Thursday, 30 November 2023

O caso do castigo ao Cardeal Burke

Tem circulado esta semana a informação de que o Papa Francisco pretende castigar o Cardeal Raymond Leo Burke, retirando-lhe o apartamento onde vive no Vaticano, e o seu estipêndio. A razão por detrás do castigo será o facto de o Cardeal Burke ser um instigador de desunião na Igreja.

Existem diferentes versões do que se terá passado, que analisarei adiante. Mas antes de mais convém explicar quem é o Cardeal Burke.

O homem das Dubia

Raymond Burke é um cardeal americano. Especialista em Direito Canónico, serviu durante muitos anos na Signatura Apostolica, o tribunal canónico da Santa Sé, tendo chegado a ser prefeito da mesma. Conhecido por ser conservador, cedo no pontificado de Francisco se começou a perceber que ele não estaria alinhado com o estilo e, em larga medida, o conteúdo do mesmo.

O primeiro grande choque do cardeal com o Papa foi depois da publicação do Amoris Laetitia, em que Burke, juntamente com outros três cardeais – dois dos quais já morreram – endereçaram ao Papa uma série de perguntas, pedindo respostas na forma de “Sim” ou “Não”, conhecidas como “Dubia”. A questão das dúbia tornou-se uma autêntica novela, com o Papa a recusar responder e os cardeais a divulgar publicamente as questões que tinham feito, e o facto de terem ficado sem resposta.

Burke também se opôs ao Sínodo sobre a sinodalidade, que se realizou em Outubro, tendo participado num evento paralelo, organizado por opositores ao Papa Francisco, em Roma, chamado “A Torre de Babel Sinodal”.

Mais recentemente Burke voltou a enviar umas dubia ao Papa, acompanhado agora de outros quatro cardeais, incluindo Brandmüller, sobrevivente da primeira volta. Desta vez o Papa respondeu, em texto corrido, mas descontentes, os cardeais reformularam as perguntas e exigiram do Papa respostas na forma de “Sim” ou “Não”, publicando o pedido. O Vaticano publicou então as primeiras respostas, ignorando o segundo apelo.

O castigo

Depois de tudo isto, emergiu recentemente que o Papa Francisco teria dito, numa reunião com os líderes dos dicastérios em Roma, que pretendia aplicar um castigo a Burke, retirando-lhe o apartamento e o salário.

Nas versões que circulam em sites tradicionalistas, o Papa é citado como tendo dito “Burke é meu inimigo, por isso vou retirar-lhe o apartamento e o estipêndio”. Segundo as fontes mais credíveis que eu tenho conseguido consultar, esta versão é falsa. O termo “inimigo” nunca foi usado. Isto é importante, porque o termo transmite a ideia de uma vingança, ou uma birra. Contudo, as medidas serão verdade, de facto, confirmado pelo próprio Papa a um dos seus mais fiéis defensores, Austen Ivereigh. O Papa, aparentemente, não queria que as medidas fossem tornadas públicas, mas alguém presente na reunião divulgou a informação.

Esta medida era necessária?

Estabelecidos os factos, vale a pena ponderar a questão. Será que a medida do Papa era necessária?

Ivereigh, sem grandes surpresas, argumenta que sim, dizendo que o Papa até já tinha demonstrado muita paciência com um cardeal que, contrariamente aos votos que faz quando é elevado ao cargo, estaria a opor-se ao seu ministério.

O voto a que Ivereigh se refere é este: “Prometo e juro permanecer, a partir de agora e para sempre enquanto tiver vida, fiel a Cristo e ao seu Evangelho, constantemente obediente à Santa Apostólica Igreja Romana. A são Pedro na pessoa do Sumo Pontífice e aos seus sucessores canonicamente eleitos.”

Segundo Ivereigh, ao propor um magistério alternativo, questionando e pondo em causa as decisões e medidas de Francisco, Burke estaria a violar esse voto.

O sistema político britânico tem um conceito muito engraçado. Quem manda no país é o “Governo de Sua Majestade” e aos seus adversários, no Parlamento, chama-se “a lealíssima oposição de Sua Majestade”. Faz falta em todo o lado, e também na Igreja, o conceito de uma oposição leal, a ideia de que é possível ser leal a alguém, e ao seu cargo, discordando, todavia, do seu rumo e até dando voz a essa discordância. Discordância não equivale a traição ou a deslealdade.

Será que isto se aplica sempre? Evidentemente não. Há dois casos na história deste pontificado que o ilustram perfeitamente. Um é o Arcebispo Viganò. Quando Viganò começou a criticar o Papa e o seu magistério, Francisco causou alguma surpresa ao recusar castigá-lo, aplicar medidas canónicas contra ele, ou sequer responder. Mas o tempo veio a dar-lhe razão, uma vez que Viganò, deixado a falar sozinho, acabou por se remeter para o espaço das teorias da conspiração e da loucura total. Mais recentemente tivemos também o caso do Bispo Joseph Strickland, que é muito claramente um homem insensato e desequilibrado, que também disparatava contra Francisco, e ainda por cima, ao que tudo indica, geria pessimamente a sua diocese. Aqui Francisco agiu – talvez tarde de mais – pedindo ao bispo que apresentasse a sua resignação, e quando não o fez, retirou-o de funções.

Burke está neste campeonato? Não acredito. Eu tive o privilégio de estar com o Cardeal Burke uma vez, em Roma, durante um curso que fiz na Universidade de Santa Croce para jornalistas. Digo privilégio, porque é sempre um privilégio estar com pessoas simpáticas e boas e Burke deixou-nos a todos com a impressão de ser uma pessoa boa, muito simpática e paciente. Isso quer dizer que eu concordo com tudo o que ele diz ou faz? Longe disso. Acho que ele está muito enganado no que diz respeito ao pontificado de Francisco, mas acho, e essa é para mim a chave, que ele é movido de intenções sinceras e que a oposição que faz é uma oposição leal, que talvez tenha sido insensato numa ou noutra ocasião, sobretudo deixando-se colar ou ser usado por forças mais radicais, mas sem nunca entrar ele mesmo em maledicência contra o Papa.

