Thursday, 27 August 2015

Como é que a História nos vai Julgar?

Pe. Mark A. Pilon
Passo a apresentar um pouco de história revisionista, claramente inventada, mas que vale a pena contemplar nos dias que correm.

Suponhamos que do início da década de 30 até 1945 a Alemanha tinha-se mantido uma democracia, em vez de se transformar numa ditadura de partido único, como foi com o Terceiro Reich. Suponhamos ainda que muitos representantes democraticamente eleitos de partidos liberais e conservadores tinham juntado forças com os Nazis de Hitler no que diz respeito às políticas antissemitas. Por fim, imaginemos que mesmo alguns deputados católicos da oposição tinham votado em conjunto com o Partido Nazi para levar a cabo a chamada “solução final” para a questão judaica e que tinham apoiado publicamente a sua implementação. Suponha, por agora, que tudo isto eram factos históricos.

Vamos então um bocado mais longe. Imagine que os bispos alemães não tinham tomado qualquer acção disciplinar contra esses políticos católicos, seja de que partido fossem, quer excomungando-os, quer negando-lhes os sacramentos. (Sabendo hoje que estas medidas já foram aplicadas pelos bispos alemães nos nossos dias apenas por não se pagar o chamado imposto da Igreja ou para com católicos que não se registam como tal com o Governo). Mas imaginemos que naqueles dias negros não se tinha feito nada do género e imaginemos ainda que as sondagens mostravam cada vez mais católicos alemães confusos sobre estas questões moralmente graves ou decididamente a favor das medidas racistas e genocidas.

Como é que acha que um historiador julgaria esses bispos e esses líderes religiosos? Alguém acreditaria que os bispos alemães tinham desempenhado fielmente o seu papel de proteger a fé dos seus rebanhos – incluindo dos políticos católicos – sem pressionar os católicos no parlamento para defender as vítimas inocentes, fazendo tudo o que estivesse ao seu alcance para impedir as atrocidades do Governo? Será que a Igreja local teria, mais tarde, que se arrepender e pedir perdão, mais até do que os papas têm feito nos últimos anos em reconhecimento de erros do passado?

Talvez se considerasse que os leigos católicos tinham sido apanhados pelos tempos e pela mentalidade tão sagazmente difundida pela máquina de propaganda Nazi. E poderia ser considerada uma atenuante o facto de terem ficado naturalmente confusos com o facto de verem os políticos católicos a evitar serem disciplinados pelos líderes eclesiais e a receber publicamente a comunhão e outros sacramentos, enquanto se continuavam a apelidar de católicos fiéis e alinhados com a Igreja.

Mas voltemos à nossa realidade e ao nosso mundo actual. Durante os últimos 50 anos os leigos católicos na América ouviram os seus bispos a condenar muito claramente o crime monstruoso do aborto. Mas ao mesmo tempo têm visto políticos católicos a apoiar abertamente o chamado direito ao aborto e a combater as medidas para o restringir – com alguns até a defender os horrores da Planned Parenthood, sobre a qual vários bispos já falaram, mas pouco mais. Entretanto estes políticos continuam a apelidar-se de católicos e a receber a comunhão publicamente, por vezes das mãos dos próprios bispos.  

Ao longo deste tempo mais de 55 milhões de seres humanos foram chacinados, o que supera até as terríveis monstruosidades do Terceiro Reich. Entretanto, mais de metade da população católica deste país passou a apoiar o direito ao aborto. Devemos acreditar que não existe ligação entre este distanciamento em massa da verdade e prática moral do Catolicismo e a recusa dos bispos em disciplinar os políticos católicos?

Na verdade, a maioria dos políticos pró-aborto, católicos ou não católicos, são vistos frequentemente a receber homenagens de instituições católicas. Universidades que se dizem católicas contratam professores que divergem publicamente do ensinamento moral católico e, mais uma vez, os leigos não vêem qualquer acção disciplinar. Não surpreende, por isso, que exista muita confusão, sobretudo entre jovens, acerca do ensinamento católico relativo ao aborto e ao casamento. Será que os bispos vão assumir a responsabilidade por esta perda de fé católica em questões tais como o aborto, o casamento, a eutanásia e outros temas morais que se deve à ausência de censura pública de políticos católicos ou de instituições cujos funcionários apoiam estes desvaneios morais?

Como é que a história vai julgar esta geração de líderes da Igreja quando a carnificina chegar finalmente ao fim? Como é que as gerações futuras de católicos julgarão os líderes espirituais desta geração se olharem para trás e virem que nenhum político católico foi alguma vez disciplinado por apoiar e votar favoravelmente não só o aborto como a perversão do casamento? Os mesmos políticos católicos que apoiaram o direito a acabar com vidas humanas inocentes estão agora a apoiar o direito ao casamento homossexual e até a pedir à Igreja que mude os seus ensinamentos. A seguir virá, sem dúvida, a eutanásia, disfarçada de misericórdia.

Até parece que a democracia se tornou um absoluto que supera tudo. Se o aborto é imposto democraticamente, ou legalizado por juízes que trabalham num enquadramento democrático, então os líderes da Igreja ficam como que paralisados quando toca a disciplinar os seus próprios fiéis políticos ou juízes. Se agem no contexto de uma democracia, têm carta branca, é isso? Não podemos dar a ideia de estar a minar a democracia disciplinando sequer católicos que votam pelo direito a matar os inocentes?

Um abortista católico está automaticamente excomungado, mas com o político católico que vota de forma a permitir que o abortista possa exercer o seu trabalho, não se passa nada? Se o juiz [do Supremo Tribunal] Anthony Kennedy atropelar o ensinamento católico com uma decisão bizarra no caso Obergefell [que legalizou o casamento homossexual nos EUA], com ele também não se passa nada. Os políticos e os juízes católicos não podem ser beliscados pela disciplina católica, porque agem a coberto da democracia e da separação entre a Igreja e o Estado e tudo isso. Por isso o juiz Kennedy continua a ser tratado como homem honrado e – mais ainda – pode continuar a afirmar-se um bom católico sem demais consequências.

Questiono-me se um futuro Papa terá de pedir perdão por toda esta hesitação da parte dos bispos de exercer a sua liderança através da disciplina pública, e não só por palavras, mas cobrindo-se de saco e sentando-se em cinzas, penitenciando-se pela fraca resposta dos líderes da Igreja enquanto dezenas de milhões de novos e velhos pagavam o preço dessa inacção com as suas próprias vidas.


O padre Mark A. Pilon, sacerdote da Diocese de Arlington, Virginia, é doutorado em Teologia Sagrada pela Universidade de Santa Croce, em Roma. Foi professor de Teologia Sistemática no Seminário de Mount St. Mary e colaborou com a revista Triumph. É ainda professor aposentado e convidado no Notre Dame Graduate School of Christendom College. Escreve regularmente em littlemoretracts.wordpress.com

(Publicado pela primeira vez na quarta-feira, 19 de Agosto de 2015 em The Catholic Thing)

© 2015 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Thursday, 20 August 2015

Dogmas Materialistas e Más Conclusões

Francis J. Beckwith
São Tomás de Aquino disse uma vez, citando Aristóteles, que “um pequeno erro à partida pode levar a grandes erros nas conclusões”.

O que isso significa é que, tendo em conta a natureza da razão, se qualquer uma das suas premissas estiver errada, por mais irrelevante que possa parecer para o projecto em geral, as suas conclusões podem acabar por se revelar muito, muito erradas.

Um bom exemplo disto aparece num TED talk que o meu irmão Jim sugeriu que eu visse. Em “O que explica o domínio dos humanos?” o professor Yuval Noah Harari argumenta que o domínio do homo sapiens na terra se explica pela capacidade que os homens têm de construir certas “histórias” sobre “entidades ficcionais” que fornecem os meios para cooperarmos em grandes números. Entre estas entidades encontram-se Deus, os direitos humanos e o valor do papel-moeda.

Embora o professor Harari seja o orador captivante e o seu discurso tenha sido retoricamente atractivo, as credenciais filosóficas da sua tese deixaram-me com mais perguntas do que aquelas a que a teoria consegue responder.

Comecemos por colocar esta questão: Como é que o professor Harari sabe que estas “histórias” sobre o divino, os direitos nacionais e a moeda são “ficções”? Ele não explica. Tudo o que ele faz é partir do princípio que o materialismo é explicação correcta da realidade, isto é, a crença de que as únicas coisas verdadeiras são aquelas que são sujeitas a medição física quantificável.

Eis o que ele diz sobre os direitos humanos:

“Os direitos humanos, tal como Deus e o Céu, são apenas uma história que inventámos. Não são uma realidade objectiva; não são um efeito biológico do homo sapiens. Se pegarmos num Ser Humano e o abrirmos encontramos um coração, rins, neurónios, hormonas, ADN, mas não encontramos quaisquer direitos. Os únicos sítios onde encontramos direitos são nas histórias que inventámos e espalhámos ao longo dos últimos séculos. Podem ser histórias muito boas, muito positivas, mas não deixam de ser apenas ficções que inventámos.”

Ou seja, só porque não conseguimos detectar os direitos humanos (para nem falar em Deus) através das ciências naturais, devemos concluir que estes não fazem parte da “realidade objectiva”. Mas tal como o cantor de country Johnny Lee, que lamentou andar à procura do amor em bares de solteiros e entre amantes dos bons tempos, o professor Harari está a procurar direitos em todos os sítios errados. Para usar o exemplo do filósofo Edward Feser, ele assemelha o “bêbado que insiste em procurar as chaves do carro debaixo do candeeiro da rua, argumentando que esse é o único sítio onde existe luz suficiente para os poder ver”.

Então onde é que devemos procurar direitos? Não é preciso ir mais longe que a própria conferência de Harari. Ao apresentar a sua versão dos acontecimentos como aquela que ele acredita ser verdadeira, está a deixar implícito que aqueles que discordam dele estão errados. Partindo do princípio que o propósito de um argumento, bem como da utilização de provas para sustentar uma explicação, é de chegar à verdade, ou a algo que se aproxima da verdade, segue-se que a pessoa que se encontra equivocada não tem qualquer direito a afirmar que está correcta.

