Transcrição integral da entrevista feita ao cónego João Seabra, sobre o conceito de Direitos Humanos e a sua relação histórica com a Igreja. A reportagem encontra-se aqui.
A relação entre a
Igreja e a noção dos direitos humanos nem sempre foi linear, pode-nos falar um
bocado dela?
A declaração Universal dos Direitos do Homem é de 1948, no
rescaldo da Guerra e feita pela Assembleia Geral das Nações Unidas e convergem
nela várias tradições de lidar com a posição da pessoa humana na sociedade.
A primeira, fundamental, é a anglo-saxónica, a “Bill of
Rights” que vem da Magna Carta, e que é uma tradição concreta, de garantias,
não uma tradução filosófica, do papel do homem na sociedade, mas uma tradição
concreta de construção de garantias jurídicas que tutelem o espaço da autonomia
da pessoa.
Converge com essa e coincide com ela a tradição francesa,
que nasce da declaração dos direitos do homem e do cidadão da revolução
francesa, de 1791, que é uma tradição de matiz ideológica, que concebe os
direitos do homem não a partir da defesa de espaços concretos de liberdade das
pessoas, mas através de uma concepção filosófica do homem como ser racional
dependendo exclusivamente da sua razão e portanto uma concepção de liberdade do
homem concebida como ausência completa de ligações à tradição e a qualquer
poder superior, que confronta directamente a tradição católica.
Depois há ainda uma terceira, que é a tradição dos direitos
sociais, não dos direitos de liberdade, mas dos direitos da igualdade, para
usar os termos da revolução francesa. Essa tradição foi sobretudo representada
pela União Soviética, o direito ao trabalho, à saúde, à habitação.
E ainda converge a tradição católica. A presença da
influência católica na elaboração dos direitos do homem está estudada
academicamente, que se traduz por uma introdução de uma defesa da família, da
defesa dos direitos dos pais, da liberdade de religião, uma série de artigos da
declaração, o famoso artigo 18, que entraram por influência católica.
De alguma maneira a declaração é um texto compósito, um
texto onde estas diversas tradições se articulam num conjunto muito harmonioso
e que fez doutrina e que hoje em dia na nossa ordem constitucional é normativo,
porque a nossa constituição de 1976 tem uma amplíssima parte dedicada aos
direitos fundamentais da pessoa humana e tem um artigo que diz que as
disposições da constituição devem ser interpretadas nos termos da Declaração
Universal dos Direitos do Homem. Portanto em Portugal tem valor constitucional
de interpretação dos direitos, liberdades e garantias garantidos pela própria
constituição, portanto este documento é na sua origem um documento de
equilíbrio de diversas tradições dos direitos do homem, onde há uma presença,
logo desde 1948, da tradição católica.
E a Igreja Católica
aceitou bem a declaração?
Na primeira década de vigência da constituição não há da
parte da Igreja, e do Papa Pio XII, nenhum sinal de simpatia ou de acolhimento
pela Declaração Universal, precisamente por causa dos elementos jacobinos da
tradição francesa, que têm alguma presença no texto, ecos da versão mais
concretamente anticatólica dos direitos fundamentais, sendo que a versão da
revolução francesa tinha sido condenada várias vezes pela Igreja, pareciam
aconselhar alguma prudência.
Mas logo no pontificado seguinte, o beato João XXIII, nas
suas encíclicas Mater Magistra e na Pacem in Terris, faz um amplíssimo
acolhimento à declaração universal, com um elenco de direitos e deveres, em
versão católica. Quinze anos depois da declaração, podemos dizer que o
acolhimento da Igreja foi amplo, largo e breve.
Seria possível chegar
sequer à noção de direitos fundamentais do homem sem a tradição cristã?
É preciso dizer que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
elaborados pela Assembleia Francesa de 1791 foi formada num estado de espírito
anticatólico. Mas com tudo o que o racionalismo jacobino tem de anticatólico,
antidogmático, anti-divindade, anti-espiritual, de afirmação a uma noção do
homem como contraposto à divindade, com o que isso tem de directamente
anti-religioso, essa concepção parte da concepção da pessoa humana, do
indivíduo, que nasceu no interior da tradição cristã.
São Tomás escreveu que “A sorte da alma imortal de um único
indivíduo vale mais que a sorte de todos os impérios”.
Esta ideia de que a pessoa, pelo seu valor eterno, único,
exclusivo e perpétuo que tem para Deus, para o Criador e para o Redentor, vale
mais que todos os impérios, é uma ideia tipicamente cristã, exclusivamente
cristã, na história comparada das religiões, e na história das civilizações não
surgiu em nenhum outro lado do mundo. Surgiu no ocidente cristão no século XIII
cristão, no grande teólogo cristão como síntese da mensagem cristã, e está na
origem da reflexão filosófica acerca do valor da pessoa que, em última análise,
na sua versão ortodoxa deu a Doutrina Social da Igreja, e na sua versão do
racionalismo iluminista deu a declaração jacobina de 1791.
Mas a matriz originária é a revelação feita pelo Filho de
Deus feito homem do valor único, exclusivo e radicalmente irrepetível de cada
Ser Humano.
Temos assistido a
tentativas de acrescentar direitos como à “saúde reprodutiva”, direitos no âmbito
dos homossexuais, por exemplo… falta algum direito à declaração?
Hoje há um movimento para a formulação de novos direitos que
tem de ser estudado com cuidado, em primeiro lugar pelos juristas, depois pelos
políticos e todas as outras pessoas.
