Friday 18 February 2022

Dimensões religiosas da crise na Ucrânia

A situação de tensão que se vive neste momento na Ucrânia, com a ameaça de uma invasão russa, não é um conflito religioso. Isso deve ficar bem claro à partida. Mas tal não significa que não haja dimensões religiosas para este problema. E há. Neste artigo vou tentar abordar algumas delas.

 1.      Choque de civilizações, mais ou menos

Depois de décadas de Guerra Fria o mundo convenceu-se de que a religião tinha deixado de desempenhar um papel importante nas relações internacionais. O mundo enganou-se. A destruição das Torres Gémeas foi apenas o mais alto soar de um alarme que já se fazia ouvir desde os anos 80, quando os movimentos árabes se começaram a transformar de marxistas em islamitas.

Muitos passaram então a adoptar a visão catastrofista do choque de civilizações, antevendo como inevitável um conflito entre o mundo cristão e o mundo muçulmano. É verdade que em muitas partes do mundo esse conflito existe, basta ver a situação em muitos países do centro de África, onde o norte muçulmano encontra o sul cristão.

Mas convém não esquecer que alguns dos piores conflitos da história foram travados entre “irmãos de fé”. E isso não nos deve surpreender, porque tanto a história macro como a história das famílias mostra bem que as discussões mais severas, mais duradouras e muitas vezes mais sangrentas – seja metaforicamente, seja literalmente – são entre irmãos. Isto acontece nas famílias e acontece nos países. Olhemos para a Guerra Civil de Espanha, que se passou aqui tão perto, mas também para a nossa própria história.

Não deixa de ser curioso, por isso, e trágico, que a maior ameaça à paz mundial neste momento se passe no Leste da Europa, opondo dois países que partilham um historial de Cristianismo intimamente ligado. Foi a Kiev que chegou a fé em Jesus que depois seguiu para Moscovo e se espalhou por toda aquela região. O conflito na Ucrânia pode ter, por isso, algumas dimensões religiosas, que iremos ver com mais detalhe, mas não pode ser descrito como um choque entre duas civilizações religiosamente diferentes.

Contudo, o problema pode ser visto de outro prisma, da civilização não no seu aspecto religioso, mas cultural. Uma significativa parte da Ucrânia, temendo a influência de Moscovo, quer voltar-se para o Ocidente, abraçando as suas instituições e estilo de vida. Nesse sentido, ainda que passado a leste, entre dois países de leste, o conflito pode ser visto como representando o choque entre oriente e ocidente.

 2.      A religião neste conflito

Disse no primeiro ponto que a Ucrânia e a Rússia partilham uma história de Cristianismo. É verdade, mas a coisa não é assim tão simples.

De facto, o Cristianismo bizantino entra naquela parte do mundo através do Grão Príncipe Vladimir, de Kiev, que manda baptizar todo o seu povo e envia missionários para leste. Em breve grande parte da actual Rússia abraçou o Cristianismo.

Mais tarde, porém, Moscovo tornava-se o centro do Cristianismo de leste que, depois do grande cisma de 1054 viria a tornar-se o mundo ortodoxo.

Com o cisma, Constantinopla assumiu-se como a “nova Roma”, uma vez que a verdadeira Roma teria caído em heresia, segundo a sua visão. Mas quando Constantinopla cai nas mãos dos muçulmanos, tornando-se Istambul, começa a circular por Moscovo a ideia de que a “terceira Roma” devia ser ali, na capital de um grande império que era o garante da Ortodoxia cristã no mundo.

É assim que Moscovo continua a encarar-se não apenas como mais um Patriarcado inter pares no mundo Ortodoxo, mas como a principal Igreja. O problema para os Russos que partilham desta visão é que embora a cidade tenha caído, o Patriarcado de Constantinopla manteve-se e o verdadeiro primus inter pares ortodoxo continua a residir ali, apesar de ter na cidade pouco mais do que cinco mil fiéis, comparados com os 200 milhões de Moscovo.