Segue ainda que uma pessoa que ignore as provas, o bom raciocínio e a reflecção cuidadosa, preferindo abraçar os pensamentos positivos, o raciocínio falacioso e as deambulações parvas está a fazer mal a si mesma. Mas apenas podemos dizê-lo se soubermos ao que é que o Ser Humano está ordenado.

Professor Harari
Mas este fim, ou causa final, não pode ser detectado por instrumentos ou pelos métodos das ciências naturais. Se dissecarmos um Ser Humano, para usar o exemplo de Harari, não conseguimos ver em lado nenhum os bens para os quais estamos ordenados. Se, contudo, isso significa que esses bens não constam da “realidade objectiva, então os próprios praticantes da ciência ficam sem qualquer base para condenar a ignorância e louvar a sabedoria, dois juízos cuja veracidade a “história ficcionada” de uma realidade imaterial, a formado Ser Humano. Afinal de contas, apenas podemos concluir que alguém tem uma deficiência se soubermos antes aquilo que é e como deve ser. Daí dizermos que a um cego falta a visão, mas a uma pedra cega nada falta.

As leis da lógica também são centrais para a investigação. Isto é, para poder fazer investigação científica é necessário saber raciocinar, o que significa não violar as leis da lógica. Mas as regras da lógica não são entidades materiais que se possa encontrar dissecando alguma coisa, muito menos um ser humano. Na realidade, as relações entre as premissas de um argumento são lógicas e não espaciais, o que significa que não são objectos físicos. Vejamos uma forma válida de argumento, modus ponens:

Se P, então Q
P
Logo Q

Esta é uma forma válida, não porque as duas premissas sejam, em conjunto, causa física da conclusão, como a bola branca faz mover a bola preta no bilhar. Antes, funciona por necessidade lógica, a conclusão segue-se às premissas.

Essa relação não é física, embora pareça tão real e parte da “realidade objectiva” como a relação entre as duas bolas de bilhar, ou aquilo que se vê quando se disseca um ser humano. Por isso, aqui temos outra razão para rejeitar o materialismo do professor Harari.

A questão é esta: Se alguém vos propuser uma teoria da realidade que exclui aquilo que parece ser evidente, é capaz de ser boa ideia ser céptico em vez de duvidar do senso comum. Por que é, ironicamente, o nosso senso comum – aquilo que acreditamos sobre o bem, a verdade e a beleza antes de reflectir sobre o assunto – que tornam a teorização, mesmo a má teorização, possível.


(Publicado pela primeira vez na Quinta-feira, 15 de Agosto 2015 em The Catholic Thing)

Francis J. Beckwith é professor de Filosofia e Estudos Estado-Igreja na Universidade de Baylor. É autor de Politics for Christians: Statecraft as Soulcraft, e (juntamente com Robert P. George e Susan McWilliams), A Second Look at First Things: A Case for Conservative Politics.

© 2015 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte:info@frinstitute.org


The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Wednesday, 12 August 2015

Leitura para Férias

Sabedoria 4, 16
Aproveito este meu último post antes de ir de férias para partilhar sobretudo alguns textos mais de fundo que vos poderão interessar.

Na sequência da minha reportagem sobre o Apoio à Vida e a Vanessa, que se tornou mãe aos 12 anos, publiquei a transcrição integral da entrevista a Joana Tinoco de Faria, psicóloga que acompanha estes e outros casos e fala com conhecimento de causa de toda  a problemática da gravidez adolescente, aborto e maternidade. É uma conversa longa mas interessantíssima!

Ao longo desta semana que passou falei também com o activista Nuri Kino, que fundou uma organização para ajudar os assírios, isto é, os cristãos do Iraque e da Síria que são perseguidos pelo Estado Islâmico. A conversa decorreu no dia em que foram raptados mais 250 cristãos na Síria e dias antes de serem libertados outros 22. Saiba aqui como pode ajudar os que se encontram a salvo, mas deslocados.

Na semana passada morreu o padre Ricardo Neves. Deixa muitas saudades e um vazio pastoral difícil de preencher sem a ajuda de Deus, que certamente não nos faltará. Hoje publiquei na íntegra uma entrevista que lhe fiz no ano sacerdotal. Não é uma homenagem, é uma forma de matar saudades.

E por fim, mais um artigo do The Catholic Thing. O grande Randall Smith sobre o que constitui um verdadeiro mártir. Será que Martin Luther King qualifica? E Edith Stein? E os mártires do Império Romano?

Por hoje é tudo, se houver notícias urgentes comunicarei, mas entretanto vou estar de férias. A festa continua no Facebook e no Twitter.

"Ser padre é uma experiência dolorosa. Porque amar dói"

Transcrição integral da entrevista feita ao padre Ricardo Neves em Dezembro de 2009 e que foi incluída na série “Vidas Consagradas” feita para o Ano Sacerdotal. O padre Ricardo, de quem tive o privilégio de ser próximo e amigo, morreu no passado dia 6 de Agosto.


Pode contar-nos um pouco da sua história?
Tenho 37 anos e sou filho único, os meus pais são do Alentejo, casaram e viveram em Lisboa, e depois em Rio de Mouro. Fiz o trajecto normal de estudos e de catequese. Porque a minha mãe era praticante mas o meu pai não, e tinham um acordo que o meu pai começava a ir à Igreja quando eu começasse a ir à catequese.

Vida normalíssima em casa, e na Igreja, em termos de vida cristã normal e muito gira a partir de certa altura. Na minha adolescência a participação na vida da comunidade era muito intensa, muito participada, com muito crescimento quer pessoal quer comunitário, que na altura foi o que me interpelou, na altura também através da figura do pároco, o célebre padre Alberto Neto, famoso em Lisboa por causa do caso da Capela do Rato, e que tinha sido coadjutor em Belém.

Foi um homem que me interpelou imenso pelo tipo de pastor que era, e porque me foi desinquietando, foi fazendo umas “perguntas indecentes”, perguntando se já tinha pensado nisto e naquilo.

E começou a crescer dentro de mim… Ao mesmo tempo que havia uma enorme alegria em ser cristão e fazer parte da vida da Igreja, comecei a interrogar-me o que é que os outros teriam a ver com isso, especialmente porque na minha experiência de liceu e de escola havia muita gente que conhecia que não era cristã e que podia beneficiar muito se conhecesse e experimentasse o que eu conhecia.

Isso começou a tornar clara a interrogação de ser sacerdote e de consagrar a minha vida a esse serviço.

Depois entrou um período de reflexão, até que fui dizer a Deus que se decidisse, para eu saber o que fazer. Pedi-lhe: “Manda-me um sinal, porque se me disseres o que queres eu faço”. E foi ali um conjunto de acontecimentos muito giro. Nessa altura morreu o meu pároco, foi um acontecimento trágico, morreu assassinado, e eu tinha recebido um convite para ir para o pré-seminário, e fui falar com o padre que o estava a substituir e perguntei como devia fazer para preencher o nome do pároco. E o padre Armindo agarrou nos papéis e disse: “Eu acho que devias era entrar no seminário, não achas que é tempo de entrar no seminário?” E para mim isso foi a resposta ao que eu tinha pedido de joelhos. E para mim foi muito claro. Disse-me para pensar nisso e eu fui para casa a pensar que não ia ter que pensar mais, que já lhe podia dizer.

E então entrei para o seminário aos 15 anos e fiz o trajecto normal, estive dois anos aqui [em Caparide], mais quatro em Almada e outros quatro nos Olivais.

Sendo filho único, a vocação foi bem aceite?
Lembro-me que nesse dia cheguei a casa e os meus pais estavam no jardim, o meu pai estava em cima de um escadote a apanhar ameixas, e a minha mãe estava com o balde na mão. Eu abri o portão, cumprimentei-os e disse: “Olhe, eu vou para o Seminário”, e o meu pai, que estava no alto da ameixeira nem olhou para mim, disse à minha mãe: “O Rapaz está parvo, acho melhor ires para casa”.

As semanas que se seguiram foram de debate muito intenso. Não para contrariar, mas porque queriam saber se era de facto consistente o que eu queria. Depois deixaram-me vir.

Foi particularmente complicado para a minha mãe, porque coincidiu com uma fase em que o meu pai passou a estar mais ausente por causa do trabalho e para a minha mãe houve uma solidão que foi difícil de gerir. À medida que me viam a crescer feliz e realizado, isso foi sendo mais harmonioso para eles.

Depois de ordenado, foi logo trabalhar para o seminário?
Imediatamente.

Quando é que se tornou vice-reitor?
Há sete anos, em 2002.

Qual é o percurso normal de um seminarista, desde que entra até passar ao seminário maior, e qual é o seu papel ao longo desse percurso?
A Santa Sé indica que a formação tem de ter pelo menos seis anos de estudos. No Patriarcado de Lisboa esse percurso está feito em sete, três aqui, no seminário vocacional, e quatro no seminário dos Olivais que chamamos o seminário pastoral. Portanto três anos de discernimento e aprofundamento vocacional e quatro anos de formação pastoral e de preparação mais imediata para a ordenação.

Aqui o nosso grande objectivo é proporcionar um percurso que permita àquele candidato, e a nós Igreja, nomeadamente a equipa formadora que está aqui em nome do Bispo, fazer um discernimento sobre o chamamento de Deus para aquela pessoa e a capacidade que tem para responder, e chegar a uma conclusão sobre isso. Portanto todo o processo dos três anos está orientado para isso, em diferentes dinâmicas: A dinâmica do crescimento espiritual; A dinâmica do crescimento intelectual e da formação intelectual; E a dinâmica do crescimento humano e afectivo, que vão concorrendo mutuamente até se chegar a uma síntese que permita ver.

