Wednesday, 29 April 2020

Faz Parte do Pacote, não é?

Recentemente estive a ler a Regra de São Bento com os meus alunos e vi com eles o filme “Dos Deuses e dos Homens”, de 2010, sobre o mosteiro trapista de Tibhirine, na Argélia, onde viveram e trabalharam nove monges franceses até 1996, altura em que, em plena Guerra Civil, sete deles foram raptados pelo Grupo Armado Islâmico da Argélia, tendo sido encontrado mais tarde, decapitados.

Não vou explicar agora porque é que junto o filme ao livro, salvo dizer que o filme é uma boa representação da vida beneditina, incluindo os seus desafios e as suas belezas discretas. Ver a regra representada desta forma ajuda a torná-la mais familiar. Em vez de um estilo de vida bizarro, passam a vê-la como uma coisa desejável, que vale a pena escolher.

Uma das questões que o filme coloca, contudo, é se os monges tomaram a decisão certa quando decidiram ficar na Argélia, numa altura em que a violência na sua região aumentava de intensidade e o perigo mortal se tornava mais ameaçador. O filme trata bem o conflito que os monges viviam. Estavam longe de decididos a abraçar o martírio e receber a morte de braços abertos. Numa das reuniões um deles diz abertamente: “Eu não me tornei monge para morrer”.

Perguntei aos meus alunos se os monges foram “imprudentes”, talvez até “insensatos” ao optar por ficar quando sabiam que havia um risco tão grave para as suas vidas. Não é uma situação clara para eles, e depende muito da forma como eu coloco a questão. Todos admiram os monges de Tibhirine. Mas pode-se dizer que a decisão de permanecer foi prudente?

Uma vez que nós pensamos na prudência como “o exercício excessivo da cautela”, em vez de a encarar da forma clássica, como “tomar a decisão moral correcta”, os alunos têm dificuldade em considerar que se tratou de um acto prudente. Heroico, sim. Mas prudente?

Numa turma diferente coloquei a mesma questão sobre se os habitantes da pequena vila de Le Chambon foram prudentes ou insensatos ao esconder literalmente milhares de refugiados judeus durante a Segunda Guerra Mundial, enquanto o exército alemão os caçava para deportar para campos de concentração.

Uma das alunas tinha entrado na sala essa manhã exclamando que adorava Magda Trocmé, a mulher do pastor protestante na vila e uma das líderes desta conspiração de bondade. “Eu quero ser aquela mulher!”

Quando lhe perguntei se os habitantes tinham sido insensatos ao receber os judeus respondeu que sim, “sem dúvida”.

“Mas não acabaste de dizer que querias ser como Magda?”, perguntei.

“Sim”, respondeu.

“Então queres ser como uma mulher insensata?”, insisti.

“Sim”, disse ela, “porque ela era insensata da maneira certa”.

Talvez tenha razão. Talvez os cristãos sejam insensatos. Não vale a pena negá-lo. Mas insensatos “da maneira certa”.

A maioria dos meus alunos da primeira turma têm a certeza de que os monges de Tibhirine tomaram a decisão certa ao permanecer. Talvez seja um caso de ingenuidade juvenil. Uma delas perguntou, talvez com mesma ingenuidade: “Se é monge, e se decidiu entregar a vida a Cristo, o martírio, se acontecer, faz parte do pacote, não é”?

Como é que se responde a isto? Talvez o melhor tivesse sido escrever no quadro e deixar a sala toda contemplar a frase em silêncio durante cinco minutos.

Mas falta-me essa paciência de santo, por isso perguntei: “Não podemos dizer que isso ‘faz parte do pacote’ para qualquer cristão”? Se optou por entregar a vida a Cristo, então o martírio, se acontecer, faz pate do pacote, não é?

Logo, se não estamos dispostos a sacrificar – digamos – o trabalho, o estatuto social, até a própria vida, então não podemos dizer verdadeiramente que entregámos a vida a Cristo, pois não? Seria necessário afirmar de forma mais modesta: “Eu entreguei a Cristo um bocadinho dos meus domingos de manhã”.

