Wednesday, 13 July 2022

Repensando a “Liberdade Procriativa”

John M. Grondelski

No rescaldo da decisão do processo Dobbs, que reverteu o Roe v. Wade, os defensores do aborto estão a usar todo o género de tácticas histéricas para sugerir que os juízes que formaram a maioria nesta sentença estão a ameaçar “direitos” e “liberdades”. Apesar de o juiz Samuel Alito ter assegurado que a decisão em Dobbs se restringe ao aborto, os activistas citam a opinião concordante de Clarence Thomas – em que ele ataca o conceito legal do devido procedimento legal, e não os assuntos éticos a que tem sido aplicado – para dar a entender que a seguir vamos ter de viver com leis que proíbem o casamento inter-racial.

Temos de focar esta discussão, com os seus méritos, noutro ponto, mais precisamente no conceito de “liberdade procriativa”.

O conceito de “liberdade procriativa”, desenvolvido pelo Supremo Tribunal, tem sido altamente individualista e em larga medida negativo. Esses pressupostos devem ser contestados, por não terem qualquer base científica e porque têm excluído outros interesses legítimos.

A passagem para um conceito altamente individualista de “liberdade procriativa” começou com Eisenstadt v. Baird, um caso de 1972 envolvendo contracepção. O Supremo Tribunal anulou a proibição não aplicada da contracepção por casais casados em Griswold v. Connecticut (1965), afirmando que o acesso à contracepção é defendido por um direito marital à privacidade.

Contudo, sete anos mais tarde esse mesmo Tribunal anulou uma lei de Massachusetts que restringia o acesso à contracepção para pessoas não casadas. Sem querer discutir os méritos dessa lei, o ponto aqui é a mudança de perspectiva, que passou a ver a procriação principalmente como uma questão individual, devido ao abandono do aspecto “marital”.

Essa abordagem deve ser contestada, em primeiro lugar por estar desprovida de bases científicas. Como Ryan Anderson explica no seu livro “When Harry Became Sally”, o sistema reprodutor é o único dos nove sistemas do corpo humano que não é autónomo. É o único sistema que requer a colaboração de outra pessoa para funcionar. Conseguimos respirar, circular sangue e digerir o nosso jantar sozinhos, mas não podemos procriar sozinhos.

Para além do envolvimento directo de outra pessoa na procriação da vida humana, a cultura ocidental sempre assumiu a existência de um interesse social na procriação. A própria existência e continuidade da sociedade como um todo depende daquilo a que Irving Berlin chamou “fazer o que vem com naturalidade”.

Em 1972 a elite americana acreditou no apelo de Paul Ehrlich para um Crescimento Populacional Zero, não fosse a “bomba populacional” explodir e transformar o mundo no planeta Gideon, da série Star Trek, a abarrotar de pessoas. Ironicamente, como até Elon Musk reconheceu recentemente, a grande ameaça para o ocidente agora é o inverno demográfico.

Esta abordagem individualista à “liberdade procriativa” foi-se afirmando, mesmo quando o Tribunal insistia que estava a fazer o contrário. Assim, em Roe v. Wade, o juiz Blackmum afirmou que “a mulher grávida não pode ficar isolada na sua privacidade”.  (410 US 113 at 159).

Contudo, foi precisamente isso que o Tribunal fez ao longo dos próximos 49 anos, insistindo que o progenitor masculino não tinha qualquer palavra a dizer sobre o destino do seu nascituro, porque o Estado não podia “delegar” nele um poder de veto, o que é uma ideia bizarra, uma vez que a paternidade antecede o Estado e, por isso, não precisa de basear o interesse paterno numa delegação do mesmo.

Assim, o tribunal negou os direitos paternais para aprovar ou sequer tomar conhecimento do aborto de uma criança menor. Aboliu tentativas por parte dos estados para travar a matança dos deficientes, impedindo a proibição de abortos eugénicos, motivados por intenções discriminatórias que seriam absolutamente ilegais um minuto após o nascimento.

No rescaldo de Dobbs, podemos começar a ter esperança na reversão de alguns destes casos que mutilaram os direitos parentais e paternais, legitimando a discriminação pré-natal, em particular contra crianças deficientes e do sexo feminino, como acontece com a esmagadora maioria dos abortos por selecção de sexo.

