Wednesday, 31 August 2022

Rejeitar uma Cultura de Mentiras

Randall Smith

Foi um momento muito revelador. Estava com um amigo, a passear por uma universidade importante. Ele trabalhava no gabinete responsável por gerir os recursos dos diferentes departamentos da instituição. Então eu comentei: “Sabes, tenho estado a pensar. Sei que existem questões morais complexas, como por exemplo o que fazer se temos cinco pessoas, mas o bote salva-vidas só tem lugar para quatro. Mas começo a suspeitar de que a maioria das questões morais do nosso dia-a-dia resolviam-se com a simples aplicação dos dez mandamentos, e que só parecem complicadas porque nos convencemos que nesta ocasião, em particular, seria melhor roubar, ou mentir, ou o que for”.

“Mentir!”, exclamou o meu amigo. “Se ao menos pudéssemos fazer com que as pessoas parassem de mentir. No meu departamento nem conseguimos perceber que recursos temos, porque toda a gente está sempre a mentir, e por isso não podemos tomar decisões fiáveis sobre aquilo de que precisamos”.

Explicou que, por exemplo, uma vez que sabiam que todos os outros departamentos exageravam os seus orçamentos em 20%, ele começou a aplicar cortes em todos os orçamentos nessa mesma medida, presumindo que estavam a mentir. Alguns departamentos começaram a perceber isso, e então passaram a exagerar os seus orçamentos em 25%. O resultado é que agora o departamento dele cortava todos os orçamentos em 25%.

Chega-se a um ponto em que este jogo do gato e do rato se torna tão complexo que já ninguém sabe muito bem a que alvo deve estar a apontar, nem se ainda tem setas na aljava.

Todos nós vivemos situações em que não temos acesso a todos os dados necessários para tomar as decisões que precisam de ser tomadas. Por isso temos de poder confiar na veracidade da informação que nos é dada por outros. Uma atitude seria a clássica de Pôncio Pilatos: “O que é a verdade?”. Existe a tua verdade e a minha verdade. Ou, como dizem alguns pragmáticos, a verdade é algo que serve um fim pragmático.

Mas será que a experiência recente não revela os perigos de permitir que a “verdade” seja subserviente aos fins pragmáticos de alguém?

Mark Twain escreveu que “existem três tipos de mentira. Mentiras, Malditas Mentiras, e Estatísticas”. No nosso tempo sabemos que existem Mentiras, Malditas Mentiras, e Notícias. Veja-se o exemplo recente de Elaine Riddick, uma activista negra pró-vida que foi violada aos 13 anos. Depois do parto foi esterilizada pelo seu médico, contra a sua vontade. Desde então tem lutado pelos direitos das mulheres e dos nascituros. 

Porém, quando o Washington Post escreveu sobre ela, o título que escolheu para o artigo foi: “Sobreviveu a uma Esterilização Forçada. Teme que mais possam ocorrer pós-Roe”. Dito assim, dava a entender que ela era contra a decisão de Dobbs, que reverteu o Roe v. Wade. Mas isso não podia estar mais longe da verdade.

Noutro artigo, no The Pillar, ela afirma: “O Washington Post retratou-me falsamente como sendo pró-escolha, apesar de saber claramente, e de eu ter dito na entrevista, que sou contra o aborto, e pró-vida.” No artigo do Post foi citada a dizer “acredito que uma mulher deve ter controlo sobre o seu corpo”. Mas, de facto, nessa passagem Riddick estava a falar de esterilização forçada, e não de aborto. Que mais podemos chamar a este tipo de “notícia” do que uma mentira total, clara e intencional?

O que é a verdade?
Os grandes órgãos de comunicação têm tratado a verdade com tamanha fluidez, durante tanto tempo, que agora enfrentamos duas situações terríveis.

A primeira é que as pessoas só acreditam nas notícias que se adequam aos seus próprios preconceitos ou narrativas preconcebidas.

A segunda é que algumas pessoas não acreditam nas notícias de todo, mesmo quando elas são verdadeiras.

Porque é que algumas pessoas acreditaram no site InfoWars de Alex Jones, quando este afirmou que o assassinato de vinte crianças e seis adultos na Escola Primária de Sandy Hook era uma farsa, ao ponto de começarem a assediar os pais das crianças assassinadas?

Porque é que algumas pessoas acreditam ainda que o Holocausto não aconteceu? Porque as pessoas acreditam no que querem acreditar, e rejeitam até as provas esmagadoras em contrário. Duzentos livros de história dizem uma coisa? Temos de esperar para ver. Um artigo na internet diz o contrário? Aha! Provas!

A obsessão dos media com a reafirmação das suas próprias narrativas, liberais ou conservadoras, seja de esquerda ou de direita, torna-se um obstáculo à obtenção da informação de que precisam mesmo para tomar decisões prudentes. Grandes empresas de comunicação, sites e pivots de talk-shows estão a ganhar milhares de milhões, aproveitando-se do medo e da revolta.

Como católicos, somos chamados a mais do que isto.

Mas não aceitem apenas a minha palavra. O que acham que Deus nos está a pedir quando diz: “O paciente dá prova de bom senso; quem se arrebata rapidamente manifesta sua loucura” (Pv 14,29) e “Portanto, como eleitos de Deus, santos e queridos, revesti-vos de entranhada misericórdia, de bondade, humildade, doçura, paciência”? (Col 3,12).

