Russell Shaw |
O desapego é um tema central para o Cristianismo desde o seu
início. Recordemos a história do homem rico, encontrado em todos os Evangelhos
sinópticos, que pergunta a Jesus o que deve fazer para ser melhor. Jesus
responde: “Vai e vende todos os teus bens e dá aos pobres. Depois vem e
segue-me”. O jovem afasta-se, triste, porque, diz-nos o evangelista, “tinha
muitos bens” (Mt. 19, 21-22). Faltava-lhe o desapego – precisava de se
desprender de algo grande, mas não conseguia fazê-lo.
O desapego tem uma importância crucial, não só para
jovens ricos, mas para todos os que querem imitar Cristo e viver segundo os
seus ensinamentos. Mas do que é que estamos a falar, exactamente? E porque é
que é tão importante não só para quem tem “muitos bens” mas também para aqueles
cujos bens são mais modestos? Deixem-me propor uma definição que talvez ajude a
chegar a uma resposta.
A definição é minha e não acarreta outra autoridade.
Aceitem-na ou ignorem-na:
Ser-se desapegado – praticar o desapego – passa por
estabelecer e manter uma relação com tudo e com todos na sua vida, de acordo
com a qual todas as coisas são avaliadas consoante auxiliam ou dificultam a
nossa relação com Deus, a imitação de Cristo e o serviço aos outros.
É uma boca cheia, admito. O que se segue talvez ajude a
explicar o que significa.
No final da Idade Média os melhores pensadores
consideravam que o desapego era contemptus mundi – desprezo pelo mundo.
Encontra-se isto na sua forma mais pura em “A Imitação de Cristo”, um clássico
da literatura espiritual (1419) que se costuma atribuir a Tomás Kempis, embora
outros possam ter contribuído também. Prega uma mensagem de contemptus mundi a
toda a linha, a começar pelo Livro Um, Capítulo Um:
A suprema sabedoria é esta: pelo desprezo do mundo tender
ao reino dos céus.
Vaidade é, pois, buscar riquezas perecedoras e confiar
nelas.
Vaidade é também ambicionar honras e desejar posição
elevada.
Vaidade, seguir os apetites da carne e desejar aquilo
pelo que, depois, serás gravemente castigado.
Vaidade, desejar longa vida e, entretanto, descuidar-se
de que seja boa.
Vaidade, só atender à vida presente sem providenciar para
a futura.
Vaidade, amar o que passa tão rapidamente, e não buscar,
pressuroso, a felicidade que sempre dura.
E por aí fora.
A mensagem da “Imitação” é de uma sabedoria perene e tem
sido crucial para a vida espiritual de incontáveis pessoas ao longo de seis
séculos, e continua a sê-lo. Ainda assim, não há como negar que a sua visão do
mundo contrasta, para não dizer que entra em conflito com, a visão expressa em
“Amar o Mundo Apaixonadamente”, a famosa homilia de São Josemaria Escrivá, o
fundador da Opus Dei.
“Deus vos chama a servi-Lo em e a partir das ocupações
civis, materiais, seculares da vida humana: Deus espera-nos todos os dias no laboratório,
no bloco operatório, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na
oficina, no campo, no lar e em todo o imenso panorama do trabalho. Ficai a
saber: escondido nas situações mais comuns há um quê de santo, de divino, que
toca a cada um de vós descobrir.”
Existe uma clara tensão entre isto e o contemptus mundi.
Então o que devem fazer os cristãos que querem exercer o desapego? Encarar o
mundo com desprezo, ou amá-lo apaixonadamente?
Esta tensão resolve-se, creio eu, num texto do Concílio
Vaticano II que deu pouco nas vistas mas que é extremamente importante, “Gaudium
et Spes”. Os teólogos não parecem saber muito bem o que fazer com o documento,
mas no meu entender ele pode fazer uma enorme diferença para a maneira como os
cristãos encaram a vida no mundo.
Os padres conciliares estão a discutir o sentido da
actividade humana na perspectiva da fé. Recordando o ensinamento bíblico de que
“a figura deste mundo, deformada pelo pecado, passa certamente, mas Deus
ensina-nos que se prepara uma nova habitação e uma nova terra, na qual reina a
justiça”. E continua dizendo que “a expectativa da nova terra não deve, porém,
enfraquecer, mas antes activar a solicitude em ordem a desenvolver esta terra,
onde cresce o corpo da nova família humana, que já consegue apresentar uma certa
prefiguração do mundo futuro.”
“Todos estes valores da dignidade humana, da comunhão
fraterna e da liberdade, fruto da natureza e do nosso trabalho, depois de os
termos difundido na terra, no Espírito do Senhor e segundo o seu mandamento,
voltaremos de novo a encontrá-los, mas então purificados de qualquer mancha,
iluminados e transfigurados, quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e
universal: ‘Reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de
justiça, de amor e de paz’. Sobre a terra, o reino já está misteriosamente
presente; quando o Senhor vier, atingirá a perfeição”. (GS 39)
Claramente isto significa que, pelo menos os bens humanos
para os quais trabalhamos agora e que por vezes realizamos, embora de forma
imperfeita, não desaparecerão na próxima vida. Há uma verdadeira continuidade.
Os bens humanos estarão presentes no Céu, também, de forma perfeita e
realizada. E embora a passagem não o diga, suspeito que o modelo que os padres
conciliares tinham em mente é a humanidade ressuscitada de Cristo.
Aqui está, portanto, o ponto de partida e a fundação de
um verdadeiro desapego, que valoriza as obras para a realização de bens humanos
e os utiliza ao serviço de Deus e um do outro, sem lhes dar, na sua forma
imperfeita, o valor permanente que apenas terão na sua forma perfeita no Reino
dos Céus.
Amar o mundo apaixonadamente significa que podemos
desapegar-nos dele graças à promessa da ressurreição e da vida eterna,
confiantes de que encontraremos no Céu o melhor daquilo pelo qual trabalhámos
na terra. É essa a essência do desapego.
Russell Shaw é autor de Papal Primacy in
the Third Millennium (2000). O seu mais recente livro é American Church:
The Remarkable Rise, Meteoric Fall, and Uncertain Future of Catholicism in
America (2013).
Howard Kainz é professor emérito de Filosofia na
Universidade de Marquette University. Os seus livros mais recentes incluem Natural Law: an Introduction and Reexamination (2004), The Philosophy
of Human Nature (2008),
e The Existence of God and the Faith-Instinct (2010)
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no Domingo, 31 de Julho de 2016)
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