E se for de facto esta a nossa atitude, não seria necessário admitirmos que estamos a expressar em relação a Cristo basicamente o mesmo sentimento expresso pelo poeta Billy Collins em relação à sua mãe no poema “O Trapilho”?

Nunca tinha visto ninguém usar um trapilho
ou vestir um, se é assim que se diz.
Mas isso não me impediu de cruzar fio com fio,
outra e outra vez, até que fiz um trapilho encarnado e branco, largo, para a minha mãe.
Ele deu-me vida e leite dos seus seios,
e eu dei-lhe um trapilho.
Ela cuidou de mim através de muitas doenças,
levou colheres de chá de remédio aos meus lábios,
colocou panos frescos sob a minha testa,
depois levou-me para a claridade
e ensinou-me a andar e nadar e eu dei-lhe um trapilho.
“Aqui estão milhares de refeições”, disse ela,
“e aqui tens roupa e uma boa educação”.
E eu respondi: “Aqui está o teu trapilho,
feito com alguma ajuda de um animador”.
“Aqui tens um corpo que respira e um coração que bate,
pernas fortes, ossos e dentes e dois olhos claros para leres o mundo”, segredou ela.
“E aqui”, disse eu, “está um trapilho que fiz no campo de férias”.

Algum dos meus leitores pode estar curioso sobre a resposta que a minha aluna me deu, sobre se devemos esperar que todos os cristãos, e não só monges, façam sacrifícios sérios. “Suponho que sim”, disse ela, hesitante. “Sim. Quer dizer, é, sim. Não é? Tenho de pensar nisso”.

Tu e eu, minha pequena. Já somos dois.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quarta-feira, 8 de Abril de 2020)

© 2020 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Wednesday, 22 April 2020

Respeito pelo Corpo

Pe. Gerald E. Murray
A Páscoa é a revelação da verdade do dom da vida eterna que Deus nos dá: Cristo ressuscitou e a todos os que estão unidos a Ele numa relação viva de amizade nesta vida, será dada a plenitude dessa união na vida no Céu.

Este dom da vida eterna é dada à pessoa como um todo, corpo e alma. Quem for salvo viverá para sempre com Deus até à segunda vinda de Cristo para julgar os vivos e os mortos. As almas daqueles que morreram na graça de Deus aguardam no Céu ou no Purgatório a ressurreição dos seus corpos. As almas dos condenados também aguardam a ressurreição dos seus corpos, mas no Inferno.

Quando Cristo regressar, os corpos de todos os homens, mulheres e crianças que alguma vez viveram serão reunidos às suas almas. Os justos manter-se-ão eternamente unidos a Deus, em corpo e alma, no Céu e os condenados serão eternamente separados, corpo e alma, de Deus, no Inferno.

A doutrina da ressurreição dos corpos no dia do Juízo Final raramente é compreendida ou apreciada pelos crentes. Concentramo-nos sobretudo naquilo que acontece à alma quando morremos. Rezamos pelas almas dos fiéis defuntos, “que descansem em paz”, mas bem poderíamos acrescentar “e que ressuscitem em glória dos seus sepulcros”.

Talvez tenham visto as imagens dos restos mortais das vítimas do coronavírus aqui em Nova Iorque a serem sepultados em massa em Potters Field, na Ilha de Hart, ao largo do Bronx. As filas de caixões, enterrados juntos numa longa vala, são uma imagem marcante de morte, mas também de esperança.

Tratamos dos corpos daqueles que não são reivindicados por ninguém com dignidade e respeito. Esta é uma manifestação social da herança judaico-cristã que trata com reverência os restos mortais da mais alta criação de Deus sobre a terra. O homem, feito do pó da terra, é devolvido à mesma terra no final da sua peregrinação terrena. O seu corpo tornar-se-á pó novamente, mas Cristo ensinou-nos que esta não é a palavra final. Esses corpos são dele, por Ele aguardam, e devem ser sepultados num lugar condigno.

