Tem circulado esta semana a
informação de que o Papa Francisco pretende castigar o Cardeal Raymond Leo Burke,
retirando-lhe o apartamento onde vive no Vaticano, e o seu estipêndio. A razão por
detrás do castigo será o facto de o Cardeal Burke ser um instigador de desunião
na Igreja.
Existem diferentes versões do
que se terá passado, que analisarei adiante. Mas antes de mais convém explicar
quem é o Cardeal Burke.
O homem das Dubia
Raymond Burke é um cardeal
americano. Especialista em Direito Canónico, serviu durante muitos anos na
Signatura Apostolica, o tribunal canónico da Santa Sé, tendo chegado a ser
prefeito da mesma. Conhecido por ser conservador, cedo no pontificado de
Francisco se começou a perceber que ele não estaria alinhado com o estilo e, em
larga medida, o conteúdo do mesmo.
O primeiro grande choque do
cardeal com o Papa foi depois da publicação do Amoris Laetitia, em que Burke,
juntamente com outros três cardeais – dois dos quais já morreram – endereçaram
ao Papa uma série de perguntas, pedindo respostas na forma de “Sim” ou “Não”, conhecidas
como “Dubia”. A questão das dúbia tornou-se uma autêntica novela, com o Papa a
recusar responder e os cardeais a divulgar publicamente as questões que tinham
feito, e o facto de terem ficado sem resposta.
Burke também se opôs ao Sínodo
sobre a sinodalidade, que se realizou em Outubro, tendo participado num evento
paralelo, organizado por opositores ao Papa Francisco, em Roma, chamado “A
Torre de Babel Sinodal”.
Mais recentemente Burke voltou
a enviar umas dubia ao Papa, acompanhado agora de outros quatro cardeais, incluindo
Brandmüller, sobrevivente da primeira volta. Desta vez o Papa respondeu, em
texto corrido, mas descontentes, os cardeais reformularam as perguntas e exigiram
do Papa respostas na forma de “Sim” ou “Não”, publicando o pedido. O Vaticano
publicou então as primeiras respostas, ignorando o segundo apelo.
O castigo
Depois de tudo isto, emergiu
recentemente que o Papa Francisco teria dito, numa reunião com os líderes dos dicastérios
em Roma, que pretendia aplicar um castigo a Burke, retirando-lhe o apartamento
e o salário.
Nas versões que circulam em
sites tradicionalistas, o Papa é citado como tendo dito “Burke é meu inimigo,
por isso vou retirar-lhe o apartamento e o estipêndio”. Segundo as fontes mais credíveis
que eu tenho conseguido consultar, esta versão é falsa. O termo “inimigo” nunca
foi usado. Isto é importante, porque o termo transmite a ideia de uma vingança,
ou uma birra. Contudo, as medidas serão verdade, de facto, confirmado pelo
próprio Papa a um dos seus mais fiéis defensores, Austen Ivereigh. O Papa,
aparentemente, não queria que as medidas fossem tornadas públicas, mas alguém
presente na reunião divulgou a informação.
Esta medida era necessária?
Estabelecidos os factos, vale
a pena ponderar a questão. Será que a medida do Papa era necessária?
Ivereigh, sem grandes
surpresas, argumenta
que sim, dizendo que o Papa até já tinha demonstrado muita paciência com um
cardeal que, contrariamente aos votos que faz quando é elevado ao cargo,
estaria a opor-se ao seu ministério.
O voto a que Ivereigh se
refere é este: “Prometo e juro permanecer, a partir de agora e para sempre
enquanto tiver vida, fiel a Cristo e ao seu Evangelho, constantemente obediente
à Santa Apostólica Igreja Romana. A são Pedro na pessoa do Sumo Pontífice e
aos seus sucessores canonicamente eleitos.”
Segundo Ivereigh, ao propor um
magistério alternativo, questionando e pondo em causa as decisões e medidas de
Francisco, Burke estaria a violar esse voto.
O sistema político britânico
tem um conceito muito engraçado. Quem manda no país é o “Governo de Sua
Majestade” e aos seus adversários, no Parlamento, chama-se “a lealíssima oposição
de Sua Majestade”. Faz falta em todo o lado, e também na Igreja, o conceito de
uma oposição leal, a ideia de que é possível ser leal a alguém, e ao seu cargo,
discordando, todavia, do seu rumo e até dando voz a essa discordância. Discordância
não equivale a traição ou a deslealdade.