J. D. Flynn, um dos meus editores no The Pillar, dos EUA, escreveu o seguinte numa análise a esta questão: “Embora ele se pronuncie de forma aberta sobre questões eclesiásticas, como ele as entende, Burke não tem feitio para falar publicamente sobre uma desfeita pessoal – aliás, estive na sua companhia várias vezes ao longo dos últimos anos e nunca o ouvi falar mal do Papa pessoalmente, ou da sua decisão de o retirar das posições de liderança que desempenhava. Na verdade, já vi Burke ficar visivelmente desconfortável na presença de católicos que insultavam pessoalmente Francisco, em vez de criticar apenas a sua abordagem teológica ou estilo de liderança”.

Por tudo isto, acho sinceramente que o Papa teria feito melhor em não tomar a medida que tomou, ou que se prepara para tomar. Se a presença de Burke em Roma o deixa desconfortável então acredito que poderia ter pedido ao cardeal americano para regressar ao seu país, o que não seria escândalo ou surpresa, uma vez que Burke já fez 75 anos e por isso está na idade da reforma, e ainda por cima tem família e um santuário do qual é reitor nos Estados Unidos, portanto teria o que fazer e com quem estar.

É verdade que Burke é fonte de desunião? Eu diria antes que é verdade que a Igreja está desunida – não há como o negar – e que Burke é uma das figuras dessa desunião, mas ainda assim é das figuras com quem se pode dialogar de forma fraternal. Castigá-lo, de uma forma que facilmente pode ser interpretada – bem ou mal – como vingativa, não só não resolve a questão da desunião, como a agrava, pois transforma-o em vítima e permite aos opositores pintar Francisco como um homem vingativo que prega a misericórdia, mas não a pratica.

Uma questão acessória

Há uma outra questão que aparece associada a esta: Faz sentido um cardeal sem cargos que exijam a sua presença permanente na Santa Sé continuar a viver no Vaticano, num apartamento luxuoso subsidiado e com ordenado de mais de cinco mil euros por mês?

Numa altura em que tanto se critica o clericalismo, carreirismo e despesas em Roma, penso que a resposta é evidente. Acredito que seja bom para alguém que está há anos a viver em Roma poder continuar a fazê-lo depois da reforma, mas do ponto de vista de política económica do Vaticano não faz sentido nenhum.

Agora, isso aplica-se a Burke e a tantos outros que estarão nessa posição. Usar este argumento agora, especificamente para Burke, é mesquinho, até porque não foi essa a razão invocada pelo Papa para as medidas que tomou.

Se queremos discutir o que fazer a cardeais reformados, que o façamos, mas não misturemos as coisas, pois ninguém ganha com isso.

Wednesday, 29 November 2023

Fé, Certeza e Dúvida

Tens a certeza de que Deus existe? Tens a certeza que não? De que lado está o ónus da prova nesta questão? São os crentes que têm de provar que Deus existe? Ou devem ser os ateus a provar o contrário? Muitos optam por se pronunciar “agnósticos” – não sei mesmo.

Tudo bem, a não ser que a questão da existência de Deus seja tão importante e relevante como saber se o vulcão por cima da minha casa está prestes a explodir. Como não sou vulcanólogo, posso legitimamente dizer “eu não sei mesmo”. Mas não posso propriamente dizer que a resposta à questão não tem qualquer importância para a minha vida e realização. Dizer-me “agnóstico” e voltar para casa não é uma resposta “neutra”. Com os meus gestos estou a colocar-me do lado dos que dizem que esta não é uma preocupação relevante.

Tenho pensado muitas vezes que o verdadeiro objectivo da famosa “aposta” de Pascal era tentar levar os seus compatriotas, com a mania de que eram tão sofisticados, a enfrentar esta questão existencial da mensagem do Evangelho: E se, com a tua vida, já apostaste tudo nesta questão? E se todo o teu dinheiro (ou toda a tua vida) dependessem da resposta a uma certa questão, estarias mesmo disposto a permanecer “agnóstico” sobre ela?

Posso ter a Certeza de que Jesus é Deus feito homem, e que a sua morte sacrificial nos dá a salvação? Talvez não. E então?

E se não colocarmos a questão desta forma, em busca da certeza?

Esta busca pela certeza é uma tendência que foi introduzida na consciência moderna por René Descartes, que acreditava que dizer “eu sei” implicava ter a certeza – tão certo como estou de que 2+2=4. Um antigo professor meu dizia que este era o tipo de erro que, na escola de Aristóteles, teria levado a uma bela reguada. “Não, Descartes! Não! Não podes esperar o mesmo grau de certeza em todos os assuntos!”

Podes ter a certeza sobre Deus, Jesus e tudo o resto? Talvez não. Mas há outras questões sobre as quais não podes ter a certeza. A tua mãe ama-te? Podes ter a certeza disso? Talvez ela seja um génio malvado a enganar-te simplesmente para te poder manipular quando fores mais velho.

Bom, talvez seja possível, sim, mas o que é que ela poderia esperar ganhar que pudesse justificar todo o esforço e sacrifício que está a fazer agora? E como é que podia ter a certeza de que todos os esforços valeriam a pena? É possível, se bem que não seja inteiramente razoável, ou provável. Mas não posso ter a certeza, de facto.

E temos ainda outras questões com as quais as pessoas se debatem. Devo casar com esta pessoa? Posso ter a certeza de que vai “resultar”? É impossível ter a certeza. Talvez seja possível discernir melhor ou pior, mas quem exigir uma certeza absoluta nunca irá casar. Aqueles que pensam no amor e no casamento como escolhas que fazem, em vez de uma situação de que podem ter a certeza, tendem a ter mais sucesso a longo prazo.