A visão inerente à prática de sepultar os mortos era, até há poucos anos, universalmente apreciada e aceite pelos católicos, reforçada pelo requisito eclesial de sepultar os batizados em terra consagrada, sempre que possível, e pela proibição da cremação, uma prática estranha à fé cristã.

É providencial, por isso, que o livro mais recente de Scott Hahn, “Hope to Die: The ChristianMeaning of Death and the Ressurrection of the Body”, escrito em coautoria com Emily Stimpson Chapman, tenha aparecido durante esta pandemia de coronavírus. Hahn escreve de forma eloquente sobre a realidade da morte e a natureza da vida celeste, e como teremos a bênção de aprender o sentido de tudo quando, e se, atingirmos a Visão Beatífica.

Mas não se trata apenas de uma experiência “espiritual”. “Deus ressuscitará os mortos – não apenas espiritualmente, mas fisicamente. Afinal de contas, se a ressurreição fosse apenas espiritual, então seria indiferente o que fazemos aos corpos depois da morte. Mas havendo uma ressurreição física, os corpos interessam. O que acontece aos corpos interessa. Como sepultamos os corpos interessa”.

Scott Hahn
Durante os meus 35 anos de sacerdócio assisti à rápida disseminação da cremação entre os católicos. Sempre foi uma coisa que me preocupou, mas aceito que São Paulo VI autorizou a prática, anteriormente proibida, em 1963. Como escreve Hahn: “Para a maioria dos cristãos, durante quase dois milénios, era impensável que se optasse por destruir totalmente corpos destinados à glória e já tocados pela graça… Desde os primeiros tempos, os cristãos sepultavam os seus mortos, como Cristo havia sido sepultado”.

O Cristianismo desenvolveu uma cultura em que se visitam as campas dos mortos e os ossos dos santos são venerados como relíquias. Deus, que fez os nossos corpos, nunca nos mandou queimar os restos mortais dos falecidos. Ao enterrar os mortos na terra estamos a confiar o seu corpo a Deus, tal como confiamos a sua alma, que temporariamente o abandonou.

Hahn recorda-nos de uma coisa que muitos tendem a esquecer, ou nunca souberam. “A Igreja não aprova a cremação; permite-a. Não permite que se espalhem as cinzas ou que sejam guardadas em casa; proíbe-o. Considera que a sepultura é a forma mais digna de cuidar dos corpos dos mortos até que regressam no dia do Juízo Final e encoraja-nos a seguir essa recomendação.”

Porquê esta renitência em relação à cremação? Hahn analisa o significado da cremação, por oposição ao enterro, independentemente das intenções subjetivas de quem a pede: “A cremação diz coisas sobre o corpo que são diretamente contrárias ao que a Igreja professa. Ensina que o corpo é descartável. Ensina que o corpo não é uma parte integral da pessoa e ensina que o corpo não tem valor depois de a alma partir, que já deu tudo o que tinha a dar e que mais nada lhe espera. Nem ressurreição, nem transformação nem glorificação”.

Claro que a maioria dos católicos que manda cremar os seus familiares não o faz por negar a ressurreição do corpo no Juízo Final. Mas a forma como tratamos os nossos mortos devia refletir a nossa esperança na ressurreição da carne. É evidente que Deus também ressuscitará as cinzas daqueles que foram cremados, unindo-as às suas almas. Não podemos mudar ou frustrar os planos de Deus para a humanidade. Mas temos de perguntar porque haveríamos de obliterar pelo fogo os corpos de mortos que foram santificados no baptismo?

A cremação é, na sua essência, um costume pagão. Os cristãos devem evitá-la e honrar a Deus, honrando, através de um enterro reverente, os restos mortais dos filhos de Deus que partiram antes de nós, na expectativa daquele grande reencontro da humanidade, corpos e almas unidos de novo, no Juízo Final.