A invenção da “liberdade procriativa” por parte do Tribunal foi largamente negativa, sobretudo porque até 1978 as pílulas ou os abortos evitavam ou punham fim a gravidezes. Mas esse traço individualista e negativo perdurou, mesmo depois da tecnologia reprodutiva reduzir os pais a dadores de esperma e as mães a dadoras de óvulos ou senhorias de úteros.

Assim, em Davis v. Davis, o Supremo Tribunal do Tennessee, tendo por base os fundamentos não-científicos de Roe, que fingiu que a questão do começo da vida humana não tem resposta, decidiu num caso de divórcio em que se discutia a custódia de óvulos fertilizados, que Junior Davis não podia ser obrigado a “tornar-se” pai. Temos novidades para o Junior… Já és.

A “liberdade procriativa” tem sido apresentada quase sempre em termos de prevenir ou pôr fim às vidas de crianças, conforme os desejos dos adultos.

Porém, o avanço da tecnologia reprodutiva coloca novas questões sobre a “liberdade procriativa” individualista. Se a procriação – não obstante a ciência – deve ser entendida em termos de escolha individual, então nenhuma criança tem direito a ter dois pais, um pai e uma mãe, ou a uma relação genética com esses pais, ou a ser concebido e a vir ao mundo como acontece com crianças desde tempos imemoriais.

As crianças e os seus direitos são subordinados às vontades, preferências e “escolhas” de um adulto, ou adultos. Mas, como disse o antigo Arcebispo de Paris, Michel Aupetit, quando as crianças se tornam “projectos parentais” devem inevitavelmente ser reificados, porque se transformam inelutavelmente em produtos que vão (ou não) ao encontro das especificações de outro.

É isso que nós queremos enquanto sociedade?

Deixando o histerismo de lado, poderá a anulação de Roe remover limites constitucionais à discussão destas questões, incluindo de saber que tipo de sociedade queremos para os nossos filhos?

Entrar nessa discussão levará tempo e esforço, porque há forças poderosas que querem manter o regime de “liberdade procriativa” que culminou em Roe. E muitos outros americanos simplesmente nunca imaginaram, ou não conseguem imaginar outra forma de organizar as coisas.

Mas esse é um esforço imperativo, porque não se trata de uma questão de adultos que, como crianças, insistem em ter, ou exigem o que querem. A questão de fundo é mesmo sobre as crianças.


John Grondelski (Ph.D., Fordham) foi reitor da Faculdade de Teologia da Seton Hall University, South Orange, New Jersey.  As opiniões expressas neste texto são apenas suas.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Quinta-feira, 7 de Julho de 2022)

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1 comment:

  1. Bom post, mesmo os anti-aborto não reflectem na paternidade. Se uma mulher pode abortar porque já não quer ser mãe, então pela mesma lógica um homem também teria o direito a não querer ser pai. Até X semanas da gravidez, o homem podia dizer ao estado que não quer ser pai e como tal ninguém lhe pode exigir responsabilidades ou pensão de alimentos. No caso do aborto não existe o argumento individual. Mesmo se partimos do príncipio que feto não é vida, ainda assim existem 2 pessoas.

    A função da Suprema Corte não é criar leis, mas fazer cumprir a constituição independentemente das opiniões de cada um. A constituição dos EUA permite que cada estado faça as leis que entender, desde que essas leis não sejam contrárias à própria constituição que nem fala em aborto. Logo até se pode criticar a constituição, mas não a Suprema Corte por a fazer cumprir.

    O que me chamou também a atenção foi as pessoas pró-aborto utilizaram termos como atraso, retrógado e medieval. Como monárquico depara-me muito com esta falácia: A medicina é mais antiga que o Covid-19. O valor de uma ideia/regime não se mede pela sua idade. Um ditador também pode alegar que o seu regime é mais moderno e recente que a democracia, logo é melhor. A ideia Baath de Saddam Hussein é muito mais recente do que a ideia grega de democracia. Além disso se partimos desse príncipio que a antiguidade invalida o argumento, então todas as ideias irão estão erradas no futuro como por exemplo: Monarquia, República, Esquerda, Direita, Comunismo, Capitalismo etc... O Teorema de Pitágoras é muito antigo. Alguém diz que ele está errado por ser muito antigo?

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