Wednesday 14 July 2021

Raça, Aliança e Perdão

James F. Keating

Sessenta anos depois do movimento dos direitos civis e uma década depois da eleição triunfante do primeiro Presidente afro-americano, a questão racial regressou com uma urgência premente. Há intelectuais católicos que se riem da ideia de que o destino da nação americana deve ser do menor interesse para os fiéis. Alguns poderão mesmo deliciar-se em apontar o facto de que os aspectos mais tóxicos desta nossa “prestação de contas racial” são um acrescento previsível da fundação liberal da América.

Lidaremos com esse argumento noutra altura. Por agora o caminho mais prudente é reconhecer que a Igreja Universal existe dentro de nações, e que por isso as “alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias” (Gaudium et Spes, 1) de cada país devem ser partilhadas pelos seus cidadãos católicos. Os pensadores católicos têm, por isso, a obrigação de examinar esta questão de forma honesta e de procurar as formas como a sabedoria da nossa tradição pode sarar e elevar a causa da reconciliação racial.

Estas são águas turbulentas; só um tolo é que se lança nelas sem um plano para navegar as suas correntes fortes. Existe um esboço para este plano em “Race and Covenant: Recovering the Religious Root for American Reconciliation” (editado por Gerald R. McDermott). Esta coleção apresenta uma seleção de académicos reconhecidos e que focam a questão de como é que os Estados Unidos poderão cumprir melhor a promessa de aliança contida na Declaração de Independência, que considera uma verdade evidente que “todos os homens são criados iguais, que são dotados do seu Criador com certos Direitos inalienáveis, entre os quais a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade”.

A ideia principal do livro é de que, nas palavras de Frederick Douglass, “as nações, não menos que os indivíduos, são sujeitas ao Governo moral do universo e que (…) a transgressão persistente das leis deste governo Divino trarão certamente tristeza, vergonha, sofrimento e morte nacionais”. Lincoln enquadrou o seu pedido de um jejum nacional com a questão de saber se as devastações da guerra não seriam “um castigo, infligido sobre nós, pelos nossos pecados presunçosos, para o fim necessário da nossa reforma nacional enquanto Povo inteiro?”

Claro que existem raízes sólidas para a noção de que Deus trata com as nações, pese embora estas gozem de uma história ambígua de recepção. O patriotismo divinamente sancionado tem uma má reputação que é bem merecida. O corretivo oferecido nestas páginas é de ver a aliança da América com Deus à luz do seu fracasso em cumprir as suas próprias promessas no que diz respeito aos afro-americanos. A regeneração nacional requer um período de exílio, não só na forma de agitação nacional, mas também pela realização dolorosa de que a divisão entre brancos e negros continua a existir.

Longe de um patriotismo reflexivo, os autores enfatizam o mal moral da escravatura e as devastações causadas pela longa recusa da nação em encarar o problema racial. Se o leitor quiser algo que trate este pecado original dos Estados Unidos como algo do passado, ficará desiludido com o “Race and Covenant”. Tal como o peregrino Dante aprendeu que o purgatório só começa quando se aceita a justiça da punição, estes autores rejeitam qualquer resolução do problema racial que não seja acompanhada da dinâmica do pecado e da regeneração pela graça.

Depois de uma introdução útil feita pelo editor, o livro divide-se em temas: a aliança nacional na história, os problemas actuais e estratégias para restauração. As contribuições são fortes e de interesse para um público católico. Como exemplo, destaco aqui três dos capítulos.

O primeiro diz respeito a Martin Luther King Jr., a última figura pública a falar de raça num quadro de aliança nacional americana. O autor é James M. Patterson, um historiador na Universidade Ave Maria e estudioso da relação entre fé e política. 


Abordando King enquanto pensador cristão, Patterson argumenta que ele procurou navegar entre as utopias do Evangelho Social e o realismo de Reinhold Niebuhr. Esta “via media” implicaria que a reconciliação racial necessitaria do poder coercivo do Estado, mas que só ficaria completa com uma mudança, uma conversão, no coração de todos os americanos. Os brancos deviam arrepender-se do seu racismo e os negros deveriam estar dispostos a aceitar esse arrependimento tal como Cristo tinha aceitado o seu. Patterson mostra-nos um King que veio a admitir a sua própria necessidade de perdão, vendo-se um pouco como um Moisés, cujas infidelidades matrimoniais o impediam de entrar na Terra Prometida que pregava.

Se Patterson sublinha o optimismo cristão de King, outro autor, Joshua Mitchell, traça o quadro do pensamento dos iluminados contemporâneos da questão racial. Também eles usam categorias de culpa e de inocência, mas desligadas da convicção de que Deus já lidou com a culpa universal através do sacrifício do seu Filho inocente.

Assim as categorias de pecador e inocente, oprimido e opressor não são possíveis para todos os seres humanos, antes são associados às pessoas com base na sua raça. Os brancos são culpados porque são brancos; os negros são inocentes por serem negros. Não existe a possibilidade da reconciliação através do perdão, só arrependimento perpétuo por parte de um grupo. Mitchell contrasta este beco nacional com uma teoria de competência liberal, em que os cidadãos dependem uns dos outros, através de divisões raciais, para construir um mundo em conjunto.

Concluo este texto com esta passagem emocionante do capítulo de Derryck Green, que é em si um convite a ler a obra completa:

Os negros têm sido sistematicamente alvejados, atacados, feridos e magoados. A escravatura e a segregação não foram exclusivas da América, mas foram um mal. Trata-se de pecados contra a aliança nacional e esses pecados têm sido obstáculos enormes à paz e à unidade que a maioria dos negros e dos brancos procuram. O chauvinismo racial branco que persiste, embora juridicamente prescrito, continua a orientar demasiados corações e demasiadas mentes. Algum do ressentimento e da revolta negra é por isso compreensível, mas outra parte não. Mas isso não importa. Jesus foi claro em dizer que os seus seguidores têm a obrigação de inverter o ciclo habitual de revolta, antipatia e hostilidade recíprocas. Enquanto seus discípulos, os cristãos negros devem iniciar o processo de reconciliação, e isso começa com o perdão.


James F. Keating é director do Programa de Humanidades de Providence College e professor associado de Teologia na mesma faculdade. É editor do livro Restoring Ancient Beauty: The Revival of Thomistic Theology, a publicar em breve.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no Sábado, 10 de Julho de 2021)

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