Eu tive um professor que defendia que a “crença” era “agir como se fosse verdade”. Não me parece que seja a melhor das definições de fé, mas leva a algumas considerações interessantes. Se eu vejo uma ponte frágil e velha e decido atravessá-la, é porque creio que aguentará o meu peso. Como é que sabem que acredito? Porque estou a atravessá-la. Posso estar a fazê-lo de forma hesitante, com algumas dúvidas, mas estou a fazê-lo.

Um homem está a afogar-se e eu vejo um barco antigo. Se saltar para ele e remar em direcção ao homem, estou a demonstrar a minha crença de que o barco aguenta comigo. Estou a agir como se fosse verdade. Creio nisso – creio tão firmemente que estou disposto a arriscar a vida com base nessa crença.

Em “O Homem em Busca de um Sentido”, Viktor Frankl diz o seguinte sobre o tempo que passou em Auschwitz: “Tínhamos de parar de perguntar sobre o sentido da vida, e antes pensar-nos como aqueles que estavam a ser questionados pela vida – diariamente, a cada hora. A nossa conduta não devia consistir em conversa e meditação, mas em acção recta e conduta recta”.

E se, em vez de certezas sobre a ideia de Deus, nos pensássemos como estando a ser “questionados pela vida”, e a resposta a esta pergunta tivesse a ser dada com as nossas vidas. E se em vez de esperar pela sensação da certeza nos limitássemos a dizer: “Eu escolho viver como se uma vida de amor altruísta fizesse sentido”.

Quando agem com amor altruísta e ensinam os seus filhos a fazer o mesmo, os “agnósticos” e os ateus que dizem acreditar que vivemos num universo vazio e desprovido de sentido, revelam que não acreditam mesmo no que dizem acreditar. Eles acreditam no mesmo que os cristãos – sobre a vida e sobre o mundo. A diferença está em que os cristãos têm razões para a esperança que carregam. E podem dar nome a essa esperança.

Posso ter a certeza sobre o amor de Deus? Estás a gozar? Há dias em que o universo me esmaga e não sei se há valor no que quer que seja, sobretudo quando contemplo as trevas que andam pelo mundo e que habitam o meu próprio coração.

Embora não possa ter a certeza, posso escolher tentar viver como se o Deus de Amor existe e criou um universo em que a chave da realização humana é o Amor feito carne. Eu prefiro viver desta forma porque, na minha experiência, é o que faz mais sentido. Se quiseres chamar a isso “fé irracional”, força.

E sim, talvez seja como o tipo que está num barco velho e frágil, que nem sei se me vai manter à tona de água, a remar em direcção ao homem que se afoga. Mas eu prefiro ser esse tipo do que aquele que se encontra sentado na margem, a fazer perguntas infindáveis sobre a navegabilidade do barco. Esse tipo já fez a sua escolha. E eu fiz a minha. Mas nenhuma dessas escolhas é neutra.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 28 de Novembro de 2023)

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Friday, 24 November 2023

Terra Santa, antissemitismo e Arménios preocupados

Vamos já na sexta semana da guerra na Terra Santa e começa-se a falar finalmente num cessar-fogo e libertação de reféns. Isto acontece no dia depois de o Papa ter recebido em audiência delegações de ambas as comunidades, de ter ouvido protestos contra a campanha militar israelita por parte de peregrinos palestinianos na audiência geral, e de ter dito – novamente – que ninguém vence nas guerras, todos perdem. Na quarta-feira foi anunciada ainda uma campanha de oração pela paz e a fundação Ajuda à Igreja que Sofre prometeu reforçar o apoio monetário aos cristãos da Terra Santa.

A guerra na Terra Santa tem despertado muitas emoções em todo o mundo, e temos assistido a uma explosão de manifestações de antissemitismo. Neste caso em particular nem sempre é fácil de avaliar. Há quem considere uma crítica a Israel como um acto antissemítico, e quem diga que não, distinguindo o sionismo do judaísmo. É um tema complexo. Mas é por vezes o carácter antissemítico é inegável e é ingénuo pensar que ele se deve unicamente às decisões e aos actos praticados pelo Estado israelita actualmente. Este tema é explorado no artigo desta semana do The Catholic Thing, onde David Warren conclui que o antissemitismo é, lá no fundo, uma revolta contra Deus e um eco do pecado original.

Enquanto estamos todos focados em Gaza, contudo, o conflito na Terra Santa continua a decorrer noutras frentes e com outras armas. Hoje convido-vos a olhar para Jerusalém, onde há décadas decorre uma campanha levada a cabo por activistas judeus para comprar o máximo de propriedades e terreno possível, para tentar garantir uma maioria judaica na Cidade Santa. O mais recente incidente envolve um negócio obscuro que representa um quarto do sector arménio e meteu manifestações, colonos armados, cães e fantasmas de Nagorno Karabakh. Curioso? É caso para isso.

E para fechar este tema da Terra Santa, digo-vos que estarei no domingo no Atheneu Artístico Vilafranquense, em Vila Franca de Xira, para falar sobre o conflito em curso a participantes da Jornada da Pastoral Juvenil. É Às 10h. A mesma pastoral, inspirada pelo que se passou na JMJ, está a recomendar o uso de famílias de acolhimento para estudantes deslocados que estão a ter dificuldades em encontrar alojamento acessível nas grandes cidades.

Estamos em plena #RedWeek, durante a qual recordamos os cristãos perseguidos em todo o mundo. A fundação Ajuda à Igreja que Sofre organizou uma série de eventos, incluindo com o bispo do Porto e o bispo de Setúbal.

