Samuel Alito, juiz do Supremo Tribunal
Neste artigo vou tentar
explicar o que se passa e quais poderão ser as implicações. Para quem não me
conhece, esclareço que sou convictamente pró-vida, isto é, defendo que o aborto
é sempre a pior solução para o problema de uma gravidez indesejada.
Esta decisão é definitiva?
De todo… Aliás, neste momento,
nem decisão é, é apenas um rascunho de uma possível decisão da maioria dos juízes
do Supremo Tribunal, em relação a um caso que envolve a tentativa de um Estado
de restringir o aborto para além dos limites actualmente admitidos nos Estados
Unidos. Limites esses que radicam na decisão Roe V. Wade.
O rascunho da decisão, com
mais de 90 páginas, foi
divulgado à imprensa, o que por si é uma coisa extraordinariamente rara. É
verdadeiro? Tudo indica que sim, mas isso não garante que venha a ser aceite.
Quando os juízes deliberam
sobre um caso, fazem uma primeira votação. Com base nessa votação um dos juízes
é nomeado para escrever a opinião da maioria. Outros podem escrever opiniões
diferentes, ou mesmo dissensões.
Quando essa opinião é finalmente
conhecida, no seu estado final, os juízes votam novamente e aí pode haver
alterações. Isto é, um juiz pode mudar de opinião no final, por não concordar
com o texto em causa, ou pode então simplesmente manter o seu voto e escrever
outra opinião.
Neste momento, ao que tudo
indica, haverá uma maioria de pelo menos 5 para 4, sendo que um dos juízes conservadores,
John Roberts, não terá alinhado na anulação por inteiro de Roe. Para a decisão
final se inverter seria necessário que um desses quatro juízes mude a intenção
de votos. Isso parece pouco provável, mas não se pode descartar a
possibilidade.
O que está em causa? Roe v.
Wade
O caso de Roe v. Wade remonta
a 1973. Norma McCorvey (Jane Roe) processou o Estado porque queria fazer um
aborto, mas o estado em que vivia, Texas, não o permitia salvo em caso de necessidade
para salvar a vida da mulher. O caso chegou ao Supremo Tribunal, que decidiu,
por maioria de 7 contra 2, que esse direito lhe estava consagrado na
Constituição.
A verdade é que a Constituição
americana nunca menciona o aborto, mas os juízes conseguiram descortinar o tal
direito ao aborto no “direito à privacidade”, que de facto existe. Argumentaram
que o “direito à privacidade” de Norma McCorvey impede o Estado de se intrometer
entre ela e o seu médico, e de a impedir de fazer um aborto se assim o entendesse.
A decisão restringiu esse direito, contudo, à evolução da gravidez. Durante o
primeiro trimestre o Governo – seja federal, seja estatal – não pode restringir
de todo o aborto; no segundo trimestre pode apenas exigir certos requisitos de
saúde e no terceiro o aborto pode ser proibido, desde que as leis incluam
excepções nos casos em que a vida da mãe está em perigo.
O aborto era ilegal antes
de 1973?
Não, não era. Antes de 1973 a
questão cabia aos estados. Havia estados onde o aborto era legal. A diferença é
que a decisão do Roe v. Wade forçou todos os estados a reconhecer um direito
constitucional ao aborto.
E agora, vai passar a ser ilegal em todo o país?
Não. A anulação de Roe v. Wade,
por si, não criminaliza o aborto. Segundo a decisão revelada pela imprensa – que
ainda não é oficial – o Supremo Tribunal não considera que o aborto viola o
direito constitucional à vida, simplesmente rejeita que exista na constituição
um direito ao aborto.
O que vai acontecer agora, ou
a partir do momento em que a decisão se torna lei, é que a questão voltará aos
estados.
Há pelo menos 18 estados que
têm leis que estão suspensas, por causa do Roe v. Wade, mas que no caso de este
ser anulado entram em vigor e que proíbem completamente o aborto, outros têm
leis que proíbem o aborto em quase todas as circunstâncias, excepto em caso de
malformação, perigo para a vida da mãe, ou incesto. No total, é natural que
pelo menos 22 estados passem a restringir totalmente ou pelo menos em larga
medida o aborto legal.
Então como ficamos? O
Supremo vai proibir o aborto ou não?
Sim, não e talvez. Todos os
três.
Sim, na medida em que, a confirmar-se
esta sentença, o aborto passará a ser ilegal em vários estados.
Não, na medida em que o aborto
continuará a ser legal em vários estados, aliás, na maioria, e o tribunal não obriga
ninguém a proibir o aborto.
Talvez, na medida em que neste
momento nem sabemos se a decisão é verídica e se, caso seja, será idêntica à
decisão final.
E quando é que sabemos?
As decisões do Supremo
Tribunal nestes casos mais fracturantes costumam ser divulgados em Junho. Antes
disso vamos ter de continuar todos a especular.
Mas caso se confirme, a
luta dos pró-vida acabou, correcto?
Não! Ou melhor, esperemos
sinceramente que não.
O aborto é um mal sempre. Não
é menos mal por ser legal, nem por ser ilegal e “escondido”. Não me entendam
mal, o reconhecimento formal de que a matança de seres humanos nascituros não é
um direito fundamental é uma excelente notícia, da perspectiva de quem acredita
que esses seres humanos não são inferiores, em dignidade, que qualquer outro
ser humano. Mas isso, só por si, não deve satisfazer quem se diz pró-vida. É
preciso continuar a criar condições para que as mulheres não se sintam sequer
pressionadas ou tentadas a abortar quando se vêem grávidas de forma inesperada,
ou com em circunstâncias difíceis. Essa deve ser sempre a missão principal.
E Portugal no meio de tudo
isto?
Evidentemente este é um assunto
interno dos Estados Unidos, e nada tem a ver com a realidade portuguesa,
excepto no detalhe de que tudo o que se passa nos Estados Unidos acaba por
afectar outros países, de uma forma ou de outra. Este passo nos EUA vai
fortalecer e encorajar os movimentos pró-vida em diferentes partes do mundo, e
em Portugal também. O tempo dirá da magnitude desse efeito.
Muito boa explicação. Obrigado e abraço
ReplyDeleteMuito obrigada pela sua partilha com valor acrescentado desta notícia.
ReplyDeletePelo enquadramento histórico,
de pensamento e dos conceitos, e pelo tom da escrita.
"E Portugal no meio de tudo isto?" O PSD tinha que voltar a ser pró-vida, como foi até ao final do séc. XX. Mas não devemos perder a esperança.
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