Claro que o ponto de confronto são aqueles elementos que a Igreja acha necessários para o ministério ordenado, há um conjunto de exigências, de ritmos de vida e de conteúdos, que vão sendo oferecidos, e que são aqueles que se pretendem para quem quer ser padre, que vão servindo por um lado de motor de crescimento e por outro de margem de confronto, para ver se há integração e adequação ou não.

Enquanto vice-reitor, qual é a sua função?
O vice-reitor tem a coordenação-geral pedagógica da casa, quer o que diz respeito ao percurso global, quer o que diz respeito ao acompanhamento individual. E depois tenho também a parte administrativa.

Quantos padres trabalham aqui?
Somos três padres na equipa formadora. Há o director espiritual, que os acompanha individualmente e quem os confessa, e depois nós os outros dois padres, eu o Vice-reitor e o padre Nuno Amador, que é o prefeito, que acompanhamos a parte externa e não fazemos a direcção espiritual, dividimos os três anos entre nós. Neste momento eu acompanho o primeiro ano, o chamado propedêutico, e os finalistas. No que diz respeito ao propedêutico acompanho-os tanto nas actividades de grupo como também no percurso individual, e aí faço parelha com o director espiritual, e acompanho os finalistas, até porque como é um ano de decisão é preciso um acompanhamento mais apurado para chegar a uma conclusão final.

Parte do seu trabalho é ajudar os seminaristas a discernir se têm mesmo vocação para o sacerdócio ou não, é fácil detectar isso?
Isso é o mais difícil! Fácil não é. Não se trata de fácil ou difícil. O processo é um de amadurecimento da pessoa. Não está aqui em jogo simplesmente a aquisição de competências, um técnico religioso, ou um técnico sacramental. Pretende-se ver se esta pessoa cresce numa unidade pessoal que se identifica com aquele projecto. Isso é difícil, porque por um lado e muito dinâmico, por outro lado os timings são muito diversificados, e porque uma boa parte disto está dependente da liberdade de Deus, que é um mistério muito grande.

O segredo é acompanhar e intervir, em cada processo, e temos pessoas para quem o amadurecimento acontece mais depressa e para quem há uma clareza sobre a continuidade do percurso mais cedo, e outras para quem acontece mais tarde. Contudo, a formalidade da decisão no que diz respeito à adesão à vocação sacerdotal e a passagem para os Olivais, só acontece no terceiro ano, só aí é que pedimos formalmente uma decisão pública assumida e comprometida, e nós também tomamos essa decisão.

É verdade que há percursos que são muito turbulentos e que andam para trás e para a frente, e há outros que são mais lineares, mais tranquilos.

Há uma taxa bastante grande de desistências no sacerdócio, como vê isso?
As taxas de desistência são uma coisa… No seminário vocacional há uma taxa maior do que no pastoral, porque de facto o seminário vocacional é um seminário para discernir e decidir, por isso é mais normal haver mais saídas. No Seminário dos Olivais é raríssimo, porque os que passam para lá já têm uma decisão tomada. Só em casos excepcionais é que saem.

Aqui é natural haver saídas porque é para nós muito claro que este é um processo aberto, um processo que está começado com indícios de vocação sacerdotal e de adesão a isso, mas que precisa de ser aprofundado, e a regra fundamental para ele ser aprofundado é uma grande liberdade de parte a parte. E portanto, em alguns casos percebe-se que a vocação é o matrimónio, ou uma vida religiosa, ou uma vida consagrada e por isso reencaminha-se para esses fins.

Existe mesmo uma crise de vocações, como tanto ouvimos dizer?
Os anos 60 / 70 foram anos, tecnicamente, de muita crise de vocações, e isso correspondeu à redefinição dos seminários e do papel do sacerdote na Igreja. Na segunda metade dos anos 70 os seminários aqui da diocese passaram de 180 ou 150 alunos para 12 ou 15 alunos, no espaço de dez anos.

Isso significou que houve um processo de perceber as motivações profundas que havia nas pessoas que encetavam este caminho, e aquelas cujas motivações não coincidiam com o que estava definido, era melhor caminharem para outro sítio.

Progressivamente, desde os anos 70 até agora tem havido um crescimento sustentado. Creio que o problema é que o número que temos agora não é o necessário para repor as faltas que temos. Se compararmos com a grande quebra dos anos 60/70, temos números bons. Não temos é a capacidade de refazer o tecido dos presbíteros com os números que se pretendia para manter a organização pastoral como ela está.

Os senhores bispos têm de pensar muito nisso, e isso também põe em questão a maneira como se organiza o trabalho dos sacerdotes, porque há um tipo de pastoral que se fazia há muito tempo, que precisava de muitos padres e de um tipo de presença de padres que hoje já não pode ser assim, e ao mesmo tempo não temos padres para compensar isso, e depois a realidade do número das vocações também é muito variável de diocese para diocese. Há dioceses que têm para a sua estrutura um óptimo número, e outras que têm menos. Isso tem a ver com a vitalidade cristã das próprias comunidades. Quando essa vitalidade é crescente e tem preocupações de intervir no mundo, naturalmente aparecem vocações. Se há um conjunto de comunidades com um Cristianismo mais de manutenção, mais absorto, o número de vocações também é menor.

E os seminaristas estão a ser preparados para essa nova realidade, ou para uma realidade que já não vai existir no tempo deles?
Nós temos a preocupação, principalmente nos Olivais, mas aqui também, de por um lado dar-lhes a conhecer a realidade como ela é, que não muda num estalar de dedos, e ao mesmo tempo de levá-los a reflectir sobre as metas onde queremos chegar. Porque me parece que é preciso muito cuidado e sabedoria para formar neste percurso de transição.

Porque não podemos formar gente que esteja tão iluminada com as metas onde vai chegar que depois, quando for para as comunidades concretas não se revê e não aguenta e dá cabo daquilo, e também não podemos formar para gente que só faz o que ali está e não evolui com a comunidade para outro lado. Por isso a nossa preocupação tem sido, por um lado ajudar a integrar na realidade como ela está, e ao mesmo tempo iluminar para as metas onde queremos chegar.

Depois, também numa diocese como é Lisboa, as dinâmicas pastorais são muito diferentes. A pastoral dentro da cidade, propriamente dita, na cintura de Lisboa e no Oeste, seja o mais próximo ou o mais distante, como Alcobaça, Nazaré, etc. são realidades muito diferentes e que vão precisar de posturas e de sensibilidades muito diferentes. Há comunidades que, a maneira como se organizam, é muito rural, com esquemas muito tradicionais e que funcionam naquela comunidade, por isso as posturas vão ser diferentes e tem de se atender a isso.

A Igreja também se tem tornado mais exigente com os candidatos que aceita para ordenação?
Nós procurámos, nos últimos 30 anos as pessoas que vêm para o seminário são pessoas que têm inquietações vocacionais e que têm atracção pelo ministério sacerdotal. Não vêm para aqui porque querem estudar, ou porque tiveram um desgosto amoroso, ou porque são o filho mais novo e porque a vida clerical podia ser uma alternativa. Isso tudo mudou com o concílio Vaticano II.

Depois, nós procuramos que, prévio à entrada para o seminário, haja um acompanhamento feito ou pelo seminário ou pelas estruturas da diocese que estão encarregues disto, seja os pré-seminários, seja a pastoral das vocações, de modo a aferir se de facto às motivações são correctas.

Às vezes ainda nos aparecem pessoas a bater à porta a pedir para entrar e nem baptizados são. Ainda há pouco tempo esteve aí um rapaz que não é baptizado, mas que achava que na fase da vida em que está, podia ser interessante. Ainda aparece isto. Mas nos casos normais fazemos um acompanhamento por forma a perceber se há condições para entrar.


Nos últimos anos a Igreja tem sido abalada pelos escândalos de abusos sexuais por parte de sacerdotes. É possível detectar futuros infractores nesta fase do seminário?
Espero que sim! Temos duas ferramentas fundamentais para isso. Na diocese de Lisboa, há 20 anos que fazemos uma coisa que agora vem recomendado pela Santa Sé, que é o rastreio psicológico e o acompanhamento psicológico.

Portanto o seminário actualmente tem uma psicóloga, que submete todos os seminaristas a uma bateria extensa de testes que têm dois objectivos fundamentais: Primeiro, traçar o perfil nas áreas fundamentais da pessoa, desde a área cognitiva à área afectiva e sexual, de modo a que possamos interagir e formar de uma maneira mais adequada. Depois, os testes têm também o objectivo de detectar algum desvio psicológico que possa haver, não só nessa área, mas noutras também, doenças psiquiátricas que possam aparecer.

Quando detectamos algum caso em que há algum caso de traços objectivos de desvio patológico, e devo dizer que em 12 anos no seminário nunca nos aconteceu ter algum caso de desvio sexual, graças a Deus. Se há um caso de desvio patológico, isso é veemente, este tipo de educação implica um equilíbrio humano que não se compadece com esses desvios.

Mas pode acontecer também haver desequilíbrios circunstanciais, são etapas do crescimento, e nesses casos a psicóloga também acompanha durante o tempo que for preciso, em processo psico-terapêutico o desenvolvimento daquela pessoa, em diálogo com a equipa formadora.
Esta ferramenta tem sido de imensa utilidade, e para os seminaristas também tem sido, têm tirado imenso proveito.

Depois há uma segunda ferramenta que é o nosso acompanhamento directo, personalizado, de todos os dias, onde a preocupação de analisar a maturidade afectiva, a universalidade afectiva, a capacidade de relação com os dois sexos, a capacidade adequada de estar com os dois sexos, a normalidade das atracções e dos envolvimentos afectivos com o sexo oposto são tidos em conta.

Pode acontecer, também nestes anos ainda não aconteceu, que haja algum caso que seja conhecido externamente. Alguém que entra e que na sua terra é conhecido por ter uma tendência que não condiz. No processo de encaminhamento e de formação, o contacto com os priores permite também complementar esse rastreio.