Mas devemos ser pacientes com o mal em nosso redor? Bom, Deus diz o seguinte: “Em silêncio, abandona-te ao Senhor, põe tua esperança nele. Não invejes o que prospera em suas empresas, e leva a bom termo seus maus desígnios” (Salmo 37,7). E, por fim, há isto: “Por isso, renunciai à mentira. Fale cada um a seu próximo a verdade, pois somos membros uns dos outros” (Ef 4,25).

Não vejo que possamos levar tudo isto a sério e continuarmos a deixar-nos consumir pelas obsessões dos média, redes sociais e as hordas do Twitter. Mais da mesma informação, das mesmas fontes tendenciosas, não nos vai dar aquilo de que precisamos. Aquilo de que precisamos é de mentes calmas à procura de toda a verdade, e não de buscas revoltadas por justificações para a nossa própria revolta moralista.

Estaríamos mais bem servidos se vivêssemos vidas que proclamam, não que “a verdade é o que a minha fonte de notícias diz que é”, mas sim “a verdade é a submissão humilde e paciente da mente à realidade”.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 24 de Agosto de 2022)

© 2022 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Wednesday, 24 August 2022

Mártir "in Odium Fidei"

Elizabeth A. Mitchell

Agosto é um mês de mártires. São Lourenço, São Bartolomeu, São João Baptista, São Sisto II e companheiros, Santos Ponciano e Hipólito, São Maximiliano Kolbe, Santa Edith Stein. O poder do martírio é sublinhado no Catecismo da Igreja Católica: “O martírio é o supremo testemunho dado em favor da verdade da fé; designa um testemunho que vai até à morte.”

O padre Steven Payne, O.C.D., que é presidente do Instituto Carmelita da América do Norte, escreveu, referindo-se a Edith Stein, que o testemunho do mártire é “o último capítulo que deve ser vivido, escrito, falado com o seu sangue”.

A questão do martírio de Edith Stein pela Fé Católica é essencial para compreender o testemunho dos que foram mortos por regimes autoritários, a quem São João Paulo II chamou “os novos mártires”. Apesar de a Causa de Canonização de Edith Stein ter começado por se basear apenas nas suas virtudes heroicas de fé, esperança e caridade, surgiram depois outras provas, nas primeiras fases do processo, que comprovam que Stein foi morta in odium fidei, por ódio à fé. A sua causa foi então reaberta como uma Causa de Martírio.

Porque é que Stein merece reconhecimento especial por uma morte que sofreram tantos milhões de judeus? O que é que faz da sua morte uma causa de santidade, comprovada num processo canónico da Igreja Católica? A resposta está nos motivos que levaram ao martírio de Stein.

O Positio super martyrio et super virtutibus canonizationis servae Dei Teresiae Benedictae a Cruce, que documenta o martírio de Stein, revela que embora a causa “informal” do martírio de Stein se “apresente como a união fundamental do ódio dos nacional-socialistas contra o Catolicismo e o Judaísmo”, a “causa formal e imediata da deportação e consequente homicídio dos judeus católicos na Holanda foi a vontade de castigar a Igreja Católica pelo seu protesto, e por isso tratou-se de odium fidei e não de ódio racial”.

A distinção entre a causa formal e informal de morte de Edith Stein é fundamental. Ela morreu por ódio à fé, uma qualificação necessária para ser considerada mártire católica.

No domingo, 26 de julho de 1942, foi lida de todos os púlpitos de igrejas católicas na Holanda uma carta pastoral a condenar a deportação dos judeus, num acto coordenado de resistência da Igreja Católica da Holanda. A carta é um protesto claro e directo contra as medidas antissemíticas em vigor na altura.

As comunidades eclesiais da Holanda, abaixo assinadas, estão profundamente abaladas pelas medidas levadas a cabo contra os judeus na Holanda, que os excluíram da participação na vida normal da sociedade, e foi com horror que soubemos das mais recentes ordens segundo as quais homens, mulheres, crianças e famílias inteiras devem ser deportadas para o território do Reich Alemão.

A retaliação nazi contra este desafio da Igreja Católica da Holanda foi rápida e letal. No dia 2 de Agosto foi foram arrebanhados judeus, com destaque para os que se tinham convertido ao catolicismo. Entre os que foram detidos estavam Stein e a sua irmã Rosa.

Todos os membros não-arianos de todas as comunidades religiosas holandesas foram detidos e levados. Em Echt ninguém sabia o que estava prestes a acontecer. Às cinco da tarde as irmãs tinham-se reunido no coro para meditação. A irmã Benedita estava a ler o ponto para a meditação quando se ouviu tocar duas vezes à porta. Estavam dois oficiais a perguntar pela irmã Stein.

A disponibilidade de Stein para o martírio, e a sua união interna com Cristo ao dar a vida por Ele são mais elementos críticos para o reconhecimento de Stein como mártir da fé católica.

Em 1933 ela tinha escrito uma carta tocante a Sua Santidade o Papa Pio XI, avisando que o silêncio perante a perseguição dos judeus pelo Nacional Socialismo abriria caminho para futura perseguição da fé cristã.