E termino com uma história curiosa. O bairro de Ciudade Chávez, na Venezuela, foi criado há uma década com o objectivo de ser um paraíso socialista, e por isso sem Deus, nem igreja. Agora, contudo, foi inaugurada a primeira paróquia. Há aqui uma lição, obviamente. Podemos revoltar-nos contra Deus, mas com paciência e tempo, Ele vence sempre. Felizmente.

Thursday, 23 November 2023

O outro conflito na Terra Santa. A terra em si.

Há poucos dias foi publicada uma declaração curiosa por parte dos líderes das igrejas cristãs da Terra Santa. Os líderes lamentaram os acontecimentos recentes no bairro arménio de Jerusalém.

Antes de entrar nos detalhes, é preciso explicar que Jerusalém está dividida essencialmente em quatro sectores. O sector judeu, o sector muçulmano, o sector cristão e o sector arménio. Todos representam as antigas comunidades que vivem na cidade, lado-a-lado, há séculos.

O bairro arménio é o mais pequeno dos quatro e é distinto do bairro cristão, que é maioritariamente habitado por cristãos árabes.

Quando o Estado de Israel foi fundado, em 1948, Jerusalém era suposto ficar sob controlo internacional, mas no seguimento do ataque falhado por parte da coligação árabe, Israel tomou conta da parte ocidental, ficando a Jordânia com a oriental. Em 1967, depois da Guerra dos Seis Dias, Israel ocupou a parte oriental. A cidade ficou toda sob controlo de Israel desde então, embora à luz do direito internacional seja considerado território ocupado.

Sabendo disso, e para consolidar o controlo de facto da cidade, activistas judeus têm estado envolvidos numa campanha de décadas para comprar, aos poucos, todo o terreno possível em Jerusalém, com o objectivo de assegurar uma maioria judaica naquela que consideram ser a capital eterna de Israel. Como devem calcular, as outras comunidades temem esta estratégia e têm lutado contra ela, condenando e censurando publicamente quem vende terreno ou edifícios a judeus.

Irineu a acenar do seu "exílio"
Um dos casos mais polémicos – envolvendo cristãos, pelo menos – ocorreu no início do milénio, quando se descobriu que o Patriarca Irineu, da Igreja Ortodoxa Grega em Jerusalém, tinha vendido secretamente terreno da Igreja a investidores judeus. Sublinho aqui que embora a hierarquia do Patriarcado Ortodoxo Grego de Jerusalém seja de etnia grega mesmo, a esmagadora maioria dos fiéis são árabes palestinianos. O impacto do negócio entre a comunidade foi de tal ordem que o Patriarca foi destituído e viveu durante anos num apartamento no edifício do patriarcado, recebendo comida subida por cordas num cesto e afirmando estar detido contra a sua vontade. Apesar disso, Israel continuou a reconhecê-lo como o Patriarca legítimo até 2007. Irineu deixou finalmente Israel em 2019, tendo morrido em janeiro deste ano. O actual Patriarca impediu-o de ser sepultado em Jerusalém, por isso foi enterrado na sua terra natal, na Grécia.

Agora parece que estamos perante a mesma situação, mas com a Igreja Arménia. Um empresário judeu australiano afirma que o Patriarcado Arménio lhe vendeu uma propriedade em Jerusalém, mas o Patriarca diz que não tinha essa intenção e que foi enganado. Para terem noção, o negócio envolve território equivalente a 25% de todo o bairro arménio. O Patriarcado Arménio está a contestar o negócio, dizendo que este tinha de ter passado pelo sínodo, o que não aconteceu.

Recentemente a empresa compradora tentou arrancar com obras num parque de estacionamento, que está entre os lotes disputados. Os arménios convocaram uma manifestação pacifica no local, para contestar a actividade, e em resposta apareceu um grupo de colonos judeus, com armas e cães, que ameaçaram os arménios, intimando-os a abandonar o local. Foi preciso chegar a policia para pôr cobro à questão, mas o clima de tensão mantém-se e os arménios de Jerusalém estão muito preocupados, porque a avançar este negócio ameaça a própria sobrevivência da comunidade.

Foi isto que motivou a declaração conjunta dos líderes religiosos. É mesmo preciso ter em conta a importância destas declarações conjuntas, porque as relações entre as diferentes confissões cristãs na Terra Santa são famosas por serem muito conturbadas e até hostis, especialmente entre os gregos e os arménios. Quando falo em hostis não é ao nível da população geral, que até se dá bem, mas entre padres e monges, que não raras vezes se envolvem em confrontos físicos.

Por fim, há aqui um aspecto que pode parecer simbólico, mas é também importante, sobretudo para a comunidade arménia. Os arménios são um povo muito unido. Estando espalhados pelo mundo, mantém entre eles uma solidariedade e sentido de pertença assinalável. Por isso, todos os arménios sentiram na sua própria pele a derrota dos seus compatriotas em Nagorno Karabakh e a consequente expulsão do território disputado pelo Azerbaijão. Pode-se dizer, por isso, que a ameaça de serem varridos de outro território que habitam há séculos é levada muito a sério.

Mas para agravar tudo isto, sabe-se que para além do apoio da Turquia, o Azerbaijão só conseguiu reverter o status quo em Nagorno Karabakh com armas fornecidas por Israel, por isso a actual ameaça partir de israelitas armados é um golpe particularmente duro para os arménios.

O confronto entre Israel e o Hamas, em Gaza, tem dominado as notícias ao longo do último mês, mas, como estamos a ver, essa é apenas uma parte de um conflito muito complexo e que tem uma variedade de frentes, nas quais o dinheiro e a aquisição de terra são também armas fundamentais.

Wednesday, 22 November 2023

Deus e os Judeus

David Warren

De origens obscuras, habitando em Ur dos Caldeus (Genesis 11,31), e itinerantes como nómadas, com Abraão para Canaã, e depois para a escravidão do Egipto; e para fora do Egipto e da escravatura com Moisés; e pela mão de Josué de volta para a terra prometida de Canaã; os hebreus entram para primeiro plano da história.