Recentemente houve também indicações de Roma no sentido de que homens com tendências homossexuais não deviam ser ordenados. Já lhe aconteceu ter que expulsar seminaristas por essa razão?
A instrução indica, aliás, como tem sido comum aos estudos de psicologia e daqueles de que nos socorremos, que o desenvolvimento homossexual tem na sua génese uma destruturação na capacidade da relação com os opostos. E dizem até os dados estatísticos que há instabilidades tanto nos relacionamentos, como na gestão de situações de grupo, quer na gestão de situações de tensão entre pessoas que, para um homossexual, é mais difícil.

Portanto a indicação da Santa Sé é que, para uma vida destas em que se pede celibato, e a implicação disso que é a continência sexual, em que se pede uma relação universal, abrangente, capaz de ser simultaneamente próxima, sem ser absorvente, com as pessoas, pensa-se que o perfil de um homossexual não é o mais indicado para esta vocação.

Aqui no patriarcado nós já tínhamos essa indicação antes de vir a instrução, portanto quando nos aparece um caso desses, procuramos encaminhar a pessoa de forma a, por um lado, e essa é a primeira preocupação, de integrar o que possa ser a sua tendência homossexual, e depois de perceber como é que ela se há-de se situar em termos vocacionais, e quais podem ser as opções vocacionais para uma vida como a dela.

O celibato é uma vocação, ou é algo que se possa educar num futuro padre?
É uma vocação que precisa de ser educada. O celibato não é uma coisa natural, se fosse natural, não podíamos escolher essa pessoa. Se uma pessoa for espontaneamente celibatária, se não tiver capacidade de atracção pelo sexo oposto, se não tiver capacidade de relação com o sexo oposto na normalidade de homem/mulher, alguma coisa está mal na sua estrutura psicológica, afectiva, sexual. Alguma coisa não está equilibrada, o que não a indicaria para uma vocação destas.

Portanto o celibato é sem dúvida um dom de Deus, um chamamento de Deus em ordem a uma vocação específica que tem a ver com o serviço às comunidades. Qualquer vocação precisa de educação. Precisa de uma resposta da pessoa que a vá fazendo socorrer-se dos meios necessários, dos crescimentos necessários para corresponder com a sua humanidade àquela vocação.

Não me parece que seja possível educar para o celibato uma pessoa que não tenha de todo vocação. Pode-se educar uma pessoa para ser celibatária no sentido formal, mas aqui o celibato no sacerdócio é um homem que se põe de coração inteiro para o serviço das comunidades. O problema do celibato não é só a continência sexual, “Aquele homem vai ser impecável, não se vai meter com mulher nenhuma”, não, aquele homem vai ser celibatário porque o coração dele, os sentimentos dele, a vida dele é para consagrar às comunidades que apareçam, portanto a vocação do celibato neste caso é uma vocação para dar mais, para amar mais. Isso só se educa como dom de Deus, isso não se tem se Deus não concede, essa capacidade de amar, é impossível.

Como é que se explica a um rapaz que quer ser padre que, afinal, não poderá ser?
Para mim o mais difícil não é dizer… Se eu tenho que dizer a um seminarista que não, de todo, especialmente se ele tiver muito concentrado ali… O que é raro acontecer, porque vamos fazendo um acompanhamento que vai tornando claro o que são capacidades, o que não são capacidades, dimensões mais sintonizadas com isto ou não.

O mais difícil é ver uma pessoa que podia crescer e não cresce. Que poderia desabrochar e não desabrocha. Que podia ser brilhante e é só mediano. Ou, nesse caso, ver sair um seminarista porque foi a opção mais fácil. Isso é que custa.

Já saíram seminaristas que deram tudo o que tinham para dar, e perceberam que esta foi uma experiência boa, mas a vocação é o matrimónio… Óptimo. Uma pessoa que não dá tudo o que tem é uma pessoa que não é inteiramente pessoa, isso é o que custa mais.

Em relação ao seu trabalho no seminário, ao longo destes anos, qual foi o ponto mais alto e qual o ponto mais baixo?
Não sei dizer… Todos os anos têm pontos altos e pontos baixos.

Os pontos altos são os pontos onde a nossa intervenção gera realmente crescimento, onde as insistências, as atenções, geram crescimento fazem aquela pessoa desabrochar, mergulhar mais seriamente no mistério de Jesus Cristo, abrir o coração e dar-se. Isso, graças a Deus, acontece todos os anos, porque todos os anos temos pessoas aqui em etapas diferentes do processo.

Os pontos mais baixos, para mim, são os pontos da minha fraqueza, do meu erro, e no exercício aqui do ministério os pontos mais baixos são os das apostas falhadas. A gente insiste, insiste, ou puxa, puxa e não deu. Ou só deu metade do que podia dar… São pontos baixos. Claro que, como se imagina, numa vida de gente em casa há pontos baixos que têm a ver com as tensões vividas quer pessoalmente quer comunitariamente, com algum problema que houve com este ou com um grupo, e isso também acontece de vez em quando.

Nestes anos houve aqui dois momentos que me parecem muito interessantes. Um foi no ano 2001, começarmos com a aventura de instituir o ano propedêutico, redefinindo a organização pedagógica do seminário, integrando o ano propedêutico. Isso correspondeu a dois anos prévios de estudo, e debate e trabalho, e depois a implementação, e ver ao longo destes dois anos a consolidação do projecto tem sido óptimo.

Depois, um outro ponto alto, ou interessante, foi o ano passado termos encetado uma experiência para completar o processo de discernimento vocacional de alguns que precisavam de uma distensão dos três anos, termos integrado na vida paroquial três alunos, que passaram a viver com dois priores, fazendo trabalho pastoral full-time, mas mantendo uma ligação de estudo e relação com o seminário. Foi uma abertura para um formato diferenciado que pode acrescentar valor.

Vivem em comunidade, não faz falta um toque feminino?
Por acaso faz… Graças a Deus… Bom, somos trinta homens, 27 seminaristas e 3 padres, e depois temos a Dona Benedita, que tem 101 anos, que foi governanta do seminário toda a vida, e que é uma presença feminina já bisavó, por assim dizer. Mas é uma presença feminina curiosa. Graças a Deus, como ela mantém muita lucidez, permite-lhe catalisar os afectos dos seminaristas como uma avó, e por outro lado fazer algumas intervenções de mulher, nas apreciações, na sensibilidade, que é giro. Mesmo a nós padres às vezes chama-nos atenção para algumas coisas.

Depois temos as empregadas, que tratam das coisas da casa, as roupas as comidas, e essas coisas, que são senhoras. E depois, graças a Deus, temos muita gente feminina que passa por cá. A professora de música é uma senhora, a professora de jornalismo é uma senhora. Há muitas pessoas que são acompanhadas por padres aqui do seminário ou que fazem parte de grupos que têm relação com o seminário, e que passam por aqui, e por isso é muito frequente termos ou à refeição, ou no bar, ou em reunião senhoras ou raparigas, ou o que for. Portanto vai havendo aqui um certo contacto com o feminino, para além de que os universitários têm raparigas de quem são colegas, e os do propedêutico, no trabalho apostólico que têm, têm contacto com raparigas.

Em permanência, gostaríamos de ter uma governanta que fosse assim uma espécie de mãe da casa. Mas como ainda não nos apareceu a pessoa com o perfil certo, porque implica alguma disponibilidade, e uma maturidade humana e espiritual, não temos. Gostávamos de ter outra D. Benedita.

Nunca teve uma paróquia, faz-lhe falta um trabalho mais pastoral?
Não sei dizer se me faz falta ou não. Não penso muito no assunto. Procuro estar concentrado no seminário e nas coisas que tenho para fazer para lá do seminário. Não sinto falta no que diz respeito ao contacto com a diversidade de pessoas. Tenho as equipas de casais, tenho muitas pessoas que acompanho pessoalmente, trabalho no sector de animação espiritual da diocese e tenho a escola de formação que implica muitas coisas de formação com leigos e com todo o género de pessoas, por isso essa coisa que podia acontecer, falta de contacto com gente noutro estádio de vida, com outro tipo de preocupações, não acontece graças a Deus, por isso não sinto falta de paróquia.

Até porque o trabalho num seminário é um trabalho muito específico, com um conjunto de limitações humanas, está aqui, não tem a flexibilidade que um trabalho de paróquia tem, mas é um trabalho que progressivamente se vai apurando e de que a gente vai aprendendo a gostar. E actualmente gosto imenso de estar aqui, por isso não penso muito no que seria se fosse uma paróquia. Eventualmente poderá acontecer, o Sr. Patriarca mandar-me para uma paróquia e presumo que vai ser divertidíssimo.

Acompanha muitos casais, seja de namorados, seja casados, porque é que é tão procurado por estas pessoas?
Não sei dizer se tenho vocação para isso. Cresceu comigo, nestes anos de sacerdote, muita gente vir procurar-me para acompanhamento individual, para discernir coisas. O acompanhamento nos namoros e preparação para o casamento decorreu daí, porque as pessoas que eu acompanhava me pediam ajuda específica.

Na preparação para os casamentos houve um episódio engraçado, porque num mesmo ano casavam sete casais e quase todos eram acompanhados em direcção espiritual por mim. E portanto desafiaram-me a fazer ao longo desse ano um CPM personalizado para eles, uma vez que os conhecia e portanto nesse ano fiz um processo, montámos um processo de preparação imediata para o matrimónio, passando por uma série de temas e objectivos a cumprir, e essa ferramenta ficou, e tenho-a aplicado quer em grupos mais pequenos, quer em forma personalizada em outros casais, e isto é como em tudo, vamos apurando a sensibilidade ao que está bem no casal, o que faz falta, o que não faz, o que é que são as etapas de crescimento em que é preciso apostar, a experiência vai-nos trazendo isso, e tem acontecido.