Depois da Noite de Cristal de 1938 Stein foi transferida de Colónia, na Alemanha, para o Carmelo em Echt, na Holanda. Quando foi chamada à sede da Gestapo em Maastricht, para ser interrogada, entrou na esquadra e saudou os oficiais presentes com a corajosa proclamação: “Louvado seja Jesus Cristo”.

A biógrafa irmã Teresia Renata Posselt O.C.D. recorda: “Admirados com esta saudação os oficiais olharam para cima, mas não responderam. Mais tarde Stein explicou à reverenda madre que se tinha sentido impelida a agir daquele modo – sabendo perfeitamente que era uma imprudência, do ponto de vista humano – porque entendia claramente que esta não era uma mera questão política, mas parte do combate eterno entre Jesus e Lúcifer.”

Detida no dia 2 de Agosto, de 1942, durante a retaliação nazi contra os fiéis católicos na Holanda, Stein foi transportada para uma série de campos de detenção, até chegar a Auschwitz. Quando a carruagem em que ela viajava chegou à estação de Schifferstadt, Stein enviou uma mensagem da plataforma para as freiras do Convento Dominicano de Santa Madalena, ali perto, em Sprayer. A sua mensagem revelou-se profética: “Grüβe von Sr. Teresia Benedicta a Cruce.  Unterwegs ad orientem”. “Saudações da Irmã Teresa Benedita da Cruz. Rumamos para Oriente”.

Estas corajosas palavras, “Rumamos para Oriente”, poderiam ter sido proferidas por cada um dos augustos mártires. São João Baptista prepara o caminho para a Ressurreição e a Vida. São Maximiliano Kolbe dá a vida por outro, no lugar de Cristo. O Sangue dos mártires papais é a semente da Igreja.

Por entre a escuridão do mal aparentemente omnipresente e omnipotente, estes santo testemunhos proclamam a Verdade, cada um no seu tempo. Com eles, também nós podemos dar a cara por Cristo no nosso tempo, oferecendo as nossas vidas in testimonium fidei.


(Publicado pela primeira vez no Domingo, 14 de Agosto de 2022 em The Catholic Thing)

Elizabeth A. Mitchell, é doutorada em Comunicação Social Institucional pela Universidade Pontifícia da Santa Cruz, em Roma, Itália, onde trabalhou como tradutora para a Sala de Imprensa da Santa Sé e para o L’Osservatore Romano. É decana dos alunos na Trinity Academy, um colégio católico privado no Wisconson. A sua tese “Artist and Image: Artistic Creativity and Personal Formation in the Thought of Edith Stein,” trata o papel da beleza na evangelização pela perspetiva de santa Edith Stein. Mitchell faz ainda parte da direção do Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe em La Crosse, Wisconsin, e é conselheira do Centro Internacional St. Gianna e Pietro Molla para a Família e para a Vida.

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Wednesday, 17 August 2022

No Centenário da Vocação da Madre Teresa

Ines A. Marzaku

Em muitos países, para além de procissões coloridas, festivais e fogo de artifício para assinalar a solenidade da Assunção de Nossa Senhora – ou Dormição – existe também a antiga tradição de benzer a colheita do verão, e agradecer a Deus a sua abundância. Na Alemanha a bênção das especiarias aponta especificamente para a abundância que Maria produziu e recebeu em Cristo. Como Isaías tinha profetizado: “Um renovo sairá do tronco de Jessé, e um rebento brotará de suas raízes” (Isaías 11,1).

Maria foi a primeira discípula de Jesus, a serva do Senhor (Lucas 1,38), e depois de Maria brotou uma abundância de discípulos – incluindo madre Teresa de Calcutá, que tinha com Nossa Senhora uma ligação muito especial. A sua vocação religiosa, que recebeu neste dia* há precisamente 100 anos, na Solenidade da Assunção, foi um dom especial de Maria e provou ser muito fecundo.

Na tarde de 15 de Agosto de 1922, quando Gonxhe Bojaxhiu (o seu nome civil) estava em oração profunda, ajoelhada diante da imagem de Nossa Senhora com o Menino Jesus, a menina de 12 anos sentiu pela primeira vez que o Senhor a chamava de forma especial. Ela devia ser consagrada a Ele. Foi por isso em Letnicë, perto de Skopje, enquanto rezava ferverosamente no santuário de Nossa Senhora, que começou a caminhada religiosa da futura Santa Madre Teresa.

As famílias católicas de Skopje, em que se incluíam os Bojaxhius, tinham uma devoção especial a Nossa Senhora de Letnicë, no Kosovo. Em Agosto, durante a celebração da Solenidade da Assunção, os Bojaxhius faziam a sua peregrinação anual ao Santuário de Nossa Senhora de Letnicë, uma imponente igreja caiada, num lugarejo entre as montanhas. Os peregrinos caminhavam a pé, em grupos, rezando e cantando pelo caminho.

Segundo a tradição local, a imagem da Virgem Negra de Letnicë, que tem 700 anos, viajou miraculosamente de Skopje (onde nasceu a Madre Teresa), atravessou as montanhas Karadak e chegou à igreja de Letnicë. A lenda diz que a imagem foi encontrada por residentes locais, escondida debaixo de uma grande árvore, e assim foi salva de ser profanada pelos muçulmanos.