E nós viajamos com eles através destes tempos distantes e frequentemente impenetráveis. Como nos diz a Bíblia, com repetida claridade, esta é uma itinerância escolhida.

Não foi escolhida pelas pessoas em si, mas pelo seu Deus; ou como temos vindo a compreender de forma mais simples, por Deus. A história que herdamos é a vida que herdamos, que procede sem ambiguidade dos judeus.

Quanto mais nos familiarizamos não só com as Escrituras hebraicas, mas com os resquícios literários de todos os outros povos do “Médio” e “Próximo” Oriente, mais estranho tudo isto se torna. Pois estamos a ler mais do que uma rara história étnica. As fundações tocam ainda uma realidade teológica palpável.

Os judeus não foram escolhidos por uma mão divina e arbitrária. Foram escolhidos por revelação divina, e foi-lhes mostrada a direcção que deviam tentar seguir, ainda que falhando. Isto faz deles diferentes, únicos, distintos de todos os outros povos antigos que estudamos. 

A mão de Deus pode ser vista ao longo das escrituras hebraicas – mais uma vez, de forma diferente daquela com que nos familiarizaríamos nas muitas tradições alternativas e “pagãs”. A sensibilidade espiritual e moral que emerge, a estrutura de mandamento, marca-os como radicalmente diferentes.

Quando nós, que nos chamamos católicos, olhamos para esta história, anterior ao aparecimento físico de Cristo, não temos outra escolha se não concordar com a opinião judaica do que foi, e é, verdade.

As circunstâncias podem ser misteriosas, mas são também simples, e evidentes. Este é um dos paradoxos do “mistério” religioso: que aquilo que é mais impenetrável é também o mais simples.

Lemos, e se tivermos alguma sensibilidade sentimos na Sagrada Escritura o chamamento, a sensação de se ser escolhido. Isto acontece não porque os relatos históricos são convincentes, de forma racional ou empírica, mas porque a história que relatam contém a resposta a algo inevitável: o amadurecimento humano.

Também a fé tem uma componente evidente de mistério. Não é uma colecção de artigos científicos ou uma antologia de textos religiosos que estamos a ler. Estamos a ler – e a escutar – a palavra de Deus. São-nos feitas exigências. É-nos dito o que é verdade e certo, e belo: exigências essas que irão determinar, directa e indirectamente, o nosso percurso. Ou que serão rejeitadas, por nossa livre vontade, pois implicam uma vida de santidade contra a qual nós, enquanto animais naturais, podemos revoltar-nos.

As exigências são inconvenientes. Isto pode magoar-nos de forma radical. É-nos pedido que abdiquemos do nosso narcisismo, do nosso “ego”, no qual parece radicar a nossa sobrevivência, para abraçar algo que, desde o início, nos foi apresentado como imortal.

O que parecia ser a mensagem “moderna” do Cristianismo, afinal estava já presente desde o início: abdica daquilo que tens, pois tu és escolhido.

É a mesma mensagem que Maria canta no Magnificat: esse Sim cósmico que é pronunciado quando o homem aceita o seu destino; e quando a mulher aceita o seu destino: e é profundamente alegre.

Compreender o fenómeno do antissemitismo passa por compreender o que acontece quando dizemos Não. Não é algo que nos é feito, mas antes algo que nós fazemos.

A raiva contra os judeus – essa fúria psicopática que já devíamos esperar – é, na sua essência, uma raiva contra Deus, e contra a sua ordem.

Ficamos enraivecidos porque os judeus não “são normais”. Insistimos em reduzi-los, em persegui-los, da mesma forma que os nossos antepassados insistiram em crucificar Cristo. 

Pois existe, e pode ser encontrado nas Escrituras, algo cristoforme em cada Judeu escolhido. Ele é um meio para a compreensão de que o homem foi criado à imagem de Deus.

Isto não é algum facto aleatório, antes desafia o lugar comum a que estamos habituados. Porque o Deus em cuja imagem fomos criados é um Deus particular, que conhecemos através de uma história particular.

É uma história na qual os judeus foram os condutores de um acto de vontade divina, e na qual nós, os cristãos que vieram mais tarde, devemos reconhecer que de alguma forma também somos judeus. Pois só os judeus foram escolhidos.

Está em jogo aqui uma estranha inveja. E aqui gostaria de realçar que a inveja não é um pecado menor. No caso do antissemitismo que temos visto recentemente, e ao longo da história, atinge o comportamento homicida a que temos assistido: horrores demasiado horríveis para se descrever casualmente.

Não é por coincidência que estes crimes são cometidos pelos sem Deus. É o caso dos terroristas islâmicos cujos massacres dominam tantas vezes as notícias. Pensamos, erradamente, que são fanáticos religiosos. Mas não são.

O islamismo contemporâneo tem tido o seu próprio percurso histórico, que passa pelas revoluções que varreram o mundo árabe há décadas. O perfil racial do islamista típico não é de um místico religioso, como aquele a que a tradição sufi nos tem habituado. Não se trata de um muçulmano devoto e praticante, a não ser para inglês ver. Estamos a lidar antes com monstros claramente políticos. 

De igual modo, no ocidente, estamos agora a lidar com um inimigo que atinge o seu auge de entusiasmo nos campus universitários: estudantes muito distantes de qualquer humildade religiosa e os seus orgulhosos gurus esquerdistas.

É por isso que, no passado, nos vimos confrontados pelos Nazis, cujo ódio aos judeus transcendeu o seu ódio por qualquer outro inimigo, e é por isso que os judeus sofreram pogroms, não apenas sob o regime de Estaline.