O que faz nos tempos livres?
É muito pouco tempo livre, muito pouco. No muito pouco tempo livre, um bocadinho de leitura, alguma coisa que vou tendo como leitura de cabeceira. Aí especialmente nas férias, recupero o tempo perdido no que diz respeito a isso. Algum tempo de passeio, de sair um bocado para dar uma volta com os amigos, e depois umas coisas normais, um ou outro dia para ver o Sporting, um ou outro filme de cinema, uma ou outra coisa de arte mais interessante…

No Verão quando tenho tempo, porque às vezes no Verão é quando faço umas coisas extra para as quais não tenho tempo no ano lectivo, o descanso continuado, que é óptimo para mim, ficar uma semana no Alentejo, metido num sítio tranquilo, sem fazer nada, o que muitas vezes faço com colegas padres, ou então fazer uma viagem, ir a um destino, conhecer, é uma coisa que me descansa imenso, ir ver outras cores, outras formas.

O que é para si ser padre?
Para mim é uma experiência muito dolorosa e muito feliz. E explico porquê. Porque me tem chamado a viver ao limite de mim como pessoa e ao limite do que sou capaz de dar e do que sou capaz de receber de Deus, e portanto nisso tem sido uma experiência por um lado muitíssimo feliz, de encontro às maravilhas do que Deus faz nas vidas das pessoas, da forma como Jesus é capaz de mudar a vida de uma pessoa, o coração de uma pessoa, e para mim é surpreendente como Jesus é capaz de fazer isso através de um gajo como eu.

E tem tido momentos de sofrimento porque amar dói. Há aqui umas medidas de amor que implicam deixar para trás coisas que eu gostava ou uns formatos que para mim eram mais confortáveis, e implica um debate com a minha fragilidade e com o meu pecado, que às vezes é dolorosa.

Estar no meio de um ministério tão grande, estar no meio da vida das pessoas que é encontrar em mim coisas mesquinhas, menores, é um debate complicado. Para mim tem sido muito extraordinário o milagre que é poder estar no meio da vida das pessoas, o sacerdote tem o privilégio de poder estar na intimidade das pessoas, no santuário mais interior das pessoas, e aí ser condutor. Isso para mim é extraordinário.

Depois, para mim também tem sido a graça de celebrar missa todos os dias, de ir mastigando mais seriamente o Evangelho de Jesus e de ver que aquele Evangelho faz efeito, quando ele é dado e recebido, faz mesmo efeito. Tenho, nesta parte do trabalho da formação sacerdotal, tenho sempre uma interrogação e uma inquietação. Os padres nos próximos 30, 40, 50 anos também vão ser o que eu fiz.

Epá, espero que Nosso Senhor não me cobre muito, vamos ver, é uma coisa muito séria. Às vezes aqui em casa falamos disso, uma parte deste clero vai ser o que a gente fez… Fazemos o que podemos.

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O Martírio, Ontem e Hoje

Randall Smith
“Se as autoridades estivessem à procura de cristãos para matar, haveria provas suficientes para te condenar?” Ou, posto de outra forma: “A tua fé cristã é do género que vale a pena perseguir?”

Às vezes ouvimos dizer que os “mártires cristãos” não eram executados por causa da sua fé, mas por outras razões, e surge então a questão de saber se devem ou não ser considerados mártires pela fé. Assim, e pegando num exemplo contemporâneo, se Edith Stein foi executada por ser judia, e não por ser cristã, devemos dizer que ela é uma mártir cristã? De igual modo, se os primeiros cristãos foram executados não por causa das suas convicções religiosas – sobre as quais, ouvimos frequentemente dizer, os romanos eram “indiferentes” –, mas por constituírem uma suposta ameaça ao Império Romano, então devemos dizer que são mártires cristãos, ou apenas descrevê-los como cidadãos romanos problemáticos?

É verdade que os romanos não estavam particularmente interessados em saber que deus, ou deuses, uma pessoa adorava, ao contrário do Império Helenista que os precederam. Um desses imperadores helenistas, Antíoco IV Epifânio, (c. 215 AC – 164 AC) tornou-se famoso, por exemplo, por obrigar os judeus na Judeia a comer carne de porco e a adorar uma estátua de Zeus que tinha mandado colocar no Templo de Jerusalém. O resultado foi uma revolta liderada por Judas Macabeu e os seus filhos – a Revolta dos Macabeus. Com os romanos, pelo contrário, podia-se fazer o que bem se entendesse no que diz respeito a crenças e adoração privadas.

Mas não é verdade que os romanos fossem completamente indiferentes às crenças religiosas. Por muitas razões, ligadas à expansão romana para o oriente e a centralização do poder romano num único imperador, a regra em muitas administrações romanas no final do segundo século era a “adoração do imperador”. E qualquer religião, tal como a dos judeus e dos cristãos, que não permitisse aos seus fiéis reconhecer o imperador como Deus e como máxima autoridade em todos os assuntos, era um problema, aos olhos de Roma.

Uma “fé” que permanecesse no interior da Igreja ou do templo e que não maçasse os líderes políticos de qualquer forma não era um problema. Mas se alguém tentasse ensinar verdades que incomodassem os planos dos governantes ou procurasse convencer as pessoas a recusar esses planos por objecção e consciência, essa pessoa dificilmente escaparia a perseguição por muito tempo. As Igrejas ou os templos que estavam envolvidos em “adoração” da mesma forma que os templos pagãos em Roma – isto é, que praticassem rituais e sacrifícios elaborados, mas não tivessem grandes ensinamentos em termos de doutrina ou moral – tinham muito pouco a temer das autoridades romanas.

Da mesma forma hoje, como tantas vezes foi o caso ao longo da história, desde que se procure apenas “liberdade de culto”, pouco há a temer da maioria dos governos. Podemo-nos envolver nos rituais que quisermos desde que no interior dos templos ou das igrejas. É quando essas crenças começam a chegar à praça pública, como uma fonte que jorra e transborda, que os chefões se começam a preocupar. Desde que a sua “religião” se preocupe apenas com o outro mundo, a maior parte das pessoas não quer saber se adora Zeus, Javé ou o deus dos peluches.

Os media actuais que criticam os ensinamentos morais da Igreja Católica e exortam o Governo a manter firme o “muro que separa a Igreja e o Estado” não têm qualquer problema em publicar horóscopos diários – apesar de a crença na astrologia ser claramente religiosa – simplesmente porque sabem aquilo que todos nós calculamos: Nomeadamente, que as pessoas que lêem horóscopos e mesmo as que os levam a sério, não representam qualquer ameaça para o governo. Os horóscopos não têm qualquer conteúdo moral e é por isso que não podem constituir qualquer ameaça para ninguém em posições de poder. É por isso que raramente vemos pessoas a serem perseguidas por se envolverem em astrologia. É considerado seguro, uma tolice inofensiva.

Martin Luther King - Perseguido pelas suas crenças?
Mas uma religião que diz que todas as leis e acções executivas do Governo devem ser julgadas segundo uma autoridade maior; que quaisquer leis que falhem este teste devem ser resistidas; e que a “boa cidadania” deve ser julgada precisamente pela resistência que se opõe ao governo neste sentido, essa sim é perigosa. Religiões destas raramente escapam à perseguição muito tempo.

Por isso, como se vê, os debates sobre o “martírio” na Igreja primitiva e sobre a “liberdade religiosa” nos nossos tempos, têm bastante em comum. Se por “mártir” falamos apenas de alguém executado por prestar culto de determinada forma, então muitos dos primeiros cristãos não eram mártires. Se, contudo, entendermos que o termo abrange as pessoas executadas por se recusarem a reconhecer nos governadores romanos, ou no imperador, a autoridade máxima sobre assuntos humanos, então houve muitos.

As autoridades do sul dos EUA não perseguiram Martin Luther King porque, por ser baptista, ele se recusava a baptizar crianças. No que diz respeito à prática religiosa, ele era livre de fazer o que entendesse. Puseram-no na prisão porque a sua mensagem de liberdade estava a chegar às ruas, na forma de protestos contra as leis racistas do Sul.

É curioso que nos nossos dias tantos daqueles que gostariam de se associar ao legado das lutas pelos direitos cívicos revelem vontade de fechar essa mesma porta entre a Igreja e a Praça Pública. Estas pessoas são como o pai de Santa Perpétua, que a aconselhou, enquanto aguardava ser executada, a rejeitar Cristo publicamente, apenas pelas palavras, e que ninguém queria saber o que ela fazia em privado. A cultura dela, como a nossa, conhecia apenas um tipo de tolerância. Mas o seu espírito era como o de Cristo, que conhecia uma liberdade mais verdadeira que aquela que pode ser dada ou retirada pelos chefes das nações.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez na quarta-feira, 29 de Julho de 2015 em The Catholic Thing)

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The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Friday, 7 August 2015

Kidnapped Christians in Syria: "It keeps repeating itself, since 1915"

Nuri Kino with Syriac bishops in Sweden
Full transcript of Nuri Kino's explanation about the situation in Syria, where 250 Christians have been kidnapped. News report, in Portuguese, here.

What information do you have about the kidnappings in Al-Quarayatayn?
Isis went in to the city and about 1500 people managed to flee. Most of them came to the churches of Homs. We spoke several times to the churches and the Syriac Orthodox Bishop managed to make a list of missing people. He and volunteers, clergymen and civil volunteers registered everyone that fled and asked them if they had any missing neighbours, friends or family members. Then they went through again and after several interviews with those who registered they completed a list of 250 missing people.

These 250 are all Christians?
They are all Syriac Orthodox or Syriac Catholic.

Could there also be people from other minorities who have also been kidnapped?
That we do not know, because we only spoke with the churches.

But was the city of  Al-Quarayatayn majority Christian?
Nearly only Christians.

There has been no information on the part of the kidnappers, no demands...
No. The only thing we know is that their cell phones have been switched off. So when relatives, family members and the churches try to reach them there is no answer.