Tal era a veneração à Virgem Negra que ninguém – nem mesmo os muçulmanos que governaram o país durante quase 500 anos – podia tocá-la ou retirar as ofertas que as pessoas lhe levavam ao santuário.

Nossa Senhora apareceu três vezes em Letnicë, pedindo aos fiéis que construíssem um santuário. Ortodoxos, muçulmanos, sérvios, croatas, albaneses e ciganos, todos veneraram a Virgem Negra de Letnicë ao longo dos séculos, e o santuário continua a ser uma ponte e um local de união, encontro e diálogo entre pessoas de diferentes etnias e religiões.

A Virgem Negra de Letnicë é a única do género nos Balcãs, embora existam mais de 450 Virgens Negras que são veneradas em igrejas em França, na Croácia, Eslovénia, Áustria, Polónia, Equador, Lituânia e Espanha, entre outros.

A devoção de Gonxhe por Nossa Senhora era profunda. Ainda criança, em Skopje, tornou-se membro da Congregação de Maria, um grupo de jovens da sua paróquia, criada por jesuítas croatas e inspirado na devoção ao Sagrado Coração de Jesus. O grupo encorajava os membros a seguirem o exemplo de Nossa Senhora nas suas vidas. Isso implicava confiança e construção de carácter, firmeza, humildade e oração, fidelidade inquestionável e nunca fugir às dificuldades – seguir nas pegadas de Maria, que se manteve firme junto à Cruz do seu Filho, no Calvário.

Teresa e a sua irmã Aga
Ela voltava-se continuamente para Maria, com grande amor e afecto, como uma criança para a sua mãe. Entrou para a ordem irlandesa das Irmãs de Nossa Senhora do Loreto, ou Irmãs do Loreto, em memória da vila de Loreto, em Itália, para onde, segundo a tradição, a Casa da Sagrada Família, em Nazaré, foi carregada por anjos através do Mediterrâneo, da Palestina para a Dalmácia, e depois através do Mar Adriático para Loreto.

Mais, a Gonxhe tomou como nome religioso Irmã Maria Teresa do Menino Jesus, em honra de Santa Teresa de Lisieux; toda a vida ela foi comprometida com uma intimidade espiritual com Maria, coração voltado para ela, e vida orientada para ela.

O espírito de Maria, e o seu Imaculado Coração, tornar-se-iam o coração e o espírito da Sociedade das Missionárias da Caridade, a ordem fundada por Madre Teresa. Muitos dos que conhecem e admiram a Madre Teresa conhecem já o seu trabalho na Índia, mas na raiz do seu compromisso com os mais pobres dos pobres, e com os moribundos, está a sua relação com Maria, que começou nas periferias dos Balcãs.

O lema de Madre Teresa “Seja só tudo por Jesus, através de Maria”, estava dividido em três sucessivos estados de alma: confiança amorosa, entrega amorosa, ânimo amoroso. Encarava estes três estados espirituais como uma extensão e participação no Espírito de Nossa Senhora. “Ame-a como Ele a amou; sê causa de alegria para ela como Ele foi; fique próximo dela como Ele ficou; partilhe tudo com ela, mesmo a Cruz, como Ele fez quando ela permaneceu junto da Cruz no Calvário”, escreveu Madre Teresa na Regra das Irmãs da Caridade, mais tarde.

Nesta Solenidade da Assunção é justo que honremos a Santíssima Mãe, reconhecendo o seu amor vivificante por Jesus e a forma como cuida hoje de nós. Que a sua intercessão e exemplo de amor fiel continuem a inspirar vocações como a de St. Madre Teresa, da qual Nossa Senhora foi mediadora há um século.

*Artigo publicado inicialmente no dia 15 de Agosto


Ines A. Murzaku é professora de Religião na Universidade de Seton Hall. Tem artigos publicados em vários artigos e livros. O mais recente é Monasticism in Eastern Europe and the Former Soviet Republics. Colaborou com vários órgãos de informação, incluindo a Radio Tirana (Albânia) durante a Guerra Fria; a Rádio Vaticano e a EWTN em Roma durante as revoltas na Europa de Leste dos anos 90, a Voice of America e a Relevant Radio, nos EUA.

(Publicado pela primeira vez na Segunda-feira, 15 de Agosto de 2022 em The Catholic Thing)

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Wednesday, 10 August 2022

Pessoas vs. Seres Humanos

Randall Smith

Uma das defesas mais comuns do aborto é de que o feto em desenvolvimento no útero da sua mãe, embora seja claramente um “ser humano” – e não um peixe, ou um reptil, como o ADN e os cromossomas claramente demonstram – ainda não é uma “pessoa”. Neste contexto o termo “pessoa” identifica uma certa classe de seres humanos que julgámos merecedores da nossa protecção e preocupação moral, por oposição àqueles outros que decidimos que não o são.

Neste contexto o termo “pessoa” delimita uma fronteira crucial – a fronteira entre “nós” (aqueles com a dignidade e o estatuto que o termo implica e concede) e “eles” (aqueles a quem esse estatuto deve ser negado).

