Filip Mazurczak |
Há aqui várias lições a reter.
Em primeiro lugar, proporcionalmente, a aniquilação dos
tutsis é comparável com os genocídios mais conhecidos do Século XX: a Shoah e o
genocídio arménio. Durante a Segunda Guerra Mundial os nazis alemães
assassinaram dois terços dos judeus na Europa; e entre 1915 e 1923 os
nacionalistas Jovens Turcos exterminaram três em cada quatro Arménios no
Império Otomano. Entre Abril e Julho de 1994 os hútus mataram 70% dos tutsis no
Ruanda.
Apesar de terem usado sobretudo armas primitivas, como
batões e catanas, os hútus foram mais eficientes que o Terceiro Reich ou o
regime Otomano. Estes levaram vários anos a eliminar a maioria dos judeus
europeus ou arménios otomanos, mas aos hútus bastaram três meses para matar uma
proporção semelhante de tutsis.
Talvez a lição mais preocupante sobre a natureza humana a
retirar do inferno do Ruanda seja o facto de não serem necessários meios
sofisticados como Zyklon B ou fuzilamentos em massa em locais como Babi Yar para cometer homicídio em larga escala.
Para isso bastam corações inflamados de ódio.
Para os católicos o genocídio do Ruanda é especialmente
preocupante. De acordo com o censos de 2002, quase três em cada cinco ruandeses
identificava-se como católico. E mais, para além de leigos também houve padres
envolvidos no caos provocado pelos hútus.
Este facto já foi aproveitado por polémicas
anticatólicas. No livro “Deus não é Grande”, do já falecido Christopher
Hitchens, o genocídio do Ruanda é apresentado como mais um dos muitos exemplos
dos males provocados pela Religião. Mas essa não é a verdade completa.
Tal como noutros casos de vergonhas praticadas por católicos,
devemos reconhecer estes factos trágicos e não os minimizar. Em 2017 o Papa Francisco pediu perdão pelo papel dos padres neste genocídio.
O Presidente do Ruanda, Paul Kagame, que é um tutsi e católico, chamou a esta
declaração um “novo capítulo” no processo de cura.
No Catolicismo o reconhecimento dos nossos próprios
pecados, o pedido de perdão e a penitência não só conduzem o pecador de volta a
Deus, mas também pode ter consequências públicas. Em 1965, por exemplo, os
bispos católicos da Polónia enviaram uma carta aos seus homólogos alemães,
perdoando a nação alemã pela brutal ocupação nazi do seu país e pedindo eles
próprios perdão. Apenas duas décadas depois de os alemães terem morto seis
milhões dos seus concidadãos, muitos polacos acharam absurdo, e até obsceno,
que os seus bispos achassem que tinham de pedir perdão por o que quer que seja.
Contudo, os bispos argumentaram que bastava que um polaco
tivesse feito mal a um alemão, que isso já mereceria um pedido de perdão. A
carta dos bispos lançou as bases para a reconciliação entre polacos e alemães e
pouco depois o chanceler da Alemanha ocidental Willy Brandt reconheceu
formalmente a fronteira do pós-guerra.
O bispo Célestine |
Entre os promotores da carta estava o arcebispo Karol Wojtyła,
de Cracóvia, que mais tarde, já na qualidade de Papa São João Paulo II,
compreendeu o valor de arrependimento público – não humilhação, mas uma
expressão genuína de arrependimento – por males passados.
A honestidade histórica, porém, requer que nos recordemos
também de outras coisas. Por exemplo, o genocídio do Ruanda não foi motivado
principalmente por paixão religiosa; não foi como os massacres da Guerra dos
Trinta Anos. Foi, antes, motivado pelo terrível tribalismo que habita a nossa
natureza humana decaída e que desperta em tempos de conflito.
Durante a Segunda Grande Guerra, o regime Ustashe da
Croácia assassinou 400 mil pessoas, na maioria sérvios, mas também judeus e
ciganos. Os ustashe apelavam ao catolicismo popular para incitar ao ódio aos
sérvios ortodoxos; porém, as suas tácticas genocidas contradiziam claramente a
mensagem universalista do Evangelho. Tal como a Ustashe, os hútus também
apelaram por vezes a sentimentos religiosos por razões de conveniência
política. Contudo, os padres que foram cúmplices destes crimes agiram contra a
fé católica.
À medida que o Ruanda entrou numa espiral de guerra
civil, muitos tutsis católicos também morreram; aos hútus não interessava a
denominação, mas a animosidade étnica. E embora alguns padres tenham sido
cúmplices do genocídio, outros foram fiéis ao Evangelho, tal como o padre hútu
Célestin Hakizimana, agora bispo, que escondeu cerca de 2.000 tutsis em Kigali
e subornou as autoridades para não assassinarem os que estavam à sua guarda.
O genocídio do Ruanda também foi oficialmente condenado
pela Igreja Católica, ao mais alto nível. O Papa São João Paulo II, que sempre
se interessou muito por África, foi o primeiro líder mundial a descrever as matanças como genocídio e condenou-as
repetidamente, começando apenas dois dias depois de terem começado. Isto contrasta
fortemente com as Nações Unidas e com os estados ocidentais, que tinham a
capacidade militar para salvar centenas de milhares de pessoas, mas nada
fizeram.
Já Shakespeare dizia que o diabo pode citar as escrituras
em seu favor. Alguns dos assassinos em massa hútus de 1994 não citaram
propriamente as escrituras, mas apelaram ao tribalismo feroz, mascarado de
catolicismo cultural. Mas o facto de que houve pessoas da Igreja entre os
autores do genocídio permanece um grande escândalo. O testemunho dos Papas
recentes, bem como do bispo Célestin Hakizimana mostram, contudo, que mesmo
depois destes escândalos históricos, a substância não adulterada da fé também
pode desempenhar um papel fundamental em curar as feridas de sociedades
problemáticas e em restaurar a solidariedade humana.
Filip Mazurczak contribui regularmente para o Katolicki Miesięcznik “LIST”.
Os seus textos já apareceram também no First Things, The European Conservative e Tygodnik Powszechny.
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