Tuesday 8 November 2022

Abusos na Igreja - O caso do cardeal Jean-Pierre Ricard

A revelação, feita ontem, de que um cardeal francês abusou sexualmente de uma jovem de 14 anos numa altura em que ainda era pároco, é muito mais grave do que pode parecer à primeira vista – e à primeira vista é já extraordinariamente grave.

O cardeal em causa é Jean-Pierre Ricard, bispo emérito de Bordéus.

Com este escândalo são pelo menos três os cardeais que na última década foram acusados de impropérios sexuais. O cardeal Keith O’Brien, da Escócia, que foi revelado pela imprensa mesmo antes do último conclave, no qual não chegou a participar, embora nunca tivesse deixado de ser cardeal; o cardeal Theodore McCarrick, de quem se soube em 2018 e acabou mesmo por ser laicizado, e agora Jean-Pierre Ricard. Pelo meio tivemos outro bispo afastado do Colégio dos Cardeais, Giovanni Angelo Becciu, mas por suspeitas de más-práticas financeiras, e não sexuais e mais recentemente tivemos o caso de D. Ximenes Belo, que não sendo cardeal é Nobel da Paz, o que o coloca também num patamar especial.

Em Portugal os bispos têm estado sob pressão por causa dos casos de abuso sexual na Igreja, mas nada que se compare com França. É verdade que o estudo apresentado em França, que aponta para centenas de milhares de vítimas de abuso infantil na Igreja local, é muito questionável, mas independentemente disso, a verdade é que Ricard não é o primeiro, mas sim o décimo-primeiro bispo a ser acusado no âmbito desta questão dos abusos sexuais.

Mas olhando agora mais de perto para a sua acusação em particular – ou melhor, a sua admissão, pois o próprio já admitiu os factos e pediu perdão à vítima, pondo-se ao dispor da justiça civil e canónica – um dos factos mais graves, e que ainda não vi merecer a devida atenção na imprensa portuguesa, é que Ricard fez parte, durante 14 anos, da Congregação para a Doutrina da Fé (agora Dicastério), que ainda é o órgão que trata da maioria dos casos de abuso sexual praticados na Igreja, decretando as sentenças para os padres que são condenados.

Isto significa que durante mais de uma década um homem que sabia ser ele próprio um abusador fez parte do painel responsável por lidar com casos de abusos. E isto é grave porque mesmo que ele tenha feito tudo bem – e não temos qualquer indício de que não tenha sido o caso – isto afecta gravemente a confiança dos órgãos da Igreja que mais precisam de ser insuspeitos para que ela limpe finalmente a sua imagem e vire uma nova página.

É evidente que nenhum sistema é perfeito, e haverá sempre padres e bispos corruptos, como existem polícias, juízes e políticos corruptos. Não há reforma que nos livre disso. Mas se há uma grande lição a retirar deste caso é mesmo para os clérigos.

Pode levar cinco, dez, vinte ou, como neste caso, trinta-e-cinco anos a saber-se. Mas o mais provável é que venha mesmo a saber-se. E quando se souber, quanto mais altos estiverem na hierarquia, quanto maiores as responsabilidades que assumiram, mais isso vai afectar a confiança dos fiéis que vos foram encomendados, mais as almas vão duvidar, mais pessoas virarão costas à mensagem salvadora de Cristo.

Depois de anos a cuidar da sua imagem e reputação, a Igreja está agora a perceber que é preciso colocar as vítimas em primeiro lugar. Mas lembrem-se que também o Povo de Deus merece respeito, merece integridade e verdade dos seus pastores e haverá um momento na vida de cada um dos que cometeu estes abomináveis crimes em que terá de decidir se aceita o cargo, a promoção ou a responsabilidade que lhe está a ser oferecida, apesar de carregar esta bomba relógio consigo, ou se recusa, para pelo menos poupar os fiéis de mais escândalos no futuro quando a verdade vier ao de cima.

Já que fizeram a coisa errada no passado – se for esse o caso – façam a certa agora. E de preferência submetam-se à justiça da Igreja e do Estado, já que a de Deus é certa. 

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