O padre Gerald E. Murray, J.C.D. é pastor da Holy Family Church, em Nova Iorque, e especializado em direito canónico.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no Domingo, 19 de Abril de 2020)

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Wednesday, 15 April 2020

Ao Terceiro Dia: uma Fantasia

Brad Miner
Quando o escriba informou Pôncio Pilatos de que Tito queria falar com ele, percebeu que algo estava mal. O prefeito da Judeia tinha enviado Tito, o seu melhor oficial, fazer o que seria sem dúvida a tarefa mais simples de toda a carreira de um dos melhores soldados de Roma. Porque é que tinha voltado cedo?

Tito era um homem velho – pelos padrões da Legião – mas ainda assim era duas vezes melhor guerreiro do que homens com metade da sua idade, e o mais fiável de todos.

Mas aqui estava ele, depois de ter abandonado o seu posto. Porquê?

Tito entrou na sala, batendo com o punho direito contra o peito: “Prefeito!”

Pilatos olhou de trás de uma secretária cheia de despachos. Fixou os olhos do militar e franziu. Depois olhou de volta para os seus papeis e perguntou:

“Porque é que está aqui, sargento?”

Tito sabia que o prefeito estava mais irritado do que zangado. Por enquanto.

“Prefeito, o sepulcro abriu-se e o homem, Jesus, desapareceu.”

O escriba estava à direita de Pilatos. Tinha estado a escrevinhar as mensagens que o prefeito ditava. À entrada do quarto – por onde Tito acabara de entrar – estavam dois guardas em sentido.

Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. Os seus olhos cruzaram-se com os do escriba.

“Saia”, disse Pilatos, acenando também aos guardas para o seguir. Fecharam a porta atrás deles.

De repente Pilatos sentiu-se muito cansado. Levantou-se e deu a volta à secretária, encostando-se a ela, e cruzou os braços.

 “Explica-te”

Tito olhou em frente e, como sempre, contou a verdade.

“Prefeito, deu-se uma explosão silenciosa. Só consigo descrever como se fosse uma rajada a abrir uma porta. Não ouvimos nada, mas sentimos o ar projectado, que nos lançou por terra. Tapei os olhos com as mãos mas… Havia uma luz brilhante toda a volta. Cerrei os olhos e obriguei-me a olhar para cima, no meio da luz estava a figura de um homem. A luz vinha dele. Depois houve outra rajada, ou explosão, e a luz desapareceu. Só se via a luz da aurora, como antes. E silêncio prefeito: nem passarinhos, nem grilos, mas ouvia a minha própria respiração e a dos meus homens. O homem tinha desaparecido. Levantei-me e vi que a pedra já não cobria a entrada do sepulcro. Então entrei e vi a coisa mais estranha –”

Pilatos quase que se riu. O que é que poderia ser mais estranho do que Tito já tinha dito?

“ – lá dentro”, disse Tito, “onde o corpo tinha repousado, vi a mortalha cuidadosamente dobrada e colocada de lado”.

Pilatos reparou que enquanto falava, a voz de Tito não tinha aquela calma clínica que costumava ter quando fazia os seus relatórios em Cesareia ou em Jerusalém. Era porque o velho – já tinha cinquenta anos – já tinha estado em todo o lado e lutado contra todos e visto tudo que Pilatos o tinha trazido com ele para a Judeia. Se alguém podia ajudar a lidar com os israelitas, raciocinou Pilatos, era Tito.

“E quem é que dirias que era o homem na luz?”

“Jesús de Nazaré.”