A que é que chamamos novos direitos? Vemos a emergência, sob
a pressão dos grandes movimentos sociais e culturais da segunda metade do
século XX às quais a declaração em 1948 era completamente alheia. Falamos do
movimento feminista, do problema da contracepção e controlo da natalidade, de
todo o ambiente anti-natalista que se desenvolveu no mundo; falamos do
movimento dos direitos homossexuais, uma série de realidades sociais novas que
não existiam em 1948 e que se colocam diante da sociedade, reclamando direitos
que muitas vezes são propostos como contrapostos aos antigos direitos
liberdades e garantias.
Neste momento temos entre mãos o relatório Estrela [à data
da entrevista ainda não tinha sido chumbada no Parlamento Europeu], que
pretende impor os novos direitos contra os direitos clássicos dos pais educarem
os filhos, os direitos de liberdade religiosa, de objecção de consciência, os
grandes direitos reconhecidos como fundamentais pela Declaração Universal e que
são o ponto de chegada de grandes lutas cívicas, grandes debates culturais,
grandes mentes de tradição política e cultural, consagrados não só na
declaração universal, mas também nos pactos fundamentais dos direitos do homem
da Europa, na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e nas
constituições da maior parte dos países democráticos europeus.
Esses grandes direitos fundamentais, que são a tradição
jurídica e política da Europa Ocidental, e constituem a ossatura da liberdade
cívica dos nossos países, estão agora a ser postos em causa pela emergência de
novos direitos que normalmente surgem por via da opinião pública, depois pela
via mediática e depois por via jurisprudencial e que põem em causa de alguma
maneira os direitos fundamentais tradicionais.
Eu penso que vem por aí um perigo para a democracia, perigo
para os direitos fundamentais, porque os chamados novos direitos, que
normalmente não têm a estrutura jurídica de direitos reais, são pretensões de
parte, são reivindicações culturais, que se apresentam como manifestações de
não-discriminação e que têm na origem uma grande confusão entre o direito de
igualdade e de não-discriminação.
O conceito de igualdade é um conceito tradicional da
linguagem dos direitos mas foi tendencialmente substituído pelo conceito de
não-discriminação e esta é uma pretensão de tratar de maneira igual as coisas
que são diferentes. Enquanto a igualdade é um valor que é tratar de maneira
igual o que é igual e de maneira diferente o que é diferente, a não
discriminação quer, pelo contrário, impor que todos sejam tratados igualmente,
sejam iguais ou diferentes.
Em si, como valor, é uma coisa boa. Não discriminar é uma
coisa justa, mas interpretada de forma ideológica e com uma ideologia
combatente, está a transformar-se numa grande fonte de violação dos direitos
fundamentais e de limitação dos direitos fundamentais.
Existem casos
concretos em Portugal?
Evidentemente nos últimos anos surgiram sintomas muito
preocupantes em Portugal e continua a haver muitas situações do género.
Em Espanha e França há grandes campanhas cívicas e eclesiais
para combater essas situações. Entre nós não existe essa tradição. Não
costumamos trazer à tona esses grandes casos, conformamo-nos, tentamo-nos
adaptar, damos um jeitinho… Mas evidentemente que sim.
A proibição de rezar na escola pública, como aconteceu a um
grupo de jovens que conhecia, que foram proibidos sob o pretexto absurdo de que
não o podiam fazer porque a escola era pública; uma certa discriminação contra
os profissionais de saúde que fazem objecção de consciência ao aborto, dentro
do sistema de saúde. Eu não queria entrar agora em pequenas polémicas, porque
uma vez que elas não estão levantadas por quem as deve levantar, não me compete
a mim, mas há coisas absurdas.
É preciso um país de brandos costumes como o nosso, a
proibição municipal de ter cruzes nos cemitérios, é uma coisa que brada aos
céus. Em certos cemitérios, em Lisboa no cemitério de Carnide, no cemitério de
Oeiras, as autoridades municipais, permitem-se igualizar as lápides. As lápides
municipais podem ter uma cruz desenhada, mas uma pessoa não pode erguer uma
cruz de pedra sob a campa dos seus maiores, porque a câmara não deixa. É uma
coisa que só neste país de brandos costumes é possível.
Evidentemente se algum dia enterrar um dos meus num desses
cemitérios porei uma cruz na campa e levarei a questão até ao Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem. Mas é preciso um mau feitio como o meu para se dar ao
trabalho, por isso as pessoas sujeitam-se e põem aquelas lápidezinhas
municipais nas campas dos seus mortos, é uma coisa pasmosa como é que isso se
permite.
Há quem diga que esta
austeridade imposta pode chegar ao ponto de atentar contra os direitos humanos
de alguns, nomeadamente dos pobres. Concorda?
Penso que essa é uma leitura passional emotiva e política
que não tem nada de jurídico. Evidentemente que a política económica e fiscal
tem obrigação de tentar ser justa, adequada, distributiva e retributiva quanto
possível, mas também tem de ser realista. Não é contra os direitos do homem
distribuir só o que há, porque distribuir só o que há é o que é imposto pela
realidade das coisas.
Não pretendo fazer juízos sobre a política económica e
financeira do Governo, não é a minha função, mas dizer que uma política
económica como esta, imposta claramente pela realidade das coisas e pela
actuação política de quem a condena é contra os direitos do homem parece-me uma
maneira completamente ideológica de interpretar o que os direitos do homem
querem dizer e não tem o menor fundamento jurídico.
Excelente entrevista, muito esclarecedora!
ReplyDeleteObrigado,
João