Se o pensamento pós-moderno nos ensinou alguma coisa, foi a encarar estes jogos linguísticos com desconfiança. Esta dicotomia entre “pessoa” e “ser humano” não é precisamente o tipo de coisa que o pós-modernismo se orgulha em desconstruir, uma vez que as dicotomias, como “negro” e “branco”, “homem” e “mulher”, “cidadão” e “estrangeiro” são usados para fragilizar e marginalizar certos grupos?

Não aprendemos com a teoria pós-moderna que todas as dicotomias são expressões de poder do forte sobre o fraco, do rico sobre o pobre, das classes altas sobre todos aqueles que elas querem manter sem poder e invisíveis?

Considere, por exemplo, esta descrição do filósofo Peter Singer, de Princeton, sobre porque é que pais que descobrem que o seu filho por nascer tem trissomia 21 poderão querer abortá-lo:

Ter um filho com trissomia 21 é uma experiência muito diferente de ter um filho normal [sic]… Não podemos esperar que uma criança com trissomia toque viola, que desenvolva uma apreciação por ficção científica, aprenda uma língua estrangeira, converse connosco sobre o mais recente filme do Woody Allen ou que seja um atleta respeitável de basquete ou de ténis.

O que é isto se não a descrição de um aluno rico e talentoso, de uma universidade de elite? Porque é que o Singer não diz simplesmente que não levaríamos uma criança trissómica para o clube de campo? Talvez não, mas há uns anos seria igualmente embaraçoso aparecer no clube de campo com um judeu ou um negro.

O filósofo John O’Callaghan, pai de uma criança com trissomia 21, comentou as palavras de Singer:

De facto, Singer está enganado sobre as capacidades de seres humanos com Trissomia 21, pois muitos conseguem desempenhar essas actividades. Só quem vive na ignorância geral sobre as vidas de pessoas com trissomia 21 é que pensaria o contrário. E podemos perguntar porque razão tantas pessoas na nossa sociedade são tão ignorantes sobre estas vidas que não fazem mais do que acenar em concordância quando ouvem tais afirmações. Porque é que os feitos de pessoas com trissomia 21 são dignos de notícia? Francamente, é porque já os excluímos da comunidade de preocupação moral com quem nos relacionamos nas nossas vidas.

Quando as pessoas dizem de um bebé abortado: “Bem, sabes, ele tinha trissomia”, não é exactamente o mesmo que dizer de um assassinado: “Bom, sabes, ele era um imigrante ilegal”? O que pensaria de alguém que respondesse à questão “Ouviste que o Presidente Roosevelt recusou um navio cheio de pessoas que fugiam da tirania nazi?” com a afirmação “Sim, mas as pessoas têm de perceber que os passageiros eram judeus”?

Ser humano e pessoa, como todos nós
Será assim tão diferente de responder à pergunta: “Já sabes que a Sally perdeu o bebé?” com, “Sim, mas era só um feto”. Pergunte a mulheres que sofreram a dor de um desmancho quão pouca empatia sentiram por causa da maliciosa distinção que se faz entre o seu filho por nascer e um bebé “verdadeiro”.

Como é que se explica que turbas de polícias linguísticos, sensíveis a cada “micro-agressão” oral não compreendem que afirmar que um bebé no útero “não é uma pessoa”, ou que um bebé indesejado “não é uma pessoa”, ou que uma idosa com demência “não é aquela pessoa que eu conhecia e amava” é igual a apontar a um homem hispânico e perguntar “será que ele é legal?”. Ou então comentar uma candidata a professora universitária perguntando, “É uma mulher? Será que pensa engravidar?”. 

Quem é que a distinção entre “pessoa” e “ser humano” favorece? A criança indefesa e invisível? Ou os poderosos capitalistas que querem que as mulheres dêem prioridade ao trabalho e que sintam que é do trabalho numa economia de mercado, e não da parentalidade, que derivam o valor e o sentido das suas vidas? (Uma inversão de valores que foi alcançada há décadas, juntamente com os homens, em lamentável detrimento da família).

Como é que se explica que académicos que se orgulham da sua sensibilidade em tais questões não conseguem reconhecer que esta utilização do termo “pessoa” é precisamente o tipo de agressão linguística a que se oporiam em qualquer outra área? Talvez seja porque este termo, ao contrário de outros, serve para valorizar a sua própria classe, de pessoas como elas, pessoas que valorizam e apreciam coisas como a ficção científica, aprender uma língua estrangeira, conversar sobre filmes do Woody Allen e jogar ténis para se manter em forma?

Não é verdade que todos os que são beneficiados pela linguagem negam que é isso que está a acontecer? “São apenas palavras comuns”, dizem. A questão é que essas “palavras comuns” expressam a fragilização em curso de uma parte da sociedade.

Então, pergunto, “pessoa” vs. “ser humano”: não é exactamente o tipo de categoria socialmente construída de “nós” (aqueles que importam) contra “eles” (os que não interessam) que deve ser desconstruída e eliminada? Enquanto existir qualquer tipo de obstáculo que simples “seres humanos” têm de ultrapassar para serem incluídos na comunidade de “pessoas”, haverá sempre seres humanos vivos que ficam aquém.