Pôncio Pilates
Pilatos sabia que o Galileu tinha dito que isto iria acontecer. Era por isso que os sacerdotes do Templo tinham pedinchado um destacamento de soldados romanos para guardar o sepulcro. Na altura tinha estado demasiado cansado para insistir, como deveria ter feito, que esse era um assunto deles e não do Pretório. Gostaria de ter dito: Eu matei um inocente por vocês; tratem vocês de guardar o seu sepulcro. Mas tinha parecido mais fácil aceder. E então enviou o seu melhor homem para supervisionar os turnos durante os três dias.

Partiu do princípio que isso seria o fim da história, porque homens crucificados não se levantam e põem-se a andar.

Por isso é que era tão perturbador ouvir uma testemunha de confiança dizer que Jesus – um homem como qualquer outro, que tinha, na verdade, sangrado e sofrido e morrido como qualquer outro – estava de novo vivo.

“Então a crucifixão falhou.”

“Não, Prefeito.”

“Então tu e os teus homens embebedaram-se e adormeceram em serviço –”

“– Prefeito, não! Eu tinha acabado de regressar com o turno da manhã. Estávamos todos acordadíssimos!”

Se fosse qualquer outro a dizê-lo, que não Tito, Pilatos tê-lo-ia mandado prender imediatamente. Olharam um para o outro.

“Os teus homens estão por perto?

“Lá fora.”

Pilatos olhou-o diretamente nos olhos. É tudo verdade, pensou. Agora o que é que dizemos aos anciãos do Templo?

Para a surpresa de Tito, o prefeito ordenou-o a ir imediatamente ao Templo para dar conta da situação aos sacerdotes: “Exatamente como me contaste a mim, mas sem dizer que estiveste aqui primeiro”, disse.

Então Tito saiu e levou os seus homens. Ficou admirado quando eles lhes deram dinheiro para se manterem calados sobre o que tinham visto. Muito dinheiro, prata suficiente para comprar o silêncio de uma dúzia de homens.

“Digam”, disse o Sumo Sacerdote, “que os seus discípulos vieram durante a noite e roubaram o seu corpo enquanto vocês dormiam”.

Perante o olhar zangado dos soldados romanos (que sabiam bem o castigo que enfrentariam por tamanha negligência), os sacerdotes acrescentaram logo:

“Se isto chegar ao governador nós damos-lhe uma explicação que vos livre de problemas.”

Tito queria rir-se na cara dele, mas pegou nas moedas e dividiu-as igualmente entre os soldados satisfeitos. Não ficou com nada para ele.

O Prefeito da Judeia sorriu quando ouviu as novidades.

“Então eles também acreditam?”

Tito respondeu: “Talvez partam do princípio que nós retirámos o corpo… ou simplesmente queiram acabar com um boato.”

“Era escusado. Em breve tudo isto será esquecido”, disse Pilatos.

Tito saiu pelas portas altas. Não sabia em que é que o Prefeito acreditava verdadeiramente, mas sabia que ele, certamente, nunca se iria esquecer.


(Publicado pela primeira vez na segunda-feira, 15 de Abril de 2020 em The Catholic Thing)

Brad Miner é editor chefe de The Catholic Thing, investigador sénior da Faith & Reason Institute e faz parte da administração da Ajuda à Igreja que Sofre, nos Estados Unidos. É autor de seis livros e antigo editor literário do National Review.

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Wednesday, 8 April 2020

A Pulga de Justiniano - Redux

Francis X. Maier
Algures no início do Século VI em África, uma bactéria que causava uma doença ligeira encontrou um hóspede novo e promissor: uma pulga. Através dessa pulga, e muitas outras, a bactéria sofre mutações até se tornar algo muito diferente. Migrando pelo Rio Nilo acima através de ratazanas, chegou aos celeiros de Alexandria. Depois, através de navios, atravessou para os mercados de Constantinopla, no ano 542.

No espaço de cinco meses, matou metade da população da capital do Império Bizantino. A praga descarrilou os esforços do Imperador Justiniano de restaurar o Império Romano do Ocidente. Paralisou os impérios bizantino e persa durante gerações e deixou-os maduros para a expansão islâmica no ano seguinte. Para todos os efeitos, pôs fim à Era da Antiguidade.

