Michael Pakaluk |
Os católicos conhecem o argumento de que a “sagrada tradição” é necessária como regra de fé juntamente com a Sagrada Escritura. Não é verdade que é preciso a autoridade da Igreja para determinar o que constitui Escritura (o Cânone)? Aqueles que rejeitam a ideia da existência da autoridade da “sucessão apostólica”, que é explicada na tradição (Clemente de Roma, Inácio de Antioquia), afirmam precisamente que não está nas Escrituras.
Logicamente a Escritura não pode
determinar o seu próprio Cânone. Mais, a doutrina protestante da “sola scriptura”
(só Escritura) é contraditória, pois ela também não está nas Escrituras.
Mas o que podemos dizer da ideia
mais provocatória de que a tradição não só é necessária, como devia até ser suficiente,
e que a Escritura devia ser desnecessária? Chamemos-lhe “nulla Escritura” (“sem
Escritura”).
Esta visão aparece de forma embrionária
no tratado do dominicano Melchor Cano, Fontes Teológicas (De Locis Theologicis,
Salamanca, 1562). Cano argumenta, e bem, que a Igreja é anterior à Escritura;
que o Senhor não escreveu qualquer livro, nem mandou os Apóstolos escrever
livros, mas antes que os mandou pregar, e que muitas questões em que os cristãos
têm de crer, como a existência de três pessoas numa só natureza, não estão
explícitas nas Escrituras.
Depois refere que Paulo e João, nas
suas epístolas, referem os ensinamentos que transmitiram oralmente, mas que não
foram escritos, acrescentando que São Pedro escreveu duas epístolas, mas
sabemos que ele esteve sete anos em Antioquia e outros 25 em Roma:
Devemos então acreditar que ele não
ensinou nada por palavras para além daquilo que deixou por escrito
nestas duas epístolas? Como é que é possível? E não é verdade que André, Tomé,
Bartolomeu e Filipe fundaram igrejas nos lugares para onde foram enviados, e
onde permaneceram, na continuidade da nossa fé e da nossa religião, apenas com
base nas palavras e sem quaisquer escritos? Reconheçamos então – nem se
pode negar – que a doutrina da fé, na sua totalidade, não está resumida ao que
está escrito, mas chegou-nos em parte nas palavras que radicam nos apóstolos.” [Ênfase minha]
A frase é mesmo essa, “sem quaisquer
escritos”. Essa foi a condição da Igreja primitiva durante pelo menos trinta
anos.
Entretanto encontrei esta mesma posição
explanada em mais detalhe na maravilhosa série de 90 homilias sobre Mateus de
São João Crisóstomo. Começa assim:
O ideal seria nem precisarmos da Palavra
escrita, mas exibir uma vida tão pura que a graça do Espírito devia estar antes
nas nossas almas do que nos livros, e que tal como estes estão inscritos com
tinta, também os nossos corações deviam estar inscritos com o Espírito. Mas uma
vez que afastámos de tal maneira de nós esta graça, pelo menos que nos valhamos
da segunda hipótese.
O Santo mostra como Deus falou de
modo familiar com Noé, Abraão, Job e Moisés, sem escritos. Mais, a Palavra Incarnada
não deixou escritos aos Apóstolos, como poderia ter feito, mas antes lhes
prometeu e concedeu o Espírito.
Mas então porque é que temos as
Escrituras? Pela mesma razão, diz, que Moisés trouxe as tábuas da Lei, por
causa da nossa maldade: “uma vez que, passados os anos, naufragámos, uns em
relação à doutrina, outros em relação à vida e às maneiras, houve novamente a
necessidade de que fossem recordados pela palavra escrita”.
Tudo isto apenas sublinha a importância actual, diz Crisóstomo, de estudar a Escritura: “Reflictam então sobre como é um grande mal para nós, que devemos viver de forma tão pura que nem precisamos de palavras escritas, entregando os nossos corações, como livros, ao Espírito; agora que perdemos essa honra, e temos necessidade delas, voltarmos a falhar em fazer bom proveito até deste segundo remédio”.
E acrescenta, para encorajar ainda
mais o seu rebanho: “Se estamos em falha por precisar do auxílio de palavras
escritas, e não termos feito descer sobre nós a graça do Espírito, então considerem
quão grave será a acusação de optar por não lucrar até com este auxílio, mas
antes tratar com desprezo aquilo que está escrito, como se fosse uma obra sem
propósito, aleatória, invocando sobre nós um castigo ainda mais duro”.
