Na sua convicção da necessidade
de se conhecerem as Escrituras, Jerónimo antecipou a visão de Santo Agostinho
de que o Novo Testamento está escondido no Antigo, e que no Novo o Antigo é
revelado. Lá se vai o marcionismo, com a sua vontade de descartar as Escrituras
judaicas e negar que o Deus de Israel também é nosso Pai. E lá se vão os
argumentos daqueles que argumentam que por causa da presença de Cristo nos
sacramentos é possível ser um discípulo maturo do Senhor Jesus sem o contacto
regular e íntimo com as Sagradas Escrituras, tanto do Antigo como do Novo
Testamento.
Na tarde do Domingo de Páscoa
o Senhor Jesus Ressuscitado juntou-se no caminho de Jerusalém para Emaús a dois
discípulos macambúzios, “mas os olhos deles foram impedidos de o reconhecer”
(Lc 24,16). Os dois homens falaram ao desconhecido da sua incompreensão face à
morte de Jesus de Nazaré, que eles acreditavam ser “um profeta, poderoso em
palavras e em obras diante de Deus e de todo o povo” (Lc 24,19).
Depois de os dois homens
reconhecerem que algumas mulheres do seu grupo afirmavam ter visto anjos, nessa
mesma manhã, a anunciar que Jesus estava vivo, o Senhor Ressuscitado declarou:
“‘Ó gente sem inteligência! Como sois lentos de coração para crerdes em tudo o
que anunciaram os profetas! Porventura não era necessário que Cristo sofresse
essas coisas e assim entrasse na sua glória?’. E começando por Moisés,
percorrendo todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava dito em
todas as Escrituras” (Lc 24,25-27).
Por fim, depois de se ter
juntado aos dois discípulos para comer, “tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e
serviu-lhos. Então, se lhes abriram os olhos e o reconheceram, mas ele
desapareceu. Diziam então um para o outro: ‘Não se nos abrasava o coração,
quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?’” (Lc 24,
30-32).
Para poder reconhecer o Senhor
Ressuscitado no seu incomparável dom da Santíssima Eucaristia, para o poder
reconhecer no aflitivo disfarce de pobre e para o poder reconhecer na irmandade
de outros cristãos, reunidos para louvar a Deus, primeiro é necessário
reconhecê-lo na Página Sagrada, escutar e obedecer à Palavra de Deus na Bíblia,
porque “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a
repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o homem de
Deus seja apto e plenamente preparado para toda a boa obra” (2 Tim 3, 16-17).
São Jerónimo, de Durer, MNAA |
Mas tal experiência da Sagrada
Escritura não afecta apenas o discipulado do crente individual, também dá forma
a tudo na vida da Igreja, incluindo os seus ensinamentos e o seu louvor. Na
Constituição Dogmática sobre Revelação Divina, Dei
Verbum, o Concílio Vaticano II ensinou que “a santa mãe Igreja, segundo a
fé apostólica, considera como santos e canónicos os livros inteiros do Antigo e
do Novo Testamento com todas as suas partes, porque, escritos por inspiração do
Espírito Santo, têm Deus por autor, e como tais foram confiados à própria
Igreja (#11).
Vemos assim que a Bíblia é
recebida e reverenciada como sendo revelação divina, e o mesmo não se pode
dizer de qualquer outro texto na Igreja, incluindo livros litúrgicos, orações
devocionais e decretos conciliares, sendo por isso mesmo que o Concílio insiste
que as Escrituras, juntamente com a Sagrada Tradição, são a “regra suprema da
sua fé; elas, com efeito, inspiradas como são por Deus, e exaradas por escrito
de uma vez para sempre, continuam a dar-nos imutavelmente a palavra do próprio
Deus, e fazem ouvir a voz do Espírito Santo através das palavras dos profetas e
dos Apóstolos (#21).
O Cristianismo ou é uma
religião revelada, ou é uma religião falsa, e o dom sobrenatural da revelação
divina é-nos entregue no Evangelho de Jesus Cristo, que é “uma força vinda de
Deus para a salvação de todo o que crê” (Romanos 1,16).
Sim, a proclamação do
Evangelho começou antes de os textos do Novo Testamento terem sido escritos,
mas as Sagradas Escrituras são um singular e divino dom para a Igreja. “Porque
a Palavra de Deus é viva, eficaz, mais penetrante do que uma espada de dois
gumes e atinge até a divisão da alma e do corpo, das juntas e medulas, e
discerne os pensamentos e intenções do coração” (Hebreus, 4, 12).
E é por isso que cristãos
maduros devem conhecer a Bíblia através do estudo e da oração, porque ignorar
as Escrituras é ignorar a Cristo.
Jay Scott Newman, é padre da
Diocese de Charleston e pároco da Igreja de Saint Mary’s em Greenville, Carolina
do Sul.
(Publicado pela primeira vez
em The Catholic Thing na Domingo, 17 de Julho de 2022)
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Perfeito! Deus quis revelar-Se nas Escrituras, e quanto mais as lemos e rezamos, mais O reconhecemos na vida, no outro, na História. Tenho estado a orientar uma formação bíblica online, e sou testemunha da alegria contagiante de todos os participantes e de um crescimento de oração pessoal e familiar à medida que se dão conta da maravilha que se esconde e manifesta nas Escrituras.
ReplyDeleteComo seria belo se as famílias católicas dedicassem às Escrituras um bocadinho da atenção que os judeus e as famílias de outras confissões cristãs dedicam! Foi inspirada nestas famílias que, na nossa casa, decidimos contar histórias da Bíblia e ler as Escrituras em família todos os dias, sem exceção, e propor o mesmo a outros. E assim nasceram as Famílias de Caná, movimento católico de famílias que coloca a Palavra de Deus no centro da vida familiar. Quantos frutos! Como é diferente a vida de uma família, quando se alicerça, primeiro nos sacramentos, especialmente na Eucaristia dominical, mas também na Palavra diária, proclamada, meditada, estudada e partilhada! Parabéns pelo artigo.