Pelo menos é essa a teoria de William Rosen no seu entusiasmante livro de 2007, sobre a primeira grande pandemia da Europa, “A Pulga de Justiniano”. O mesmo tema – o poder da doença para promover as mudanças civilizacionais – foi retomado no passado fim-de-semana (28 e 29 de Março), pelo historiador Frank Snowden, de Yale, num artigo do Wall Street Journal. Snowden concentrou-se sobretudo nos surtos da Peste Negra na Europa medieval e do renascimento. Cada uma destas pandemias ocorreu em culturas cristãs. Os que sobreviveram ficaram impressionados com a ideia de que podiam morrer a qualquer momento, sem aviso, por isso deviam preocupar-se com a alma imortal.

Isto conduziu à prática generalizada do “arrependimento, a autodisciplina e a oração”. A Igreja foi muito solicitada. Morreram incontáveis membros do clero, na assistência aos doentes. Estas perdas, por sua vez, moldariam o carácter e o rumo das igrejas por várias décadas.

A actual situação com o coronavírus é ao mesmo tempo diferente e semelhante às pandemias do passado. É diferente na taxa de mortalidade. A covid-19 é um assunto sério, muito perigoso para certas idades e grupos de risco, e muito contagioso. Mas a grande maioria das pessoas que ficarem infetadas vão recuperar. Isto deve-se também à capacidade das autoridades sanitárias para compreender e responder à crise.

Ao mesmo tempo, a crise é semelhante na medida em que lança uma sombra de mortalidade sobre culturas que se habituaram a décadas de autoconfiança, distrações e riqueza. Toda a gente sabe que um dia vai morrer, mas tornámo-nos especialistas em evitar pensar no assunto. Para as nações ricas e para as suas elites a festa acabou. Pelo menos por agora. 

Uma das coisas que torna esta crise diferente é a resposta das pessoas, em termos religiosos. No Irão, e noutros países muçulmanos, multidões forçaram a entrada nas mesquitas fechadas para poderem rezar. Em contraste, no Ocidente muitos cristãos expressaram a sua frustração com o encerramento das igrejas, mas na maioria aceitaram a prudência da decisão.

Hoje é fácil acompanhar a missa dominical online. O mesmo se aplica a retiros, reflecções e cursos católicos que preenchem o vazio deixado pelo culto. Muitos padres estão a ouvir confissões em ambientes cuidadosamente higienizados e regulados. A adoração eucarística, com distanciamento social apropriado, está a realizar-se durante várias horas por dia, todos os dias.

Mas o sentido de uma cultura cristã partilhada, com um vocabulário que dá sentido ao sofrimento, perdeu-se – e com ele a viragem comum para o “arrependimento, autocrítica e oração”. Enquanto nação desviámos os olhos durante décadas enquanto outros apagavam Deus do nosso vocabulário, do nosso pensamento e das instituições que sustentam a nossa vida pública. Agora que precisamos dele as pessoas já não têm as palavras nem a memória para o encontrar.

A lição mais comovente para os fiéis, durante esta crise, pode ser o sentido de perda e de depressão por que passam muitos dos nossos padres. O meu pároco ressuscitou uma comunidade moribunda no espaço de três anos. Deu-lhe novamente um sentido. A participação na missa voltou a ser uma alegria.

E ele é dos que têm sorte. Vem de uma família grande, com muitos parentes, não está, por isso, sozinho; mas alguns dos seus colegas não têm nada para além de uma casa paroquial vazia. Ainda assim, grande parte da sua vida enquanto pastor de uma comunidade viva está suspensa há semanas.

A escola paroquial está fechada. Os donativos que sustentavam a vida paroquial, e que tinham melhorado substancialmente, diminuíram, porque ninguém está nas igrejas. E alguns dos mais tímidos não voltarão quando a Igreja reabrir. Já estavam hesitantes, não os voltaremos a ver.