Ao longo da história, sempre que distinguimos entre o que podemos chamar “seres humanos plenos” (“pessoas”) de outros que supostamente não são bem humanos (como judeus, africanos negros e bárbaros, por exemplo), cometemos mais do que um erro. Cometemos um dos piores erros que nós, enquanto pessoas supostamente sensíveis, razoáveis e “civilizadas”, podíamos cometer. Talvez seja hora de parar de o fazer.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 9 de Agosto de 2022)

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Wednesday, 3 August 2022

Marta, Maria, Lázaro e o Amor de Jesus

Pe. Thomas G. Weinandy
Há muitos anos que penso que a solenidade de Santa Marta deveria incluir toda a sua família – Marta, Maria e Lázaro. Por isso foi com agrado que vi o Papa Francisco criar, em 2021, uma solenidade que honra os três. Eles são um exemplo de uma “família” de amor uns pelos outros e por Jesus, bem como do amor de Jesus por eles, em particular por Lázaro. Contudo, este trio também tem algo de misterioso.

São os três adultos, mas nenhum é casado – algo raro tendo em conta a cultura judaica do seu tempo. Em Lucas, Marta aparece sempre como a chefe de família. Lucas refere-se a Marta como acolhendo Jesus na “sua casa”, enquanto Maria é representada como a irmã contemplativa.

Lucas não menciona Lázaro. Porém, no Evangelho de João, quando as irmãs informam Jesus da doença de Lázaro referem-se a ele apenas como “aquele que tu amas”, presumindo que Jesus saberia logo de quem falam. João também diz “Jesus amava Marta, e a sua irmã, e Lázaro”. Eis o mistério. Porque é que duas irmãs e um irmão viveriam juntos, e porque é que Jesus teria um amor especial por Lázaro?

Há quem especule que Lázaro pudesse ter uma doença degenerativa, e que por causa disso ele estava ao cuidado das suas duas irmãs, o que poderá também ter levado a que Jesus sentisse por ele uma afeição especial. Assim, Jesus declara imediatamente que a sua doença não é para a morte, mas para a glória de Deus e do seu Filho. Não será apenas Jesus a ser glorificado com este evento, Marta e Maria também serão.

Quando Jesus chegou, soube que Lázaro estava no túmulo há já quatro dias. Marta, sempre igual a si mesma, saiu ao encontro de Jesus enquanto que Maria, na mesma medida, permaneceu em casa.

Marta diz que se Jesus estivesse presente, o seu irmão não teria morrido, mas que tudo o que Jesus pedir a Deus, Ele concederá. Em resposta Jesus declara a Marta: “Eu sou a Ressurreição e a Vida. Quem crê em mim, mesmo que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim não morrerá para sempre. Crês nisto?” (Jo 11, 25-26)

Este é o momento de glória de Marta. O Evangelho de João não narra a proclamação de fé de Pedro, de que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus vivo. Aqui é Marta quem tem a honra de ecoar a declaração de Pedro: “Sim, Senhor, eu acredito que tu és o Cristo, o Filho de Deus”. Para Marta, Jesus é o “Senhor” divino, porque é filho encarnado do Pai, ungido pelo Espírito.

Marta é glorificada na sua profissão de fé; Maria é glorificada no seu amor. Quando Jesus viu Maria a seus pés, chorando amorosamente a morte de Lázaro, Jesus “comoveu-se profundamente”. Perguntou onde é que Lázaro estava sepultado. No túmulo, também Jesus chorou por amor e alguns dos judeus comentaram quanto ele o amava.

Assim, apercebemo-nos do amor que liga Marta, Maria e Lázaro a Jesus, e o amor de Jesus que O liga a eles. Vemos também que o amor de Marta e de Maria estava repleto de fé em Jesus, enquanto Filho do Pai.

Neste contexto de amor e de fé, Jesus ordena que a pedra seja removida do túmulo de Lázaro. Então clama em alta voz: “Lázaro, vem cá para for!”. Quando Lázaro sai do túmulo, Jesus diz-lhes para lhe retirarem as ligaduras e deixarem-no ir. Podemos presumir que Marta foi a primeira a desligar e a libertar Lázaro.  

Ao ressuscitar Lázaro dos mortos, Jesus manifesta que é verdadeiramente a ressurreição e a vida. E aqueles que crêem nele como Filho do Pai, ainda que morram, viverão.

Ainda que Jesus tenha ressuscitado Lázaro dos mortos, e assim o possa ter curado da sua anterior doença, esta não foi uma ressurreição gloriosa da morte – ele tornaria a morrer. Jesus apenas se torna a ressurreição e a vida quando ele mesmo morre e é gloriosamente ressuscitado de entre os mortos. Então, e só então, é que ele se torna capaz de ressuscitar gloriosamente de entre os mortos todos os que têm fé nele e, assim, habitam em amor nele.

Interessante e significativamente, João narra que, seis dias antes da Páscoa as duas irmãs e Lázaro convidam Jesus para uma refeição – uma refeição eucarística, em acção de graças por aquilo que Jesus fez ao ressuscitar Lázaro de entre os mortos. Claro que foi Marta quem serviu, e Lázaro estava entre os convidados.