This is not the first time there has been a mass abduction. The most recent one was near Hassakeh...
From the Khabour area there are still 222 people abudcted.

Do you know if they are alive?
Well those that have been released have told us about their whereabouts, that women and small girls and boys and men were separated from eachother, and the women were held in a small room and had to schedule their sleeping. That is all we really know now.

At the time there were people who had been released and said they had been ordered released by Shariah judges...
That information has not been reliable, some said that, others said they had been released because of health issues. Mostly elderly people.

The fact that they were not just executed, even though they were a burden for ISIS, may be a sign of hope, no?
Definately. But we also know from kidnappings from Mosul or the Nineveh, of at least one Assyrian woman, and an Assyrian kid who were given to ISIS members as gifts. So it’s devastating, and people keep fleeing... Those who managed to flee from Khabour went to Hassekeh, and then from Hassekeh to Qamishli, from Qamishli back to Khabour, where there were a lot of mines. Now they don't know where to flee. It keeps repeating itself, it’s been repeating itself since 1915, then 1933 and so on, and now, since 2004 we keep reportiong and reminding the world about this genocide, but no action is taken to save the Christian/Assyrian/Chaldean/Syriacs/Armenians and other Christians in Syria and Iraq.

I don't know, I have no words besides that one lion was killed and the whole world was furious, now all these people are getting kidnapped and slaughtered, why isn't the world furious about that? Why? Somebody needs to give an answer.

And its not just Christians, it’s also Muslims. ISIS is getting more and more violent, against everyone.

One year ago Mosul fell and the world woke up to ISIS. Did you imagine that one year later we would be in the same situation?
Yes. We also actually predicted Mosul, and the Nineveh plains. For years, in both DC and Brussels, we reported about it, we feared it. So it’s very sad and horrible, terrifying, but it’s not surprising.

You live in Sweden, where there is a big Assyrian community. Are there relatives of those who were kidnapped?
I will actually see one of the relatives of those from Habour, she has 42 of her family members kidnapped, and I spoke to a young man and a lady today who have relatives missing from the Homs area, but they are not sure if they are kidnapped or not, because they are not on the list that they saw.

Thursday, 6 August 2015

Aborto: "Se eu soubesse que havia ajudas, não tinha feito o que fiz"

Transcrição integral da entrevista a Joana Tinoco de Faria, psicóloga do Apoio à Vida, uma instituição que ajuda mulheres grávidas em dificuldades. Pode ver a reportagem aqui.


Casos com os da Vanessa, de meninas a engravidar aos 12 anos ou até menos, são comuns?
Comuns não, não na nossa realidade. Normalmente sabemos quem são esses casos. A partir dos 14 para a frente é mais comum.

Uma rapariga assim tem capacidade mental para levar a cabo uma gravidez e assumir a maternidade?
Em termos de maturação, mesmo ao nível do desenvolvimento cognitivo, do desenvolvimento da inteligência – que depois se repercute no desenvolvimento emocional, e na capacidade emocional que terá – há de facto algumas coisas que precisam de muita ajuda para crescerem ao mesmo tempo que as exigências da maternidade interferem com esta fase do crescimento.

Se tem capacidade mental? Acho que dizer que não tem também não é justo. Sobretudo porque depois a cultura influi muito, e nós lidamos com culturas em que isto pode ser uma realidade mais próxima e os papeis sociais que se desempenham, a capacidade mental adapta-se a este tipo de circunstâncias. Numa cultura como a nossa, e numa sociedade como a nossa, em que se privilegia mais o facto de a criança viver a sua infância, eventualmente estará menos preparada para desempenhar este papel e é mais exigente do que em culturas em que a maternidade é mais precoce.

Quando fala de culturas em que a maternidade é mais precoce... Trabalham muito com pessoas de ascendência africana, é isso?
Sim.

Portanto é diferente trabalhar com pessoas dessas comunidades ou de outras?
É muito diferente. Não só a forma como a maternidade é ou não vivida e valorizada, socialmente e culturalmente, é totalmente diferente. E depois na forma como somos aceites ou não, como intervenção externa, isso também é muito diferente, por isso temos de nos adaptar à cultura da qual nos aproximamos. 

Levou tempo a perceberem isso?
Leva tempo a perceber e é importante estarmos atentos. Porque para nós às vezes é tão óbvio, determinadas formas de fazer e de desempenhar papéis, que percebemos que estamos tão longe de quem nos estamos a aproximar que o nosso ponto de partida tem de ser outro, tem de ser o da pessoa que temos à frente, perceber qual é e depois fazermos o caminho em conjunto.

Quando lhe perguntei se haveria capacidade mental, achei interessante que respondeu que há coisas que "precisam de mais ajuda", dando a entender que é possível chegar-se lá. O que ouvimos dizer muitas vezes é que nestes casos a melhor solução será quase invariavelmente o aborto. Não concorda?
Não concordo sobretudo com o estanque que é essa resposta. Sobretudo porque há muitos factores que influenciam. Isto ser matematicamente uma resposta, para mim não faz sentido. Temos de perceber as circunstâncias em que a pessoa existe, é, vive, cresce e a forma como a família apoia ou não apoia, que é verdade que para uma criança de 12 anos é um desafio enorme, ninguém tem dúvidas. Que não é possível desempenhar esse papel… Acho que de acordo com a nossa experiência não podemos dizer que não é possível.

Quando uma rapariga nova, numa situação complicada, procura um aborto, o que é que lhe está a passar pela cabeça?
É muito diferente o que uma rapariga desta idade pode pensar, ou de outras idades. Porque esta fase de desenvolvimento é caracterizada por um egocentrismo e até mesmo a nível de inteligência o pensamento é muito autocentrado. E por isso há a valorização, tipicamente, das tarefas que são normais nesta época do crescimento, a brincadeira, os amigos, as tarefas escolares, a forma como lidam, ou não, com a família. E normalmente isto é um dos factores que influi muito na forma como é vivida uma gravidez, ou até nas razões do aparecimento da gravidez, porque muitas vezes as gravidezes surgem, psicologicamente, como um grito inconsciente, pelo menos na minha perspectiva, de autonomia e até de uma construção de um projecto de família desfasado – isto é, fantasioso – mas um grito por uma família própria, um porto de abrigo, em famílias em que isto se calhar não existe.

Nestas idades também? Ou sobretudo mais tarde?
Da nossa realidade, lidamos muitas vezes com famílias que são lugares de afecto insuficiente e qualquer criança sente isso. E depois, para além disso, são zonas em que há subculturas em que a maternidade na adolescência de alguma forma é aceite, existe, há sempre casos que existem e que se conhecem, e portanto nestes contextos – e esta realidade é próxima daquela em que actuamos – isso existe e acontece, ou seja, há uma repetição de um modelo que mesmo que não seja consciente – e não é de todo – inconscientemente procura-se. E muitas vezes as mães destas raparigas foram mães muito novas e portanto são modelos que se acabam por se absorver, sem crítica, e portanto reproduzem-se sem ter consciência que se está a reproduzir. Sim, é possível isto acontecer nestas idades. 

Depois, obviamente, a forma como se vive a sexualidade… Como muitas vezes os pais são pré-adolescentes que não têm muitas balizas a vivência da afectividade é feita de forma mais desordenada e acontece uma gravidez em contextos completamente inesperados, tanto que muitas vezes não há o reconhecimento dos sintomas nesta idade, porque é de tal forma uma coisa fora de âmbito que nem sequer se reconhece. Nestas idades acontece isto com alguma frequência.

Existe alguma noção dos eventuais efeitos negativos psicológicos de uma decisão dessas?
Não há. É uma fase do desenvolvimento em que há um egocentrismo e uma síndrome de imortalidade, em que se pensa que acontece aos outros mas não a mim. É muito difícil conseguir-se esta capacidade do que vai acontecer nesta fase da pré-adolescência. É praticamente inexistente. É viver o hoje, é resolver o que o hoje me apresenta e é também uma forma de viver muito autocentrada, muito à volta do que "me apetece".

Paradoxalmente acontece-nos, e não é um nem dois – só vou falar da nossa realidade, não vou generalizar porque não tenho dados para isso – acontece muitas vezes estas raparigas, no discurso, não quererem abortar porque – e isso também tem a ver com essa perspectiva do "eu" e do egocentrismo – porque é "o meu bebé" "o meu filho" e é alguém que "a mim me vai dar" o afecto que de alguma forma não tive. E portanto eu acho que nesta perspectiva, e da minha experiência, isso acontece-nos com frequência.

Se calhar as situações que eu acompanhei em que houve dúvidas em relação à gravidez ou em que eu acompanhei essa fase, não é tão típico nesta etapa de crescimento, mas mais velhas. Se ponderam abortar nesta etapa tem sobretudo a ver ou com a pressão da família, o que acontece com frequência. A família tem aqui um peso fundamental, sobretudo nestas idades, e normalmente é a família que não vê uma maternidade adolescente como uma possibilidade na vida daquela rapariga.

Claro que também existe a adolescente que quer abortar, claro que existe, se calhar não passou tanto por mim... Mas tem a ver sobretudo com as dificuldades que isso lhe traz ao dia-a-dia concreto, aos objectivos concretos do dia-a-dia, do querer sair com as amigas, do não querer ter essa responsabilidade. Mas não há muita capacidade de amadurecer este tipo de decisão, portanto normalmente a família tem um impacto muito mais preponderante nesta etapa do desenvolvimento do que numa mulher mais adulta.

Nesses casos, falando nomeadamente da pressão da família, pode haver a ideia de que o aborto resolve e o problema desaparece. Mas isso pode não ser assim...
Pode não ser assim.

Acho que a mentalidade é que parece uma resolução, o chamado "desengravidar", isto é, "engravidaste, mas vamos 'resolver' o assunto" e é frequentemente assim que é abordado este assunto. Nem sequer se fala em aborto ou interrupção, ou fala-se quando é estritamente necessário, grande parte das vezes fala-se do assunto e é "aquele" assunto.