A “mudança civilizacional” provocada pelo coronavírus pode ser menos drástica que as pandemias do passado. Mas para os cristãos ocidentais clarifica as lealdades de forma dolorosa.

Pouco antes de morrer, o grande romancista católico francês Georges Bernanos escreveu que enquanto a fé e o amor cristãos “não desaparecerem do mundo, enquanto o mundo tiver a sua dose de santos, certas verdades podem ser esquecidas. Agora [essas verdades] estão a reemergir, como rochas na maré vazia. São a santidade e os santos que mantêm a vida interior sem a qual a humanidade se deve rebaixar ao ponto de extinção”.

A doença que nos cerca este ano, enquanto nos preparamos para a Semana Santa, é para nós um espelho das nossas verdadeiras preocupações e desejos. É uma oportunidade para rezar por todos os que sofrem com este vírus; de recordar e rezar pelos nossos padres; de nos apoiarmos como pudermos; e de valorizar o tempo precioso que temos com as pessoas de quem gostamos. E é ainda um convite a examinar a infecção de mundanidade que alastra nos nossos corações.

A vida, como somos agora forçados a recordar, é frágil. Ninguém nos pode obrigar a oferecer-nos sincera e totalmente a Deus, mas se alguma vez houve um tempo para o fazer, é agora.


Francis X. Maier é conselheiro e assistente especial do arcebispo Charles Chaput há 23 anos. Antes serviu como Chefe de Redação do National Catholic Register, entre 1978-93 e secretário para as comunidades da Arquidiocese de Denver entre 1993-96.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Quarta-feira, 1 de abril de 2020)

© 2020 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte:info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com oconsentimento de The Catholic Thing.

Wednesday, 1 April 2020

Falsas alegações de abuso são raras mas acontecem

Stephen P. White
As falsas alegações de abusos sexuais por parte do clero são relativamente raras, mas acontecem. O relatório John Jay, de 2004, por exemplo, incluiu uma revisão de 10.667 alegações de abusos por padres ou diáconos. Destes, mais de metade (5.681) conduziram a investigações por parte da diocese ou da ordem religiosa que levaram a “resultados definitivos”. Destes “resultados definitivos” apenas 83 alegações foram consideradas falsas, ou seja, cerca de 1,5%.

Este número – 83 alegações consideradas falsas – não inclui 298 padres e diáconos que tinham sido “totalmente ilibados” na altura em que a investigação foi feita.

Mais, das 5.681 alegações que levaram a resultados definitivos, o resultado de 1.028 dos casos era de que a alegação carecia de fundamentação. Isto é, um em cada cinco dos casos investigados (19,6%) foi considerado conclusivamente falso (1,5%) ou então não pôde ser fundamentado (18,1%).

Vale a pena fazer umas ressalvas. Estas estatísticas, e tudo o que se segue, não pretendem de forma alguma menorizar os crimes e os pecados dos padres que cometeram abusos, nem elevar os sofrimentos dos padres acusados acima daqueles suportados pelas vítimas dos abusos. E isto não altera o facto de que a vasta maioria das alegações de abusos são reais, ou que o número de casos de abuso reportados é muito inferior ao real. E não se pretende, de todo, sugerir que só porque uma alegação não pode ser fundamentada, isso significa que não aconteceu.

As falsas alegações são raras, mas há centenas de padres nos Estados Unidos que foram falsamente acusados de abusos sexuais, e provavelmente milhares contra quem foram feitas acusações sem fundamento. Alguns destes homens já morreram. Alguns nunca tiveram a oportunidade de responder perante as alegações feitas contra eles.

Todas estas estatísticas dizem respeito a casos que datam de antes da Carta de Dallas, de 2002. Desde a Carta o processo para lidar com alegações de abusos uniformizou-se através das dioceses. Mas a única coisa que há em comum entre os critérios necessários para suspender um padre do ministério – por uma alegação “credível” – é que são manifestamente baixos. Na minha diocese de Arlington, por exemplo, basta que uma alegação seja “crível e plausível” para ser considerada credível e o suspeito ser imediatamente suspenso do ministério. É uma fasquia baixíssima.