Depois, “Maria ungiu os pés de Jesus com uma libra de perfume de nardo puro, de alto preço, e enxugou-lhos com os seus cabelos. A casa encheu-se com a fragrância do perfume”. Maria, aquela que ama, manifesta, de forma sensual, o seu amor por Jesus ao derramar o seu dom mais precioso, um dom que simboliza a dádiva de si mesma. Em resposta a Judas Iscariote, que lamentou o desperdício, Jesus afirma que Maria o estava a preparar para o enterro – para a sua passagem da morte para a vida, em que ele se tornaria a ressurreição e a vida.

Nesta recriação simbólica da Eucaristia reconhecemos que tal como Jesus se oferece completamente a nós na Eucaristia, com o seu Corpo Ressuscitado e Oferecido e o seu Sangue Ressuscitado e Oferecido, assim também nós, na mesma Eucaristia, devemos dar-lhe, em amor, o nosso dom mais precioso, o dom de nós mesmos.

Nesta vivência mútua entre nós e Jesus a fragrância do amor deve encher as nossas igrejas e chegar aos Céus. Mais, podemos ter a certeza de que quando Ele regressar em Glória, no fim dos tempos, Jesus chamar-nos-á a cada um pelo nome, e ascenderemos em glória para o banquete celeste – para a presença do Pai celeste com todos os santos e anjos.

Então, o amor que existia na família de Marta, Maria e Lázaro – bem como o seu amor por Jesus e o amor de Jesus por eles – encontrará a sua plenitude universal, pois Jesus será a plena ressurreição para a vida eterna.


Thomas G. Weinandy, OFM, um autor prolífico e um dos mais conhecidos teólogos vivos, faz parte da Comissão Teológica Internacional do Vaticano. O seu mais recente livro é Jesus Becoming Jesus: A Theological Interpretation of the Synoptic Gospels.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Sexta-feira, 29 de Julho de 2022)

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Tuesday, 2 August 2022

Patriarcado de Lisboa sem direito a Silly Season

Costuma-se dizer que os meses de Verão são “silly season”, em que há escassez de notícias “sérias”. No que diz respeito à Igreja, isso não tem correspondido à verdade.

Em Portugal tem reinado o tema dos abusos sexuais. A acrescentar aos dois casos de que falei no último mail, ressurgiu um caso que radica dos anos 90 e que colocou o Patriarca sob alguma pressão, por não ter comunicado o caso às autoridades.

Estes três casos levantam algumas questões, que abordei neste artigo, deixando também algumas pistas com o objectivo de contribuir para o esclarecimento e melhor abordagem da questão em Portugal.

Hoje publiquei outro artigo no blog, em que analiso um pouco não o artigo que deu origem à mais recente polémica, mas sim a campanha que tem sido feita em torno do Patriarca que parece ter como objectivo pressioná-lo a demitir-se. A meu ver é uma campanha injusta e em nada beneficiaria as vítimas ou a melhoria da situação.

Entretanto tivemos hoje nova polémica, com o Patriarcado a informar que um padre foi suspenso depois de ter sido acusado de violação de uma mulher, maior de idade. A existência e o conteúdo do comunicado parecem indicar que o Patriarcado está a aprender com erros do passado e a apostar numa maior transparência.

E enquanto tudo isto se passava em Portugal, o Papa Francisco esteve no Canadá numa visita que marca uma nova etapa na relação da Igreja com abusos de toda a natureza que foram cometidos contra pessoas vulneráveis. Uma viagem que constitui um “passo fundamental rumo à reconciliação”, diz um bispo canadiano.

Tendo estado num campo de férias a semana toda, não pude acompanhar a viagem como gostaria, mas recomendo este resumo feito pela sempre brilhante Aura Miguel, na Renascença.

Deixo-vos com os dois artigos do The Catholic Thing que foram publicados desde o meu último mail. O do Pe. Jay Scott Newman é uma resposta a um artigo anterior, que também publiquei no blog. Esse artigo argumentava que sendo bom, claro, o conhecimento das escrituras não é essencial para a vida de um cristão. Newman contrapõe que “quem ignora as Escrituras ignora a Cristo”.

O artigo da semana passada é de David Bonagura, que argumenta que neste momento da vida americana, em que o aborto deixou de ser um direito constitucional, é fundamental o movimento pro-vida demonstrar que não defende que as mulheres – que são sempre vítimas também – sejam julgadas e eventualmente encarceradas por abortar. Vale bem a pena ler.

O Hospital de Campanha está de férias, e volta em Setembro, se Deus quiser, mas podem ouvir episódios antigos aqui.

Monday, 1 August 2022

Ao serviço da verdade ou à procura de escalpos?

O Patriarca de Lisboa está sob grande pressão, por não ter comunicado um caso de abuso de menores às autoridades. É um caso que levanta algumas questões, que já referi aqui.

Contudo, queria escrever um pouco sobre esta campanha que se tem gerado em torno do Patriarca, com muitos a pedir a sua demissão.