A visão de um judeu é, de forma misteriosa, mas simples, uma recordação de Deus em forma humana. E inspira em nós a maldade da nossa primeira revolta.


David Warren é o ex-director da revista Idler e é cronista no Ottowa Citizen. Tem uma larga experiência no próximo e extreme oriente. O seu blog pessoal chama-se Essays in Idelness.

(Publicado pela primeira vez na Sexta-feira, 3 de Novembro de 2023 em The Catholic Thing)

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Friday, 17 November 2023

Indi Gregory, padres em burnout e #RedWeek

Do Reino Unido chega uma notícia triste e outra chocante. A triste é que morreu a menina Indi Gregory, que sofria de uma doença incurável. A chocante é que a Indi morreu porque os médicos, com o apoio do tribunal, decidiram que as opinião, as escolhas e os valores dos pais da Indi não deveriam ser tidos em conta no que diz respeito ao seu tratamento clínico. Não é uma excepção, é a regra naquele país, como já se tornou evidente ao longo dos últimos anos. Neste artigo explico os detalhes, e digo porque é que isso é tão preocupante.

A semana passada falei muito brevemente do documento do Vaticano sobre o acesso dos transexuais ao sacramento do baptismo ou à função de padrinhos. Esta semana trago-vos um artigo do The Catholic Thing que resume muito bem aquelas que são as minhas preocupações com as orientações da Santa Sé, que a meu ver peca mais pelo que não diz do que pelo que diz. Leiam o artigo e digam-me se concordam.

A Renascença tem uma interessante notícia sobre um padre que se está a especializar em psicologia com o objectivo de ajudar outros sacerdotes em “burnout”. É um problema cada vez mais presente nas paróquias, e não apenas nos círculos católicos.

Dos meus amigos da Ajuda à Igreja que Sofre – Portugal, trago-vos três histórias muito importantes. Em primeiro lugar, entramos amanhã na #RedWeek, durante a qual vários edifícios públicos serão iluminados de encarnado para assinalar a perseguição aos cristãos. Saibam mais aqui.

Na Nigéria a praga de raptos de padres é de tal forma que já nem é notícia. Ao longo deste ano vamos já em 23 raptos e quatro assassinatos. Uma tragédia.

E ainda, a história da Irmã Terese, do Gana. Talvez até tenha partilhado isto na versão inglesa, mas o testemunho desta freira, que salva dezenas de vidas de crianças consideradas “amaldiçoadas” é tão bonita que volto a insistir nela. Isto é o Evangelho em carne e osso.

Felizmente, da Nigéria também nos chegam histórias encorajadoras. Conversei com um bispo e um padre que estão a implementar um programa de diálogo inter-religioso que tem dado muitos frutos pela paz. O bispo até recebeu o título de Sheikh do seu amigo o grande-imã do Estado de Osun.

E os líderes de igrejas da Terra Santa pedem que os cristãos celebrem o Natal de forma mais recatada este ano, por causa do sofrimento em Gaza. Esta declaração está publicada aqui, onde tenho estado a coligir declarações de líderes religiosos locais sobre esta guerra. Rezemos pela Paz na Terra Santa, e rezemos pelos cristãos que se encontram em Gaza, dos quais não temos tido notícias nos últimos dias.

Thursday, 16 November 2023

Indi Gregory. Braço-de-ferro entre governo britânico e direitos paternais faz mais uma vítima

Morreu esta segunda-feira, com quase oito meses de idade, a pequena Indi Gregory.

Para quem não acompanhou a história, a Indi nasceu com uma rara doença mitocondrial que lhe causou danos cerebrais irreparáveis. Estando internada, os médicos sugeriram aos pais que nada havia a fazer, e que por isso deveria ser desligado o suporte de vida e administrados cuidados paliativos, deixando o bebé morrer.

Os pais contestaram, dizendo que a sua filha reagia aos estímulos e que queriam prolongar a sua vida. Perante este impasse, como tem acontecido com alguma frequência no Reino Unido, o hospital levou o caso a tribunal, que tem decidido sempre a favor dos médicos, contra a vontade dos pais.

Já perto do final do processo o hospital Bambino Gesú, em Roma, ofereceu-se para acolher a Indi e cuidar dela, tentando eventualmente umas terapias alternativas que não lhe conseguiriam restaurar à saúde plena, mas talvez permitissem prolongar a vida sem sofrimento. Para tal, o Governo italiano até aprovou a concessão de cidadania italiana à menina, mas ainda assim o tribunal não permitiu a transferência.

Perdidos os últimos recursos, o hospital retirou o suporte de vida, transferindo a pequena Indi para um hospício especializado em acompanhamento de final de vida, onde ela morreu. Não foi sequer permitido aos pais levar a sua filha para casa, para morrer perto deles.

Charlie, Alfie, Indi

Em primeiro lugar, este não é um caso extremo e isolado. Faz parte de um padrão de casos que têm surgido ao longo da última década no Reino Unido. Entre os que causaram mais polémica, e por isso se tornaram mais conhecidos, estão os casos de Charlie Gard e de Alfie Evans, mas há mais.

Nem todos os casos são iguais, claro, mas têm elementos comuns, nomeadamente o facto de a dada altura surgir uma diferença de opinião entre a equipa médica e os pais sobre o tratamento da criança e aquilo que concorre para o seu melhor interesse. Em todos os casos a equipa médica recorreu aos tribunais, tendo obtido destes o consentimento para cessar qualquer tratamento, deixando as crianças morrer.

Não vou entrar em detalhes, mas posso dizer que a minha opinião sobre os três casos não foi unânime. No caso de Charlie parece-me que o tribunal tomou a decisão correcta, e no caso de Alfie Evans e de Indi Gregory parece-me que tomou a decisão errada. Este texto que escrevi sobre o Alfie Evans explica os contornos gerais de ambos os casos.  

Filhos dos pais ou do Estado?