Acho que a família, grande parte das vezes acredita que está a fazer o melhor, porque é mesmo devolver à criança aquela infância, é essa a mentalidade. Resta saber se passar por uma experiência como o aborto, ainda que não se tenha a verdadeira consciência daquilo que se está a fazer – porque em termos maturacionais não é possível ter a consciência do que é – resta saber se este impacto, mais tarde, não se vai sentir de outras formas. Na nossa experiência, de alguma forma temos tido, mais tarde, mesmo a nível de sintomas mais somáticos, formas de somatizar o mal-estar. Aparece também, muitas vezes associado a situações de abortos anteriores, porque não foi possível elaborar a nível psíquico a experiência e portanto o corpo acaba por tentar elaborar. 

É a forma que a família tem, muitas vezes, acha que está a devolver a vida àquela adolescente, a vida que tinha, de não ter essa preocupação extra. Mas a nível do desenvolvimento posterior há muitos pontos de interrogação do que isto traz de facto à vida desta jovem. 

E temos algumas histórias de algumas raparigas, que se rebelam contra a família, porque não querem mesmo [abortar]. Quando esta forma de viver, mais virada para si, pode ser vivida, e temos alguns casos assim, de tal protecção de si e do bebé que é seu, que se rebelam contra a família e até se põem em risco, porque no fundo agem em fuga para a frente para se protegerem quando estão a ser mesmo pressionadas e há situações em que fogem de casa porque querem manter a gravidez. Temos alguns casos em que isto aconteceu.

O que é que se diz a uma rapariga com tamanha imaturidade, ou até mais velha, para a encorajar a manter a gravidez?
Se nós pudéssemos falar com uma rapariga nessas circunstâncias, em primeiro lugar ouvi-la. Nestas idades, exactamente por esta insuficiência de maturidade, normalmente não se ouve muito aquilo que a jovem quer.

Ouvi-la, perceber, ouvir de si o que ela valoriza, a vida naquela etapa, que significado atribui a essa gravidez, em que circunstâncias surge e qual é o significado e projecto que ela pode ter, ou não, com esta gravidez.

Isto, claramente, numa primeira abordagem. Depois depende da vontade dela, que ela expressar. Acho que é muito importante falar sobre aquilo que é o aborto. É importante que dentro da maturidade que a pessoa tem, lhe seja explicado aquilo que é o procedimento e o que vai implicar para ela. Isto seria a forma de acolher e informar. 

Em última análise, dizer-lhe que a decisão é sempre acompanhada e que ela não está sozinha, independentemente de poder haver a ideia de que se ela decidir para um lado vai ficar sozinha. Isto tem um peso muito grande, porque a ameaça de ficar sem ninguém pesa muito, em prole de uma coisa tão desafiante e tão difícil que é uma gravidez nestas etapas. 

Por isso mostrar este suporte e dizer que se, de facto, há vontade de prosseguir, há vontade de aceitar esta ajuda, mostrar que não está sozinha e que é possível fazer este caminho.

Uma das coisas que por acaso se tem mostrado muito útil na nossa experiência, para as pessoas que acompanhamos, é tentar que esta jovem fale com alguém que tenha passado por uma situação semelhante. É sempre diferente alguém que passou por uma situação e a vida entretanto encarregou-se de seguir, e há raparigas que seguiram com as suas vidas e passaram alturas de crise e reconstruíram a partir daí, e isto pode ajudar ao sentimento de solidão de que sou a única que passo por uma coisa destas e preciso mesmo de abortar porque a família pressiona, ou não vou ser capaz, portanto sim, muito suporte, informação consoante o grau de maturidade e perceber muito bem, tornar-lhe claro a vontade dela, muitas vezes a vontade está completamente contaminada por aquilo que foi ouvindo. Portanto é preciso perceber, dentro da jovem que é, tentar fazer vir à tona aquilo que ela própria quer. 


Trabalhando neste campo, conhece casos de raparigas que se tenham arrependido de ter os seus bebés?
Eu não conheço. 

E o contrário?
Sim. Algumas daquelas que mais me marcam, em relação a este tema, são as que engravidam mais tarde, pode ser anos depois, e voltam a procurar-nos e o pedido que fazem é "eu só não quero voltar a fazer o que fiz, porque por isso não quero passar outra vez". 

E foram decisões tomadas, às vezes, pelas próprias. Este pedido, que é, "eu não sei como é que vou levar isto para a frente, mas não quero passar por esta situação outra vez. E não é uma nem duas, são bastantes. Depois arranjam outros significados, mas a única coisa que sabem é que não querem passar por aquilo outra vez.

Há uma história que me marca muito. Uma vez fui a uma escola falar sobre a nossa intervenção a nível social e psicológico, gravidez, maternidade... Não tinha a ver com o tópico do aborto. Fui falar a uma turma e no fim, quando estava a sair, houve uma rapariga que se aproximou de mim e que disse que gostava de falar comigo. Fiquei meio atrapalhada, porque não estava a perceber bem o que queria. Ela vinha assim meio de lágrimas nos olhos e disse-me: "Só lhe quero pedir um favor: Que falem disto a mais gente. Porque se eu soubesse o que sei hoje, não tinha feito o que fiz. Se soubesse que havia ajudas, eu não tinha feito o que fiz". 

Que idade é que ela tinha? 
Tinha 17 ou 18, mas tinha feito um aborto com 15/16 anos. 

Isto foi das coisas que mais me marcou, no sentido de perceber que é importante que as pessoas saibam que existe ajuda, ajuda até no sentido de pensar e de ajudar, porque agir em fuga para a frente e tomar decisões precipitadas, que é o que muitas vezes acontece, não constrói nada.

Voltando ao caso da Vanessa, este imprevisto na sua vida acabou por ser um pivot para ela dar a volta por cima. A própria admite que de outra maneira dificilmente se teria “endireitado”. Isso acontece muitas vezes? Pode-se dizer que é regra?
Que é uma oportunidade para isso, não há dúvida. Resta saber como é que é agarrada e com que apoio. Porque, que é muitíssimo desafiante, é. Ainda por cima com as fragilidades da estrutura anterior, agora, não há dúvida – e a Vanessa é um exemplo disso – que de alguma forma é como se a gravidez fosse um travão a si próprio, uma tentativa de ser alguém, esta coisa mesmo da autonomia, do grito, de agarrar na minha vida e fazer alguma coisa. Isto surge, e surge também em mulheres adultas, com vidas mais complicadas e muitas delas falam nisso, mesmo quando decidem depois abortar. 

Tenho várias situações, mesmo de mulheres que acabaram depois por abortar, que têm esta percepção de que "posso fazer alguma coisa diferente com isto".

Para mim, é claramente uma oportunidade e isso é reconhecido por muitas que passam por esta situação, independentemente da crise ou da intensidade da crise que a gravidez inesperada gera. Agora, que depois ela pode ou não ser agarrada e abraçada, e construída como a Vanessa a construiu, isso depende de cada uma e do esforço, do nosso trabalho, daquilo que da nossa parte depende, da família...

Na família a reacção inicial nunca é a reacção final. Nós dizemos muito isto, só que dizer é uma coisa, viver é outra. Viver com o pânico de que a família nos abandone... não há chantagem maior que esta.

Por isso é uma oportunidade, isto tenho claro.

Ainda acontece muito, as famílias dizerem "ou abortas ou sais de casa?"
Sim. Estou no Apoio à Vida há 10 anos e apanhei a mudança da lei. Agora acho que até é mais duro. Agora só não abortas se não quiseres, portanto "quem és tu, para decidir com esta idade, pôr-me este peso em cima" – porque ainda por cima está dependente, estamos a falar de jovens dependentes dos pais. 

Antigamente a família estaria a ser cúmplice de violação da lei, enquanto agora...
Exactamente. A lei está do lado da família que tem muitas dificuldades em ver isto como cenário possível. Portanto a jovem nesse sentido, se quer prosseguir com a gravidez, tem a vida muito mais dificultada.

Vou alargar, jovem e mulher, porque das situações que acompanho é em qualquer idade, quando para quem não quer assumir a responsabilidade, esta lei, se a mulher estiver dentro do prazo das 10 semanas, está desprotegida se quer prosseguir. Está muito desprotegida. 

Portanto sim, acontece e acho que a pressão é mais forte desde a mudança da lei. 

Até porque a nível social isto tem repercussões. Uma vez fui falar a uma escola em que numa turma de vinte e tal alunos não era uma possibilidade prosseguir uma gravidez antes de ter uma vida estabilizada. Isto em termos de mentalidade vai construindo a forma de pensar a vida. Sem dúvida que isto também contamina e as pessoas estão imbuídas desta mentalidade e nesse sentido notamos que a pressão da família é mais severa, e de formas até mais violentas por parte da família e às vezes do pai da criança, porque é só a vontade dela que está em causa. Antes era a lei, mas agora é só a vontade dela.

E nos casos em que não acontece? Em que se vê repetir o ciclo vicioso de famílias desestruturadas, com a probabilidade de a criança crescer na mesma situação… Mesmo aí sente que vale a pena o trabalho que faz?
Eu não tenho dúvida. Mesmo com tudo o que tenho visto - e tenho crescido muito com o trabalho que desenvolvi aqui - porque acho que a nossa visão das coisas é muitas vezes posta à prova, porque crescemos muito e voltamos... Até podemos olhar da mesma forma, mas demos uma grande volta para olhar daquela forma outra vez. 

Eu não tenho dúvida, ainda que a mãe e o bebé não fiquem juntos, e isto é difícil de explicar, mas isto tem a ver também com a forma como... Ou seja, aquela etapa de crescimento, para aquela mulher, são competências adquiridas.