A razão pela qual não o fiz mais cedo é porque estive a semana toda num campo de férias católico, a supervisionar uma equipa de 20 animadores que estavam a entreter 60 crianças. E julgo pertinente dizer que todos esses 20 animadores foram obrigados, por ordem do Patriarca de Lisboa, a assistir a uma formação de várias horas sobre protecção de menores. O mesmo se aplicou a todos os animadores de todos os campos de férias católicos no Patriarcado, pelo menos. Desconheço se aconteceu noutras dioceses.

Este é apenas um exemplo, mas é revelador da seriedade com que o Patriarca tem tratado este assunto desde que assumiu funções. Lisboa foi a primeira diocese em Portugal a ter uma Comissão de Protecção de Menores e sabemos que já houve denúncias que estão a ser tratadas. Eu tenho sido crítico sobre alguns aspectos sobretudo ao nível da comunicação e transparência, e sei bem que muita coisa ao longo dos últimos anos tem sido mal feita, mas a questão é que temos no Sr. D. Manuel Clemente uma figura empenhada em melhorar e em tornar a igreja um local mais seguro para as crianças. Não nos podemos esquecer que o encontro entre o Patriarca e a vítima apenas aconteceu porque ele a pediu e, depois de um primeiro adiamento, insistiu nela, precisamente para poder escutar a vítima e ver como podia ajudar no seu caso particular.

O que dizer, então, sobre a reportagem do Observador, que espoletou tudo isto? Há duas vertentes importantes. Primeiro a reportagem. Sobre a reportagem em si, nada a criticar. É um trabalho profissional, que revela um caso que, respeitando ou não as normas da altura, foi mal resolvido. Nesse sentido é uma notícia, e penso que o Observador a tratou bem. Se no artigo ficaram coisas mal explicadas a culpa é em parte do próprio patriarcado, que não terá respondido de forma esclarecedora ao jornalista e depois veio tentar remediar a decisão com comunicados e cartas abertas.

Outra coisa diferente é a campanha que o Observador tem feito em torno da questão, e aí penso que merece críticas. A ideia com que fico – e posso estar a ser injusto – é que o Observador está novamente a tentar armar-se em Boston Globe e a tentar obter um escalpo como troféu.

Já tínhamos visto esta aspiração do Observador aquando da sua série de reportagens sobre abusos, há alguns anos. Na altura fizeram uma campanha extensíssima, a pedir testemunhos em todas as notícias que publicavam, a filmar reuniões de redacção e a apelar a denúncias. O resultado foram várias reportagens extensas e aprofundadas, mas sobre casos já conhecidos, e um caso novo. Pouca coisa para a fanfarra toda.

Agora vemos mais do mesmo. Uma notícia boa, mas depois vendida e explorada de uma forma que trai a própria seriedade do conteúdo.

No meio de tudo isto perde-se o essencial. O importante aqui, como em tudo, é zelar pelo bem das vítimas e evitar, na medida do possível, novos casos. Neste momento parece-me que a demissão do Patriarca – um homem que sempre se mostrou preocupado com este assunto e que, mesmo cometendo erros, tem contribuído muito para colocar as vítimas em primeiro lugar – em nada contribui para o bem das vítimas e o combate ao problema dos abusos em Portugal.

Padre afastado por alegada violação

Actualização

Ao final do dia de segunda-feira a TVI transmitiu uma reportagem em que entrevistou a alegada vítima da violação e identificou o padre em questão. Tendo visto a reportagem fico com dúvidas de que o Patriarcado tenha feito o comunicado apenas por uma questão de transparência, como cheguei a indicar no texto inicial, parecendo antes que continua a prática de apenas lançar comunicados quando sabe que as notícias estão prestes a sair nos meios de comunicação. A alternativa é que a TVI soube do caso pelo comunicado e no próprio dia conseguiu identificar o padre e a vítima e entrevistá-la a tempo do jornal das 20h, o que me parece muito pouco provavel. 


O Patriarcado de Lisboa informa esta segunda-feira que um padre da diocese foi suspenso de actividade por suspeita de violação, e que o caso está entregue às autoridades. 

O comunicado do Patriarcado está aqui.

O caso não envolve um menor de idade, e por isso não é da competência da comissão para a protecção de menores. 

A Renascença diz ter apurado que o caso é de Julho, que a vítima é uma mulher e que os dois se conheciam há vários anos, desde antes da ordenação do sacerdote. 

No meu texto publicado aqui no final da semana passada referi que existia mais uma denúncia na Comissão de Lisboa, mas que não tinha sido tornada pública. Poderá ser este o caso e que, verificando-se que não se tratava de um/a menor de idade, se tenha concluído não ser do âmbito da comissão? Se não for o mesmo caso, então porque razão, mais uma vez, é que este teve direito a um comunicado e o outro não?

Pessoalmente, e sem outras informações, parece-me que serão casos diferentes. Segundo a RR o caso ocorreu em julho e na Carta Aberta do Patriarca lê-se que o tal segundo caso está entregue ao Dicastério da Doutrina da Fé, e que mal haja um desfecho será comunicado. Ora, se o caso foi em Julho acho muito pouco provavel que já tenha ido a Roma e vindo uma resposta em tão pouco tempo. 

Independentemente da resposta a estas perguntas, creio que o Patriarcado fez bem em lançar este comunicado, promovendo a transparência. Veremos se haverá desenvolvimentos.  

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