A questão polémica aqui não é a morte das crianças. Tristemente, as crianças também adoecem e morrem, e se desaprovamos a distanásia – o prolongamento desnecessário e forçado de uma vida em sofrimento – para os adultos, não há razão para a aprovar para crianças. Prolongar a vida a todo o custo não é uma solução ética, e nem a Igreja Católica, nem a bioética em geral, o defendem.

O verdadeiro cerne desta questão é o conflito entre pais e Estado sobre a custódia da criança e o direito a decidir o que é melhor para ela, e quais as abordagens clínicas que querem adoptar.

Deixem-me ser claro. Este é um direito fundamental dos pais. É deles a responsabilidade de decidir qual é o melhor interesse dos seus filhos. Contudo, a sociedade admite que em casos extremos o Estado possa retirar esse direito aos pais, como faz noutros casos extremos em que a criança é vítima de maus tratos, por exemplo. Mas sublinho: casos extremos.

Devemos então interrogar-nos: estávamos perante um caso extremo? Não vejo qualquer razão para pensar que sim. Ao contrário do que se passou no caso de Charlie Gard, os pais não estavam a tentar transferir a sua filha para outro continente, para prosseguir uma terapia vaga e experimental proposta por um médico isolado que tinha muito a lucrar. A proposta aqui, como já tinha sido no caso do Alfie Evans, era a transferência para um hospital sério, com excelente reputação e especializado no cuidado de crianças, onde a Indi seria acompanhada por uma equipa de médicos igualmente séria. A transferência para Itália, e o tratamento, não acarretariam qualquer custo para o sistema nacional de saúde do Reino Unido (embora esse não deva ser um factor decisivo, como é evidente).

Ao negar aos pais o exercício desse direito o Estado está a dizer, repetidamente, que é ele o melhor garante do bem-estar das crianças doentes e, o que é extremamente grave, a normalizar o princípio de se substituir ao poder e discernimento paternal.

No Reino Unido caminha-se – se é que não se chegou já – a uma situação em que os filhos são encarados como propriedade e responsabilidade do Estado, estando apenas emprestados aos pais enquanto as escolhas destes não colidirem com a visão da tutela. Isto é próprio de um estado autoritário, e não de um estado de direito, e põe em causa a aquela que é a célula base e essencial de toda a sociedade saudável: a família, unida e sólida.

Há outras preocupações com o sistema de saúde inglês, por um lado o protocolo para cuidados de fim de vida, o chamado Liverpool Care Pathway, que prevê a retirada de cuidados essenciais como a hidratação, a nutrição e a oxigenação, e por outro uma derrapagem do conceito de dignidade, que já não é vista como inerente à condição humana, mas sim ao conforto material e sanitário dos doentes. Mas não há espaço aqui para aprofundar todas estas complicações.

Em resumo, os pais da Indi merecem a nossa solidariedade. Porque perderam uma filha, sim, mas sobretudo porque lhes foi retirado o direito a tomarem – em consciência – as decisões que acreditavam melhor servir os interesses da sua filha e da sua família. E se a primeira dessas coisas é uma tragédia infelizmente comum e própria da vida humana, que é sempre frágil, a segunda não devia acontecer a ninguém.

Wednesday, 15 November 2023

A transformação prometida pelo baptismo

Pe Brian Graebe

O Vaticano esteve nas notícias novamente, a semana passada, por causa da resposta a perguntas sobre a elegibilidade de pessoas transgénero para serem baptizadas ou servirem como padrinhos ou testemunhas dos sacramentos. A maior parte do documento, em si, não tem nada de controverso. A fasquia para negar os sacramentos a alguém, especialmente no caso do baptismo, é muito alta. Salvo uma hostilidade aberta à fé (e nesse caso é pouco provável que a pessoa procure sequer o sacramento) a presunção deve ser sempre a favor de baptizar.

A prática da Igreja comprova essa generosidade. O sacramento requer um elemento muito comum – a água – e qualquer pessoa, mesmo um ateu, pode administrá-lo validamente. Seja qual for a questão psicológica que uma pessoa transgénero esteja a atravessar, ou com a qual se confronta, a graça salvífica de Deus está ao dispor de todos os que a procuram de coração sincero. Na medida em que reafirma estas verdades básicas, a resposta do Dicastério para a Doutrina da Fé sublinha a visão acolhedora e inclusiva da Igreja a que o Papa Francisco tem dado prioridade.

Ao mesmo tempo, contudo, o documento peca por aquilo que deixa de fora. No rito do baptismo a Igreja, na pessoa do seu ministro, deve afirmar não apenas a verdade sobrenatural do sacramento, mas também a verdade natural do recipiente.

Ao longo do rito do baptismo o ministro, normalmente um padre, opta por pronomes masculinos ou femininos, com base no sexo do baptizando. Um homem pode acreditar que é uma mulher, e talvez até escolha usar um nome de mulher. Em si, isso não o deve desqualificar de ser baptizado. Contudo, o padre tem obrigação de se referir a ele como um homem. Por exemplo, na oração antes do baptismo propriamente dito, o padre diz: “Ajudemos com as nossas preces este nosso irmão, preparado para receber a vida nova do Baptismo. Oremos a Deus nosso Pai, para que, na sua grande misericórdia, o guie e acompanhe até à fonte baptismal.” Só nesta oração, a masculinidade – se for o caso – do catecúmeno é afirmada três vezes.

A Igreja não pode ser cúmplice do erro. Referir-se a este catecúmeno como uma mulher, usando a linguagem correspondente, seria tomar parte de uma mentira e semear mais confusão. Pastoralmente, a escolha da linguagem a usar no rito devia fazer parte de uma conversa mais longa com o candidato, bem antes da realização da cerimónia, em que o padre explica, com sensibilidade e com clareza, a antropologia da Igreja, procurando também compreender melhor o entendimento e motivação do candidato em procurar o sacramento. Infelizmente, estas considerações – pastoral, doutrinal e litúrgica – não constam da recente resposta do Vaticano.