Tudo isto faz sentido. O Espírito
está connosco, tão certo como o Filho estava connosco na Fundação da Igreja. Mas
porque é que a Sua presença, que em princípio nos devia bastar, não nos basta
na prática?
Não podemos regressar às primeiras
décadas da Igreja, mas podemos pensar na vida cristã como estando estratificada.
Imaginem, primeiro, que tudo o que está escrito nos era retirado. Não só a
Bíblia, mas todos os escritos dos Concílios, isto é, a tradição entretanto
escrita. Continuamos com consideráveis riquezas. Tiramos delas o melhor
proveito?
O que é que quero dizer com isto? Quero
dizer que conhecemos o Credo, as orações mais básicas, o terço. Podemos ir ao
sacrário e rezar diante do Senhor. Logo veremos que precisamos de rezar muito
mais, para nos tornarmos mais familiares com Deus. E que devemos praticar a
mortificação, para criar aberturas para o Espírito.
Temos os exemplos dos santos, cujas
vidas conhecemos. Provavelmente temos conhecimento de milagres entre os nossos
amigos. Mesmo a existência de bispos, seja qual for a sua santidade, testemunha
a realidade da fundação da Igreja. Qualquer padre é um testemunho da
instituição da Eucaristia.
E temos os sacramentos.
Tente viver assim no Espírito. Agora
acrescente a Escritura e a tradição escrita. Claro que estes estratos não são temporais,
nem isoláveis, mas cada um tem por objectivo complementar o outro.
Podemos até argumentar que o conceito
de “sola scriptura” apenas poderia parecer uma regra necessária para os
reformadores protestantes porque os católicos daquela altura claramente não
estavam a viver de forma suficiente a fé “nulla scriptura”.
Michael Pakaluk, é um
académico associado a Academia Pontifícia de São Tomás Aquino e professor da
Busch School of Business and Economics, da Catholic University of America. Vive
em Hyattsville, com a sua mulher Catherine e os seus oito filhos.
(Publicado pela primeira vez
em The Catholic Thing na quarta-feira, 6 de Julho de 2022)
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Não, a Escritura Sagrada não é o "plano B" de Deus, um remédio para a nossa maldade, que podíamos orgulhosamente considerar supérfluo por uma vida de santidade. Não, a Escritura Sagrada não está ao mesmo nível que qualquer outro ensinamento da Igreja ou dos santos. Não, a Escritura Sagrada não é algo a "acrescentar" a uma vida de santidade. Não, Deus não tinha intenção de que conseguíssemos ouvir o Espírito sem recurso à Escritura Sagrada, tendo inventado este estratagema para ultrapassar o nosso problema de surdez inata. Não ofendamos a Deus, fazendo da Escritura Sagrada um campo de batalha entre Católicos e Protestantes, em vez de fazer dela precisamente a ponte que podemos atravessar para alcançarmos a união pedida por Jesus. Não ofendamos a Deus, pretendendo não precisar da sua Palavra para nos aproximarmos d'Ele. Não ofendamos a Deus, separando o AT do NT, como se este pudesse viver sem aquele, como se este não fosse de facto o pleno cumprimento daquele. Os primeiros cristãos não precisaram da Escritura? Mas então os Atos não repetem continuamente os mesmos discursos dos Apóstolos, cansando-nos com a sua contínua referência à Torá e aos Profetas? E no caminho de Emaús, Jesus não explicou aos dois discípulos tudo o que a Ele dizia respeito em toda a Lei e os Profetas? Esteve a perder o seu tempo? Obviamente que os primeiros cristãos não tinham uma Bíblia em casa, mas iam todos os Sábados à sinagoga escutar a Palavra, até finalmente começarem a escutá-la nas casas uns dos outros e nas igrejas, ao Domingo. Podemos ser santos sem conhecer as Escrituras? Podemos. Podemos afirmar que as Escrituras são supérfluas, se conhecermos a Tradição e se cumprirmos os Mandamentos? Não. Basta de transformar a Bíblia num campo de batalha. Que a Palavra do único Pai seja o que nos une, Judeus e Cristãos de todas as denominações, e não o que nos faz a nós, Católicos, subir "orgulhosamente sós" ao nosso pedestal.
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