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Elizabeth A. Mitchell |
No conto macabro de Edgar Allen Poe “A Máscara da Morte Vermelha”, o
Príncipe Próspero toma uma decisão surpreendente quando o seu reino é ameaçado
por uma praga mortal. Ele tem poder absoluto e, por isso, encerra o seu
palácio, fecha os portões e não deixa ninguém entrar nem sair, isolando-se da
morte. Simples. Próspero e os seus cortesãos podem divertir-se em segurança, a
Morte não consegue entrar.
Até que entra. A morte chega, qual convidado indesejado nas soirées
exclusivas do Príncipe, e todos os foliões, incluindo o próprio Príncipe,
perdem a vida, sem se poderem proteger deste intruso.
E nós, com os nossos confinamentos modernos, com os nossos edifícios
isolados e listas de pessoas “essenciais” não somos muito diferentes do
Príncipe e das suas tolices. Pior, porque ao tentar manter a Morte fora da nossa
sociedade, também fechámos as portas à Vida.
Eu tenho o privilégio de poder aceder a um lar perto de onde vivo. É uma
instituição bem gerida e sobreviveu a esta crise sem qualquer surto
significativo. Um triunfo para os idosos e uma alegria para todos os
residentes. Mas como ninguém pode entrar e ninguém pode sair – nem o carteiro,
nem amigos e familiares, nem mesmo o padre – também Cristo foi vedado.
Cristo costumava ser recebido todas as semanas e os residentes católicos
apreciavam poder ir juntos à missa. Mas durante o confinamento, que foi mais
severo nos lares do que em qualquer outra parte do país, o padre já não pôde
entrar. Os residentes estavam ainda impedidos de se juntar em pequenos grupos
para rezar. Aceitaram a sua nova realidade: Missa só na televisão, sozinhos,
nos seus quartos.
Passaram-se meses. A Páscoa chegou e partiu e veio o calor do verão. Passou
a primavera, e o Natal, sem visitas de familiares, e os residentes revelaram
uma resiliência e uma força de vontade invulgares. Muitos viveram os tempos da
Segunda Guerra Mundial, a vacina da poliomielite e outros desafios. Isto,
concluíram, era difícil, mas viável.
Depois veio a Semana Santa e algo mudou. Residente após residente comentou
o quanto sentia a falta da Eucaristia. Muitos destes católicos da vida inteira,
habituados à missa diária, não recebiam a Eucaristia há mais de um ano. Nem uma
vez. E não havia esperança de o fazer.
Foi então que se tornou evidente que, uma vez que eu podia entrar no
edifício, Cristo poderia usar-me para aceder. Não duvido que Ele queria vir.
Ele via estas almas amadas e ansiava poder estar com elas.
A aprovação pelo nosso diretor-geral – quase um milagre em si mesmo –
combinada com a confiança do pároco, levou à determinação de uma data para eu
poder levar a Eucaristia aos residentes. À tarde de Sexta-feira Santa. Sexta-feira
Santa? O único dia no mundo em que a Missa não é celebrada, em que Cristo está
no sepulcro e o mundo aguarda a Ressurreição em silêncio e solidão.
Quantas hóstias quer? Perguntou o pároco. Vinte e cinco, respondi, pensando
que chegaria. Mas algo dentro de mim dizia-me que seriam precisas mais, que
devia pedir quarenta. Devia ter ouvido.
Cristo e eu chegámos pontualmente às 13h e fomos diretamente para a Sala
das Actividades. Tinha sido colocado um aviso apressado no elevador a dizer que
os católicos que quisessem receber a Santa Comunhão podiam juntar-se para a
distribuição.
Entrei na sala e vi fé, fé pura, e devoção. Homens de fato, mulheres com colares
de pérolas e as suas melhores roupas, todos cientes da presença de Cristo.
Coloquei a píxide na mesa e começámos a rezar. Enquanto passava de residente
para residente, proclamando: “O Corpo de Cristo”, ouvia a resposta habitual:
“Amen”, seguida de “Obrigado!”
Durante a Acção de Graças uma senhora na fila da frente inclinou-se para
mim sobre a sua bengala e repetiu: “obrigado, obrigado, obrigado por nos trazer
Cristo”.
O Senhor não se esqueceu daqueles indivíduos que nem conseguiam descer até
à sala de um edifício confinado numa Sexta-Feira Santa tranquila para O
receber. Ele viu-os, os mais isolados, sozinhos nos seus quartos, e foi ao seu
encontro. Todos eles. Pelo nome.
Tinham-me dado uma lista de todos os católicos registados quando cheguei:
quarenta nomes. Comecei a partir as hóstias em dois, dado o número de almas que
desejavam Cristo, enquanto caminhava pelos corredores, batendo nas portas que
me tinham sido indicadas, perguntando alto: “Gostaria de receber a Eucaristia?”
A resposta? Suspiros. Lágrimas. Alegria. “Agora? Posso receber a Eucaristia
agora?”, perguntavam estupefactos.
Um homem caiu de joelhos à entrada do seu quarto quando me abriu a porta
para receber a Eucaristia ali, na ombreira. “Senhor, eu não sou digno”.
Outro, que estava sentado sozinho no sofá a ver a bola, sentou-se direito,
surpreendido e expectante, e rezámos juntos. “Senhor, que entreis na minha
morada”.
Um casal estava sentado junto na sala de estar do seu apartamento. O marido
precisou de ajuda para levar a Eucaristia até à boca, porque tinha as mãos
paralisadas.
Alguns dos que estavam na lista já não estavam vivos, tinham sido chamados
de volta ao Senhor durante o ano que passou.
Outros foram hospitalizados entretanto, por questões de saúde inesperadas. A
sua Eucaristia de Sexta-feira Santa acabou por ser um viático. Não sabemos a
hora.
Repeti a cada residente: “Cristo sabia que estava aqui. Ele vê-o. Ele queria
vir. Arranjou maneira”.
Uma das mulheres limitou-se a chorar, inclinando-se sobre a sua bengala à
entrada do quarto. “Obrigado”, murmurou, “não recebia a comunhão há mais de um
ano”. Corriam-lhe lágrimas de gratidão pela cara.
Cristo vê-nos. Ele encontra-nos. “Ele nunca vos falhará ou abandonará”
(Deuteronómio 31,6). Não há muro no mundo que o consiga excluir. Nenhum poder
do Inferno pode superar a sua força. Nenhuma pandemia nos pode separar, se
estivermos dispostos a recebê-lo.
Não sabemos nem o dia, nem a hora, mas a sua vinda é certa. A sua Vida
triunfa sobre a Morte, porque a vitória já lhe pertence.
(Publicado pela primeira vez no Domingo, 2 de Maio de 2021
em The Catholic Thing)
Elizabeth A. Mitchell, é doutorada em Comunicação Social
Institucional pela Universidade Pontifícia da Santa Cruz, em Roma, Itália, onde
trabalhou como tradutora para a Sala de Imprensa da Santa Sé e para o
L’Osservatore Romano. É decana dos alunos na Trinity Academy, um colégio
católico privado no Wisconson. A sua tese “Artist and Image: Artistic
Creativity and Personal Formation in the Thought of Edith Stein,” trata o papel
da beleza na evangelização pela perspetiva de santa Edith Stein. Mitchell faz
ainda parte da direção do Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe em La Crosse,
Wisconsin, e é conselheira do Centro Internacional St. Gianna e Pietro Molla
para a Família e para a Vida.
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