Tendo em conta a relativa baixa frequência de acusações falsas, e dado o historial da Igreja de reagir de forma demasiado branda a alegações sérias, uma fasquia baixa para a suspensão temporária deve ser apropriada. A ação rápida é aplaudida quando os acusados acabam por ser considerados culpados. Em casos como o do ex-cardeal McCarrick, em que circulavam boatos nos meios clericais durante tantos anos, muitos perguntam porque é que não foram tomadas medidas mais depressa. (E onde está o relatório do Vaticano, passados quase dois anos?)

Uma das realidades que passa despercebida no meio desta crise dos abusos é que uma porção significativa dos padres que são acusados são ou manifestamente culpados, ou comprovadamente inocentes. E isto levanta um problema difícil tanto para padres como para bispos.

A Carta de Dallas – de acordo com a lei canónica – é cuidadosa no que diz respeito aos direitos dos acusados, incluindo o direito à reputação:

Um padre ou um diácono que seja acusado de abuso sexual de menor deve beneficiar da presunção de inocência durante a investigação da alegação, e devem ser adoptadas todas as medidas apropriadas para proteger a sua reputação. Deve ser encorajado a pedir a assistência de um advogado civil e canónico. Se a alegação for tida como não fundamentada, todas as medidas devem ser tomadas para restaurar o seu bom nome, caso este tenha sido posto em causa.

O peso da mitra... 
Manter a presunção da inocência e proteger a reputação do acusado são coisas extremamente difíceis, especialmente numa altura em que as dioceses e as ordens religiosas estão a publicar os nomes dos homens que foram acusados.

Num tribunal a culpa tem de ser provada para lá de qualquer dúvida razoável. Hoje, no tribunal da opinião pública, a presunção de inocência para padres acusados é cada vez mais letra morta. O ónus da prova está do lado do acusado, se não conseguir provar a sua inocência, a mancha da acusação permanece. (Este é precisamente o argumento que está a ser feito pela defesa no caso do cardeal George Pell, que tem um último recurso pendente na Austrália: ele foi condenado não porque havia certezas sobre a sua culpa, mas porque não conseguiu provar a sua inocência.)

Os casos mais bicudos talvez sejam os verdadeiramente ambíguos. O que acontece a um padre que, tendo sido “credivelmente acusado” é absolvido? Ou a um padre que foi credivelmente acusado mas que, por uma razão ou outra, não pode ser julgado? O que é que acontece quando o bispo tem de decidir – sem contar com a sentença de um tribunal – sobre um dos seus próprios padres? Devolve-o ao ministério? Mantem-no para sempre num limbo pastoral?

Qual é o bispo que quer devolver um padre que foi credivelmente acusado ao ministério sem outra justificação do que o princípio da inocência até prova em contrário? É um risco enorme para o bispo, para o padre, para a diocese e, potencialmente, para as vítimas.

Estas não são questões simpáticas para considerar, sobretudo numa era de suspeita e desconfiança. A forma como pensamos nelas tem tudo a ver com o facto de conhecermos alguém que foi abusado, ou de conhecermos um padre que abusou, ou até um padre que tenha sido falsamente acusado.

Os protocolos para lidar com alegações de abusos são importantes. Os procedimentos jurídicos e a transparência são críticos para garantir justiça tanto para as vítimas de abusos como para os padres acusados. Mas não podemos esquecer que não há protocolo ou processo que elimine completamente as decisões difíceis e de consequência. As mais duras dessas decisões acabam quase sempre por cair sobre os ombros dos nossos bispos, incluindo o bispo de Roma. Aí, nada substitui o juízo, a sabedoria e a prudência.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Quinta-feira, 26 de Março de 2020)

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