O período soviético veio congelar as pretensões da Igreja Russa, que foi sujeitada a uma perseguição impiedosa, mas infelizmente quando esta foi restaurada, em vez de insistir numa saudável separação e distância, a Igreja deixou-se envolver com o Estado e em troca da protecção de que goza corre sempre o risco de ser usada para benefício dos projectos e intenções do Kremlin e do seu homem forte, Vladimir Putin.

Quando a Ucrânia se tornou independente a sua Igreja Ortodoxa continuava sujeita à hierarquia em Moscovo. Mas a tradição na Igreja Ortodoxa é de “uma nação, uma igreja”, e por isso alguns bispos ucranianos começaram a reivindicar a criação da sua própria igreja ortodoxa.

O resultado foi uma confusão. Em 1990 formou-se a Igreja Ortodoxa Autocéfala da Ucrânia e, dois anos mais tarde, a Igreja Ortodoxa da Ucrânia – Patriarcado de Kiev. As duas eram rivais, unidas apenas na sua oposição à Igreja Ortodoxa da Ucrânia – Patriarcado de Moscovo, que era, e é, a Igreja Ortodoxa que se mantém ligada à igreja russa.

Nas bancadas, a observar estas guerras internas e a comer pipocas, estavam os membros da Igreja Greco-Católica da Ucrânia, que é a maior Igreja oriental autónoma em comunhão com o Papa, representando cerca de 10% da população.

A resposta de Moscovo perante a criação das igrejas autónomas russas foi de desprezo. Eram hereges e não reconhecidas canonicamente pelo resto do mundo ortodoxo. O Patriarcado russo continuava a insistir que era a única autoridade legítima ortodoxa na Ucrânia. Mas tudo isso mudou em 2018, quando o Patriarca de Constantinopla concedeu à Igreja Ucraniana o tomos, isto é, o reconhecimento oficial de autocefalia. Inteligentemente, as duas Igrejas ucranianas fundiram-se nesse momento para formar uma única Igreja autocéfala na Ucrânia, que imediatamente teve o reconhecimento e o apoio do Estado, ansioso para se livrar de vez da influência de Moscovo. Claro que isso é mais fácil dizer do que fazer, e houve muitos padres, monges, bispos e comunidades que se mantiveram fiéis a Moscovo, por variadíssimas razões.

Como se pode ver a dimensão religiosa aqui não está na raiz do conflito actual, que tem muito mais a ver com questões económicas (recursos naturais) e geopolíticas (com a Rússia a querer manter e alargar a sua esfera de influência), do que com igrejas, mas não sendo a causa é uma dimensão que complica ainda mais um problema que já de si é difícil de resolver.

3.      O tribalismo no cristianismo oriental

E chegamos assim ao terceiro ponto, que é o perigo sempre presente do tribalismo no Cristianismo oriental.

Os católicos de tradição latina têm uma certa aversão às igrejas nacionais. Mas a história ditou que fosse essa a lógica a imperar no cristianismo oriental. Assim vemos que os ortodoxos não têm uma Igreja, com um líder, mas uma multiplicidade de igrejas nacionais ou étnicas, cada uma com o seu próprio líder. Assim, existe a Igreja Ortodoxa da Grécia, da Roménia, da Bulgária, da Letónia, etc., cada uma com o seu líder, seja Patriarca ou não, e todas em comunhão umas com as outras, reconhecendo no Patriarca de Constantinopla uma primazia de honra, que pouco tem a ver com a primazia do Papa na Igreja Católica.

Esta realidade leva a uma grande riqueza em termos de tradição e liturgia, por exemplo, uma vez que a descentralização promove a variedade. Mas tem também um enorme senão, que é a promoção do tribalismo cristão.

