Casey Chalk |
Os primeiros reformadores revoltaram-se contra a Igreja
Católica em primeiro lugar por causa da salvação. Enquanto a Igreja ensinava
que a cooperação do homem era necessária para a sua salvação, Lutero, Calvino e
Zwingli, entre outros, rejeitaram isto como incompatível com as doutrinas da
graça e da soberania de Deus. A salvação deve ser inteiramente obra de Cristo,
diziam, avançando as doutrinas protestante da Sola Fide (apenas a fé) e Sola
Gratia (apenas a graça). Como escreveu Lutero em Do Cativeiro Babilónico da
Igreja, “diante de Deus todas as obras se medem apenas pela fé”.
Não obstante, a primeira geração de reformadores mantinha
uma visão de Maria que chocaria a maioria dos protestantes contemporâneos.
Martinho Lutero continuou a acreditar na virgindade perpétua de Maria e na sua
imaculada concepção. Calvino estava disposto a aceitar a sua virgindade
perpétua como sendo pelo menos possível e criticou outros protestantes por
rejeitarem simplesmente a doutrina católica. Pode-se especular sobre se a
retenção de certas concepções de Maria por parte destes reformadores era
motivada mais por resquícios da sua própria educação ou pela sua leitura das
Escrituras.
Com o passar dos anos a estrelinha de Nossa Senhora
foi-se apagando por entre os protestantes, até ao ponto em que qualquer
referência positiva motiva acusações de “romanismo”. Foi certamente essa a
corrente de protestantismo em que eu fui educado, primeiro enquanto evangélico
e depois como seminarista calvinista. A veneração de Maria, ou de qualquer
outro santo, ensombrava a adoração e a honra devidas exclusivamente a Cristo
(embora, ironicamente, a reverência pelos próprios reformadores, como Lutero e
Calvino, pudesse ser bastante efusiva).
O teólogo reformado “neo-ortodoxo” Karl Barth, porém,
oferece-nos um bom exemplo das suspeitas protestantes em relação à veneração
mariana. Em Dogmática Ecclesial escreve:
O dogma mariano não é mais nem menos que o dogma
normativo central e crítico da Igreja Católica Romana. O dogma a partir do qual
todas as suas outras posições importantes podem ser avaliadas, e em relação à
qual se sustentam ou caem. A “mãe de deus” do dogma mariano católico romano é,
simplesmente, o princípio, tipo e essência da criatura humana a colaborar, como
uma serva (ministerialiter), com a sua própria redenção, com base na graça preveniente,
e nessa medida é o princípio, tipo e essência da Igreja.
Trata-se de uma afirmação assinalável pelo Barth. É verdade que os teólogos e o clero católicos discordariam da sua descrição do Catolicismo, preferindo colocar a Encarnação e a Ressurreição no centro da dogmática católica. Mas a observação de Barth sobre a relação entre Maria e a soteriologia contém algumas perspetivas valiosas, ainda que incompletas.
O plano providencial de Deus requeria o “fiat” de Maria.
O seu “sim” na Anunciação é necessário, e é dado: “Eis aqui a serva do Senhor;
seja feito segundo a sua palavra” (Lucas 1,38). Hauke explica que “Maria, a
virgem Mãe do Salvador, estava intimamente ligada às obras da salvação. Deus
quis que a Encarnação dependesse do ‘sim’ desta mulher, que assim se torna
profundamente parte do mistério da Aliança”. Sem o consentimento de Maria, não
há messias.
Em Maria vemos ainda um modelo de perfeição para
seguirmos. Também nós somos escolhidos por Deus, seja através do baptismo na
infância, seja através do posterior reconhecimento de que Cristo nos chama a si
e à sua Igreja. Mas a nossa colaboração é necessária. Podemos rejeitar as
promessas baptismais feitas em nosso nome pelos nossos pais. Podemos rejeitar
as suas abordagens noutras fases da nossa vida, seja por ignorância deliberada,
seja por desobediência explícita. Mesmo para os fiéis, esta é uma batalha que
tem de ser travada todos os dias, à medida que se apresentam novas tentações e
provas.
Cristo nosso Senhor declarou que a desobediência aos seus
mandamentos e a rejeição do nosso chamamento enquanto cristãos pode resultar na
nossa condenação eterna (Mateus 25, 1-46). São Paulo diz, em larga medida, o
mesmo. “Como colaboradores de Deus, insistimos convosco para não receberem em
vão a graça de Deus” (2 Coríntios 6, 1). Claro que esta participação na nossa
própria salvação não é alcançada apenas através da força de vontade, como
ensinavam os hereges pelagianos, mas pela graça de Deus que opera no início,
meio e fim de todas as nossas acções.
Não obstante, Barth tem razão quando descreve o
ensinamento católico que eleva Maria para a posição de “tipo e essência da
natureza humana” a colaborar com a sua própria redenção. Os católicos procuram
imitar Maria na submissão total à sua vontade divina. Hauke explica: “Maria é
como o ponto fulcral em que as verdades centrais da fé católica se tornam
visíveis”.
Isto clarifica a gradual rejeição protestante dos dogmas
marianos. Na medida em que a mariologia ilumina a colaboração humana na nossa
salvação, viola os princípios protestantes da Sola Fide e da Sola Gratia. A
mariologia torna-se assim, nas palavras de Barth, “um tumor, isto é, uma
construção enferma do pensamento teológico. Os tumores devem ser extirpados”.
Para o protestantismo a devoção mariana não é apenas uma distração idolátrica
da adoração devida a Deus, mas algo que vicia a economia da salvação.
O testemunho de Maria, como ensina a Igreja, recorda-nos
que as nossas vontades não estão de tal forma entorpecidas pela morte que
precisamos da graça irresistível (outra doutrina reformada), mas que se mantêm
suficientemente intactas para podermos responder com fé e amor às abordagens da
graça divina. Para os protestantes os dogmas marianos são mais do que uma
simples distração, são um ataque ao cerne do protestantismo e, por isso, um
obstáculo sério à conversão.
Mas, como eu descobri depois da minha própria conversão,
Maria – a quem muitos católicos rezam por mim – é uma verdadeira ajuda na
remoção de obstáculos.
Casey Chalk escreve para a Crisis Magazine, The American Conservative e a New Oxford Review. É licenciado em história e ensino pela Universidade de Virgínia em tem um mestrado em Teologia da Cristendom College.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quinta-feira, 16 de setembro, de
2021)
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