Independentemente da dificuldade que é a retirada do bebé (e não quer dizer que o bebé não volte mais tarde para aquela família), aquela rapariga muitas vezes deu tudo o que tinha e não conseguiu assegurar o que o bebé precisava, isto acontece, e é uma dor enorme acompanhar isto. Porque ela deu tudo, dentro das suas circunstâncias e da sua medida. Mas aquilo que ela deu, e o que cresceu com isso, já não lhe é retirado. E não teria crescido, tendo em conta as circunstâncias, e provavelmente, como a Vanessa dizia, e vemos muitas vezes isso, muitas vezes as vidas vão-se degradando e repetindo ainda mais os modelos disfuncionais, se não há nada de funcional que as puxe. 

Portanto eu acredito, e tenho visto, porque mesmo que às vezes as crianças são criadas pela família alargada, ou a responsabilidade é de um familiar, ou de alguém próximo, e estas raparigas continuam a ter contacto com o filho e muitas vezes o único papel que se sentem dignas de ter é o da maternidade. E isso fá-las quererem ser alguém, para depois dar o exemplo aos filhos. Que pena que seja a única coisa que apele a essa dignidade que elas têm como pessoas, porque não é o única, mas é o que elas sentem – mas que bom que haja uma.

Por isso acredito que a linha não acaba, mesmo quando há um processo de retirada, porque ninguém quer isso e ninguém deseja isso, mas a partir daí também muita história se pode construir. 

Também no caso da Vanessa, o pai da criança é uma pessoa quase totalmente ausente da sua vida, e sempre foi. Que importância tem a presença do pai em todos estes casos?
Na nossa experiência – nesse aspecto temos muito caminho para andar – os pais estão muito ausentes. Daquilo que me parece, estão voluntariamente ausentes, o que me parece uma grande infelicidade, não só para as mães como também para as crianças.

De alguma forma a sociedade contribui para que estejam ausentes. Há-de haver aqui uma dinâmica que promove esta ausência. Obviamente que as circunstâncias em termos sociais, mas em termos de decisões, quando uma mulher quer prosseguir e o homem não quer, assistimos frequentemente a uma desresponsabilização do homem, e a mulher arca com as responsabilidades sozinha. Aqui o pai da criança não é tido nem achado, até hoje, naquilo que toca à decisão de prosseguir com a gravidez. Desresponsabiliza para um lado ou para outro, se um homem se quer responsabilizar também não tem voz activa. Era importante aqui dar a cada um o seu papel. 

Há muito trabalho por fazer e mesmo em termos de sociedade. Da nossa realidade, muitas vezes tentamos envolver os pais nesta perspectiva, e de trabalhar o casal parental não só na atribuição de responsabilidades mas também de gratificações, de os pais poderem assistir ao crescimento dos seus filhos e de se poderem entusiasmar com isso. 

Depende também dos papéis culturais que os homens são chamados a ter como pais, isto também é muito diferente nas diversas culturas. Portanto o que sinto é que daquilo que é a nossa perspectiva, sem dúvida temos que fazer mais para envolver os pais, mas é muito difícil. Se a nível de sociedade pudesse haver uma ajuda talvez os pais se sentissem mais com esta responsabilidade de estar presentes e podia-se fazer aqui qualquer coisa. Assim, sinto que remamos muito sozinhos. Por esta presença do pai, quer quando o bebé está na barriga ou é uma decisão de prosseguir ou não, acho que isto devia ser desde o início, porque é o que faz sentido.

Estamos aqui a falar muito dos efeitos destas decisões sobre as raparigas. E sobre vocês, que as acompanham? Como é que se “protegem”?
Proteger, acho que não dá.

Acho que não dá e acho que não é o que nos é pedido. É óbvio que é importante termos a distância suficiente para sabermos acompanhar melhor as pessoas, e essa distância é sempre uma tensão entre os dois polos, porque não é um equilíbrio estanque e às vezes sobrenvolvemo-nos ou subenvolvemo-nos, mas sem dúvida o que hoje percebo é que para acompanhar pessoas em situação de crise, é importante encontrarem do outro lado uma disponibilidade que lhes permite abrirem-se, e nós temos de trabalhar isso cada uma em si, e acho que isso tem a ver com o caminho pessoal de cada uma, de cada um dos profissionais que lida com as situações, e depois em equipa termos um espaço – e aí acho que temos um ambiente que nos ajuda muito a viver isto, porque vivemos estas situações muito difíceis muitas vezes estamos todas a torcer e partilhamos muito isto, o que é fundamental. Isso é muito importante.

Depois, um caminho pessoal de perceber que se o outro não encontra em mim um lugar de disponibilidade, não vai abrir e não se vai permitir fazer caminho com esta companhia, porque não sente disponibilidade da companhia que encontra. Isso faz toda a diferença, toda a diferença.


Proteger? Acho que não é o que nos é pedido, e é importante isso. Porque os profissionais que trabalham estas áreas têm muito esta lógica da protecção. Uma certa distância é importante, claro, também para as nossas vidas pessoais, e até para as pessoas que acompanhamos... Encontrar lugar na equipa para podermos pôr a nu até as nossas fragilidades a lidar com o assunto, e depois temos o que é só nosso, que temos de fazer sozinhos, querer fazer um caminho de amadurecimento pessoal, para não endurecermos demais o nosso coração e perdermos essa disponibilidade.

Fala sempre no feminino... Não há aqui muitos homens a trabalhar no dia-a-dia, pois não? E isso faz falta?
Faz imensa falta!

Os únicos homens são o presidente e homens bebés... São as únicas presenças masculinas. Fazem imensa falta, porque há uma complementaridade entre homem e mulher que é fundamental. Quando o ambiente é demasiado feminino muitas vezes a subjectividade impera. Do mundo feminino temos a subjectividade e o envolvimento. É sem dúvida uma coisa maravilhosa, mas quando é demais, era importante haver presenças masculinas que temperassem isso. Mas depois, trabalhando com um universo tão feminino, também muito difícil e com questões tão delicadas, temos muito esta questão. É uma altura tão delicada para as mulheres e que tem de ser tratada com tanta delicadeza, que de repente a presença de um homem quando estamos a discutir a amamentação e os mamilos gretados e tudo o mais, de repente não é possível, ou pelo menos deixa as jovens aflitas.

Questões mais práticas... O que fazem aqui neste gabinete? 
Aqui é o gabinete de atendimento externo, que funciona em regime ambulatório. As famílias vêm cá. O que temos aqui é acompanhamento social, psicológico, de inserção profissional, aconselhamento jurídico e intervenção psicossocial em grupo, que é uma das formas de intervenção que sentimos que tem um impacto importante na vida destas mulheres, exactamente por esta experiência de percebermos que esta experiência de outras pessoas que passaram pelo mesmo pode ajudar, então criámos os grupos de mães que se acompanham desde o tempo da gravidez. 

Portanto uma rapariga chega aqui, está grávida e precisa de ajuda: É-lhe perguntado se quer manter o acompanhamento em grupo, é inserida num grupo que está organizado por trimestres de gestação e depois estas mulheres acompanham-se ao longo do tempo da gravidez e maternidade e aquilo a que chamamos a fase de autonomia, em que têm encontros quinzenais ou mensais, no tempo em que os bebés são mais pequeninos, e têm formações muito ao nível daquilo que são as etapas que vão vivendo, têm tempo de conversas de mães, para tirar dúvidas – e aqui nós somos meros facilitadores desta troca de experiências, depois há um tempo de conversa puxa conversa, porque para além de mães são outras coisas e por isso conversamos sobre outros assuntos, e isto tem a ver com a promoção de competências maternas e a promoção da rede de suporte, por isso para criarem ligação entre elas e poderem apoiar e suportar-se nesta fase, e temos experiências muito giras em que de repente uma vai visitar a outra e são elas que nos avisam que nasceu o bebé da não sei quantas, e isto é fundamental, porque há redes tão frágeis, e por redes tão frágeis é que muitas vezes surgem os problemas.

É na tentativa de prevenção de problemas que possam existir, nestas fases delicadas de saber como faço com o meu bebé, porque se não tenho a quem perguntar vou começar a fazer mal.

Quantas mulheres, por alto, é que atendem aqui por ano?
Por ano chegam-nos cerca de 300 a 350 mulheres, seja gravidez e maternidade. Chegam-nos mais ou menos 300 mulheres grávidas novas por ano, ou seja uma primeira vez a pedir ajuda. Com aquelas que vêm do ano anterior, abrange mais ou menos os 350.

Mas vocês não existem só para aquelas mulheres com dúvidas, em crise. Pode haver uma mulher perfeitamente decidida a manter a gravidez, mas que precisa de apoio de qualquer maneira...
Sim, sem dúvida. Acontece-nos mais chegarem esse tipo de situações, infelizmente, do que as mulheres com dúvidas. Esse é o nosso objectivo, chegar mais a quem tem dúvidas, um bocado também em nome do apelo que esta rapariga me fez nesta escola, de fazer chegar esta mensagem de ter um lugar onde se pode pensar o que se quer fazer nesta fase. Há muitas mulheres que passam por aqui e que decidem abortar, e que nos ligam a dizer que abortaram, e a quem apoiamos naquilo que for preciso na mesma. Se for preciso procurar emprego ajudamos a procurar emprego. Queremos é apoiar a mulher ao ponto de sentir que tem os recursos necessários para decidir da melhor maneira possível, porque muitas vezes a falta de liberdade condiciona as decisões. 

Mas se elas dizem que estão decididas a abortar, vocês não as encorajam nesse sentido...
Claro que não. Alertamos para aquilo que é para alertar, mas o objectivo é acompanhar. Claro que não dizemos isso, não é essa a nossa perspectiva, mas tentamos pensar em tudo o que seria possível de organizar para que seja possível prosseguir, porque muitas vezes o desejo lá no fundo é prosseguir, mas parece que as circunstâncias não estão a favor e não permitem, por “N” razões. Portanto tentamos desbloquear aquilo que está a bloquear, e depois a mulher é livre de decidir e obviamente nós estamos cá naquilo que ela precisar, mas não somos incentivadores do aborto, não.

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