Este tribalismo tem duas grandes vertentes negativas. A primeira é mais estrutural, que é o facto de criar obstáculos à evangelização. Uma Igreja que se identifica com uma nação ou com uma etnia torna-se imediatamente menos atractiva para um convertido do que uma igreja que é universal. O resultado prático é que a Igreja Católica de rito latino, que sempre se viu mais como universalista do que étnica, cresceu de uma forma absolutamente desproporcional, enquanto as igrejas ortodoxas – não obstante alguns casos de sucesso de evangelização – continuam remetidas muito à sua própria realidade étnica ou nacional.

Isto é muito aparente nas Igrejas cristãs de países de maioria muçulmana, como a Igreja copta ou a igreja maronita, melquita, ou siríacas, no Médio Oriente. E assim vemos que quando um árabe muçulmano se quer converter, normalmente acaba por entrar para uma igreja evangélica, ou para a Igreja Católica, uma vez que as locais, apesar de serem originárias daquele espaço geográfico, estão de tal forma identificadas com etnias e tradições culturais próprias, que o convertido se sente sempre como um estrangeiro.

Mas o segundo aspecto negativo é mais conjuntural e imediato no seu perigo, que é a cooptação da Igreja pelo Estado para servir interesses que não são religiosos. É isso que estamos a ver na Ucrânia, onde as Igrejas ucraniana e russa estão a ser arrastadas – ou a correr de livre vontade – para um confronto, quando na verdade este nada tem de religioso. Esta promiscuidade entre estado e religião tende a cobrar às religiões um preço muito mais alto do que as eventuais vantagens a curto prazo que podem retirar. Esse é um erro com o qual ucranianos e russos já deviam ter aprendido ao longo do último século, mas que infelizmente parecem teimar em querer repetir.

 4.      E a Igreja Católica nisto tudo?

Da próxima em Moscovo?

Por estranho que pareça, a Igreja Católica é afectada por esta crise que se passa entre dois países de esmagadora maioria ortodoxa.

A Igreja Greco-Católica da Ucrânia pode representar só 10% da população, mas é a maior comunidade católica no mundo tradicionalmente ortodoxo. Para terem uma ideia, enquanto existem cerca de cinco milhões de católicos na Ucrânia – mais uma significativa diáspora de greco-católicos em várias partes do mundo – o número de católicos na Rússia é de apenas 140 mil.

Estes católicos ucranianos sofreram duramente, mais até do que os seus irmãos ortodoxos, pela sua fidelidade a Roma. Num momento destes, em que se sentem injustiçados, esperam poder contar com o apoio do Papa.

Mas não podemos esquecer que um dos grandes objectivos ecuménicos deste pontificado é de conseguir visitar a Rússia e ter, lá, um encontro com o Patriarca de Moscovo. É algo que o Papa Bento XVI e, sobretudo, João Paulo II já queriam ter feito e não conseguiram. Se a Igreja Católica for vista a manifestar demasiado apoio à Ucrânia ou a censurar a atitude da Rússia, as probabilidades de esta visita acontecerem reduzem-se a zero. Já o contrário, uma visita do Papa ao Patriarca Kiril num contexto de um cerco à Ucrânia e com a Igreja russa firmemente ao lado de Putin, será vista por muitos católicos ucranianos como uma traição.

Até agora o Papa tem feito aquilo que lhe cabe, que é apelar incansavelmente para uma solução pacífica para esta crise. Se de facto começar um conflito armado em maior escala, veremos se isso é suficiente.

2 comments:

  1. Obrigado pela clara e lúcida apresentação que enriqueceu o meu saber.
    A Ucrânia é o cavalo troiano dela mesma e ao mesmo tempo o cavalo de Troia da Rússia e da Nato! Os interesses geo-estratégicos da Rússia e dos USA determinarão o futuro, com o apoio dos interesses económicos da EU. Sobre o assunto tenho um texto que se encontra também na minha página: https://antonio-justo.eu/?p=7116

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  2. Artigo muito interessante. Muito obrigado

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