Será que isto se aplica
sempre? Evidentemente não. Há dois casos na história deste pontificado que o
ilustram perfeitamente. Um é o Arcebispo Viganò. Quando Viganò começou a criticar
o Papa e o seu magistério, Francisco causou alguma surpresa ao recusar castigá-lo,
aplicar medidas canónicas contra ele, ou sequer responder. Mas o tempo veio a dar-lhe
razão, uma vez que Viganò, deixado a falar sozinho, acabou por se remeter para
o espaço das teorias da conspiração e da loucura total. Mais recentemente
tivemos também o caso do Bispo Joseph Strickland, que é muito claramente um
homem insensato e desequilibrado, que também disparatava contra Francisco, e ainda
por cima, ao que tudo indica, geria pessimamente a sua diocese. Aqui Francisco
agiu – talvez tarde de mais – pedindo ao bispo que apresentasse a sua
resignação, e quando não o fez, retirou-o de funções.
Burke está neste campeonato?
Não acredito. Eu tive o privilégio de estar com o Cardeal Burke uma vez, em
Roma, durante um curso que fiz na Universidade de Santa Croce para jornalistas.
Digo privilégio, porque é sempre um privilégio estar com pessoas simpáticas e
boas e Burke deixou-nos a todos com a impressão de ser uma pessoa boa, muito
simpática e paciente. Isso quer dizer que eu concordo com tudo o que ele diz ou
faz? Longe disso. Acho que ele está muito enganado no que diz respeito ao
pontificado de Francisco, mas acho, e essa é para mim a chave, que ele é movido
de intenções sinceras e que a oposição que faz é uma oposição leal, que talvez
tenha sido insensato numa ou noutra ocasião, sobretudo deixando-se colar ou ser
usado por forças mais radicais, mas sem nunca entrar ele mesmo em maledicência
contra o Papa.
J. D. Flynn, um dos meus editores
no The Pillar, dos EUA, escreveu o seguinte
numa
análise a esta questão: “Embora ele se pronuncie de forma aberta sobre
questões eclesiásticas, como ele as entende, Burke não tem feitio para falar
publicamente sobre uma desfeita pessoal – aliás, estive na sua companhia várias
vezes ao longo dos últimos anos e nunca o ouvi falar mal do Papa pessoalmente,
ou da sua decisão de o retirar das posições de liderança que desempenhava. Na
verdade, já vi Burke ficar visivelmente desconfortável na presença de católicos
que insultavam pessoalmente Francisco, em vez de criticar apenas a sua abordagem
teológica ou estilo de liderança”.
Por tudo isto, acho sinceramente
que o Papa teria feito melhor em não tomar a medida que tomou, ou que se
prepara para tomar. Se a presença de Burke em Roma o deixa desconfortável então
acredito que poderia ter pedido ao cardeal americano para regressar ao seu país,
o que não seria escândalo ou surpresa, uma vez que Burke já fez 75 anos e por
isso está na idade da reforma, e ainda por cima tem família e um santuário do
qual é reitor nos Estados Unidos, portanto teria o que fazer e com quem estar.
É verdade que Burke é fonte de
desunião? Eu diria antes que é verdade que a Igreja está desunida – não há como
o negar – e que Burke é uma das figuras dessa desunião, mas ainda assim é das
figuras com quem se pode dialogar de forma fraternal. Castigá-lo, de uma forma
que facilmente pode ser interpretada – bem ou mal – como vingativa, não só não
resolve a questão da desunião, como a agrava, pois transforma-o em vítima e
permite aos opositores pintar Francisco como um homem vingativo que prega a
misericórdia, mas não a pratica.
Uma questão acessória
Há uma outra questão que aparece
associada a esta: Faz sentido um cardeal sem cargos que exijam a sua presença
permanente na Santa Sé continuar a viver no Vaticano, num apartamento luxuoso
subsidiado e com ordenado de mais de cinco mil euros por mês?
Numa altura em que tanto se
critica o clericalismo, carreirismo e despesas em Roma, penso que a resposta é
evidente. Acredito que seja bom para alguém que está há anos a viver em Roma
poder continuar a fazê-lo depois da reforma, mas do ponto de vista de política
económica do Vaticano não faz sentido nenhum.
Agora, isso aplica-se a Burke
e a tantos outros que estarão nessa posição. Usar este argumento agora, especificamente
para Burke, é mesquinho, até porque não foi essa a razão invocada pelo Papa
para as medidas que tomou.
Se queremos discutir o que fazer
a cardeais reformados, que o façamos, mas não misturemos as coisas, pois
ninguém ganha com isso.