Wednesday, 3 November 2021

“A Memória dos Nossos Mortos”

Tanya-Renee Laframboise

As listas têm algo de paradoxal. Por um lado, haverá coisa mais aborrecida no mundo? Uma itemização mundana de questões diversas de que não se pode dar ao luxo de esquecer, mas que também não tem importância suficiente para se dar ao trabalho de memorizar. Por outro lado, a lista tem poder. Poder real. Não interessa se é uma lista de pessoas, compras ou inventário. Alguém, algures, achou suficientemente importante para tomar nota.

Isso deve fazer-nos pensar. Porque seja o que for que se coloca numa lista, podemos ter a certeza que a pessoa que a fez lá chegará. Será tomada uma acção. (E Deus proteja aqueles que, cada vez, mais, dão por si nas listas erradas.)

Seja como for, recentemente estive a pôr a conversa em dia com um teólogo respeitado, ao longo de alguns meses. Os nossos telefonemas tendem a ser conversas sobre interesses partilhados. Da última vez que falámos ele referiu uns livros de um jesuíta dos finais do Século XIX que poderiam ajudar a aprofundar o tema.

Bom. No que toca a este tipo de assuntos eu faço listas. Eu gosto de listas.

Por isso, enquanto ele referia os nomes dos livros eu ia escrevendo na minha listagem de “Livros a Ler ou Adquirir”, que guardo debaixo da lista longa e (ridiculamente) alfabetizada de livros que atualmente possuo. Foi com surpresa que vim a perceber que já tenho algumas das suas obras. Simplesmente eu tinha-me esquecido do nome do padre.

E é sobre a recordação desses nomes em particular que eu quero falar aqui.

A verdade é que uma lista de nomes pode ser a mais aborrecida de todas, sobretudo se não virmos uma ligação a nós mesmos. Lembram-se da chamada? Quando eramos crianças parecia interminável. E hoje em dia podemos observar os olhos dos adultos a embaciar quando escutam as genealogias nas Escrituras, na Missa.

Sim, tanto a Escritura como a Igreja tratam a genealogia – linhagem e listas de nomes – com reverência. E por boas razões. Num certo sentido, os bispos e os padres que estes ordenam têm uma linhagem milenar própria, a Sucessão Apostólica.

E o Cânone Romano guarda cuidadosamente uma lista de alguns dos primeiros mártires e santos, como eram invocados desde os primeiros tempos na liturgia. Foi a Igreja que declarou canónicos e inspirados por Deus os Evangelhos de Lucas e de Mateus. Se essas genealogias do Evangelho não nos dizem nada agora é porque não lemos devidamente a Bíblia. Porque esses nomes diziam algo a Jesus. Cada um deles é simultaneamente uma pessoa e uma história. Todos somos a nossa história, incluindo Cristo.

Há anos eu era uma genealogista certificada, numa altura em que era preciso mais do que uma assinatura num site, um computador e desenrascanço. Nessa altura procurava explicar aos que me pediam para investigar as suas linhagens que deviam querer mais do que uma mera lista de nomes. Queremos conhecer os indivíduos em si. Os seus esforços, os seus triunfos, as suas dores de alma. Como é que a fé pesava nas suas vidas? Que histórias eram as suas?


Raramente ligavam ao que eu dizia. A maioria das pessoas queria era descobrir uma pessoa famosa na sua família. Caso não surgisse ninguém, ficavam desapontados e queixavam-se de ter uma lista de “ninguéns”.

Não existe tal coisa como um “ninguém.”

Há almas que, tendo vivido as suas vidas de barro, partem para o seu juízo final. E como diz nas escrituras, “que coisa terrível é cair nas mãos do Deus vivo” (Heb 10,31). Merecem o nosso respeito e as nossas orações. Deram-nos vida.

Mas a outra coisa que tentava incutir nestas pessoas era de guardarem uma “árvore” dos padres que tinham ministrado às suas famílias ao longo dos anos. Os que constam dos registos baptismais e de casamento. Os homens que pregaram, absolveram e sepultaram os seus antepassados. Porque eles também fazem parte da sua história. E merecem ser recordados. 

Já vivi numa série de paróquias em que havia noites de oração semanais diante do Santíssimo para expiação dos pecados do clero. Realizavam-se em noites diferentes ao longo do mês. A experiência da primeira dessas noites marcou-me de uma forma assustadora. Nomeadamente a noção de que as almas de alguns destes homens, salvos apenas pela misericórdia de Deus e pelas orações dos outros, eram praticamente indistinguíveis dos nomes dos condenados. Nunca mais me esqueci dessa noite.

Nada que me tivesse ocorrido quando era criança. Nessa altura ainda se fazia uma procissão à luz da vela através do cemitério para rezar pelas Pobres Almas. Com grande solenidade, o padre transportava o Santíssimo pela escuridão da noite até à capela do cemitério. Os fiéis andavam em torno das campas, passando pelo monte onde estavam enterrados os padres, cantando litanias e rezando pelos mortos. Depois dispersavam, cada um para as campas dos seus familiares.

Ninguém parava junto ao monte.

Podemos perdoar o facto de uma criança pensar que os padres eram santos e não precisavam de orações. Os adultos podem ser perdoados por não quererem ficar mais tempo ao frio gélido. Mas hoje vejo as coisas de outra forma. E preocupa-me. E o padre que liderava essas procissões? Também me esqueci do nome dele. E isso também me preocupa.

Porque seja o que for que um padre é – santo ou pecador, zeloso ou indolente – não deixa de providenciar os sacramentos ao povo. Não deixa de oferecer o Sacrifício a Deus. Não deixa de se apresentar no dia do seu juízo, necessitado de orações. Mas sem herdeiros para além daqueles a quem ministraram, quem recordará os seus nomes diante do Senhor?

Todos os anos, por volta deste dia, vou buscar a mais valiosa de todas as minhas listas: as genealogias da minha família. E faço um rol dos mortos a lembrar nas minhas orações. Mas incluo na listagem os homens que tornaram possível a vida de fé da minha família. E cujo juízo final reflectirá a exigência mais alta a que foram chamados.

De facto, todos somos a nossa história. Mas estes homens formam dela uma parte crucial.


Taynia-Renee Laframboise é escritora, oradora e estudante de Sagrada Escritura, com licenciaturas de Marquette e de Notre Dame. É especializada em antropologia teológica e exegese patrística. Agradece todos os comentários e perguntas dos leitores, que podem ser enviados para tfranche@protonmail.com

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no sábado, 30 de outubro de 2021)

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