para o Inferno”, “Deus odeia maricas” e “Maricas condenam nações”.

Mais do que qualquer outro juiz de memória recente – certamente mais do que o juiz Antonin Scalia – Alito condena o mal moral que é causado por raciocínios judiciais desnecessariamente rígidos: o mal moral da crueldade cometida contra animais, de permitir a jovens que se mascarem de assassinos em série, de permitir que pessoas maliciosas transformem a dor de um pai enlutado em agonia ou, no caso de United States v. Alvarez, de deixar que alguém roube a honra de heróis caídos, fingindo ser detentor de uma Medalha de Honra.

Referindo-se ao aborto como “uma questão moral profunda”, Alito volta a ir à essência do propósito da lei.

Em Dobbs, o tom de Alito deve-se à sua discordância com muitos dos seus colegas que desprezaram a sua vocação em nome do poder, chegando a consagrar esse mesmo poder em fórmulas solipsistas como a “passagem mistério” do juiz Kennedy**.

Alito “endireita as sendas” até à verdade, descartando pelo caminho os falsos ídolos que o Tribunal ergueu para justificar o direito a matar o inocente, e – por isso – ferindo gravemente o próprio Tribunal e dividindo a nação em facções ferozmente opostas.

Samnuel Alito

Não deixa nenhuma falsidade por revelar:

• A análise da história do aborto em Roe “varia entre o constitucionalmente irrelevante (…) e o simplesmente incorrecto”. De facto, a história revela que o aborto sempre foi tratado na lei como algum tipo de mal.

• “A Constituição não faz qualquer referência ao aborto, e tal direito não está implicitamente protegido por qualquer provisão constitucional”.

• A sentença maioritária em Planned Parenthood v. Casey modificou muito a sentença de Roe, enquanto afirmava, contraditoriamente, que estava a sustentá-la.

• “Roe estava profundamente errada desde início. A sua lógica era excepcionalmente fraca e a sentença tem tido consequências danosas”.

• Em vez de pôr fim à discussão, como o Tribunal presunçosamente afirmava, a sentença Roe v. Wade “inflamou” a questão e tornou-a ainda mais “amargamente divisiva”.

• Não existe direito de igualdade de protecção ao aborto, uma vez que a regulamentação do aborto não é uma classificação feita com base no sexo.

• A regra do respeito pelos precedentes não justifica manter esta sentença tão profundamente cheia de falhas.

• O conceito de viabilidade fetal é indeterminado e “nada tem a ver com o estatuto de um feto”.

• A questão essencial a tratar pelo legislador é saber se está em causa um ser humano. Nenhum dos precedentes citados pelo lado contrário toca nesta questão.

O juiz Alito conseguiu separar o trigo do joio. Mas um profeta não é um líder, um juiz não é um legislador. Não lhe cabe, em sua opinião, fazer a travessia para a terra prometida onde a vida intrauterina é protegida por lei. O seu sentido de vocação impele-o a ficar do seu lado do rio, mas indica o caminho para os Estados e para o povo.

Os legisladores, diz ele, só precisam de dar um passo racional para proteger aqueles bens morais que são do mais elementar senso comum:

respeito por, e protecção de, vida prenatal em todos os estágios de desenvolvimento; a protecção da saúde e segurança materna, a eliminação de procedimentos médicos particularmente grotescos ou bárbaros; a preservação da integridade da profissão médica; a mitigação da dor fetal; e a prevenção da discriminação com base em raça, sexo ou deficiência.

Se a opinião de Alito se tornar lei, como é que os americanos vão responder ao seu desafio? Alguns farão certamente como David fez com Natã, e escutá-lo-ão. Outros, como Herodes, tentarão cortar a cabeça ao profeta.

* Se, como eu, não fazia ideia o que é um filme “crush”, este artigo faz uma descrição bastante simples e, felizmente, não gráfica [NT].

** Refere-se a uma expressão que ficou conhecida na decisão Planned Parenthood v. Casey, em que o juiz Anthony Kennedy escreveu: “No cerne da Liberdade está o direito a definir o nosso próprio conceito de existência, de sentido, do universo e do mistério da vida humana”. Esta passagem tem sido ridicularizada desde então por conservadores, tendo sido definida por um como “jurisprudência new age” [NT].


David Forte é Professor Emérito na Universidade Estadual de Cleveland e faz parte do Conselho de Académicos na James Wilson Institute.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Terça-feira, 21 de Junho de 2022)

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