Mas este problema não está limitado ao baptismo. A afirmação do sexo biológico estende-se também ao papel de uma pessoa transgénero enquanto padrinho ou testemunha. A Igreja pede que haja, sempre que possível, um padrinho, pelo menos um, embora possa haver – e frequentemente haja – dois. Nesse caso deve ser um padrinho e uma madrinha.

Esta paternidade espiritual deve espelhar a paternidade física. Se um homem transgénero, que se considera mulher, se apresentar para ser padrinho num baptizado, e partindo do princípio que preenche os restantes critérios, deve ficar bem claro que ele se apresenta como padrinho, junto de uma madrinha.

Aceder ao pedido de que este homem seja uma madrinha, junto de um padrinho, seria uma distorção do significado espiritual da instituição de padrinho e, novamente, confirmaria e perpetuaria o erro identitário de que este indivíduo sofre. Tal acomodação representa uma falsa compaixão e a subordinação da verdade objectiva à subjectividade dos sentimentos.

Os sacramentos não são propriedade da Igreja, mas de Cristo. Servem para conformar a alma mais perfeitamente com Ele, que é a verdade e que nos convida a permanecer nessa verdade. Essa verdade inclui a biologia da pessoa, que Deus criou homem e mulher.

Ao deixar de fora estas importantes considerações, o documento do Vaticano levanta mais questões do que aquelas a que responde. A confusão dos nossos tempos requer que a Igreja seja uma voz cada vez mais firme no deserto, por mais impopular ou desconfortável que isso possa ser.

O fenómeno transgénero não dá quaisquer sinais de retroceder. Pelo contrário, existe um esforço agressivo em todos os sectores da sociedade – e até dentro da Igreja – de o normalizar e até de penalizar quem utiliza os “pronomes errados”.

Por isso, a Igreja tem de ter a coragem das suas convicções. O seu acolhimento é também, e sempre, um convite e um desafio à conversão, convidando cada alma a deixar para trás o “velho eu” e revestir-se de Cristo. Essa é a identidade que o baptismo oferece, e a transformação que promete.


Brian A. Graebe, é padre na arquidiocese de Nova Iorque e autor de Vessel of Honor: The Virgin Birth and the Ecclesiology of Vatican II (Emmaus Academic).

(Publicado em The Catholic Thing na terça-feira, 14 de Novembro de 2023)

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Friday, 10 November 2023

Madrinhos, padrinhas e outros enganos

A Santa Sé publicou um esclarecimento esta quinta-feira sobre se as pessoas transexuais podem ser baptizadas, ou ser madrinhas ou padrinhos. Ia escrever sobre isto, mas a explicação tem tantas condicionantes, que me parece que a questão vai sempre parar ao bom-senso do pároco ou do bispo. Nalguns casos existirá, noutros não. Em todo o caso, embora me pareça fantástico que se demonstre preocupação pastoral por todos, lamento que seja a Igreja a usar termos como “transexual”, legitimando aquilo que não passa de um artifício linguístico. Talvez não seja o mais importante, mas acho que poderia ter sido evitado.

Surgiram, no fim-de-semana e durante a semana, notícias que indicam que a Igreja, nomeadamente o Patriarcado de Lisboa, castigou um padre por denunciar casos de abuso sexual de menores. Houve de facto uma sentença de um tribunal canónico contra um padre. Esse padre, de facto, denunciou casos de abuso sexual de menores. Ainda assim, o título da notícia é falso, ou pelo menos enganador, e essa é apenas a última de uma longa lista de tragédias no caso que envolve o padre Nuno Aurélio e o padre Joaquim Nazaré. Está tudo explicado no meu artigo.

Um dos pontos do artigo sobre o caso do Pe Nuno Aurélio é que já basta os tiros que a Igreja dá no pé, para não andarmos a inventar outros. Um bom exemplo de um caso que foi tratado da pior forma, pelo menos até agora, é o do Pe Marko Rupnik, que vai finalmente enfrentar um tribunal canónico. Stephen White conta os pormenores do caso no artigo desta semana do The Catholic Thing e verbaliza o que todos estamos a pensar: “Como é possível?!”

Persiste a guerra na Terra Santa. Um bispo iraquiano suplica que o conflito não se espalhe para o resto da região, outro do Líbano exige que a Comunidade Internacional intervenha para assegurar um cessar-fogo, e a irmã Nabila, que se encontra em Gaza, revela estar de coração partido com a destruição da escola que era um farol de esperança para a comunidade católica local.

Mas há mais guerras pelo mundo, e no Sudão a casa das irmãs salesianas, que cuidam de mais de 40 crianças e suas mães, foi atingido por uma bomba. Por milagre, não morreu ninguém.

Numa altura em que o panorama político do nosso país parece tresandar mais do que é costume, que tal uns perfumes de inspiração bíblica? É só dar um salto a Viseu.

Realiza-se este fim-de-semana o Meeting de Lisboa, organizado pela Comunhão e Libertação. O programa desta edição parece muito interessante, nomeadamente a exposição sobre uma organização criada para documentar os crimes dos soviéticos, que foi encerrada na Rússia por ordem de Vladimir Putin. Eu espero lá passar, vocês também o devem fazer, se puderem.

Thursday, 9 November 2023

O caso do Pe Nuno Aurélio. Uma tragédia em todos os sentidos

Um bocadinho dramático, talvez, mas
não conseguia pensar em nada melhor...

No final da semana passada voltou a falar-se do caso do Pe Nuno Aurélio, do Patriarcado de Lisboa.

O Pe Nuno Aurélio foi acusado de ter abusado sexualmente de um rapaz da sua paróquia em 2013. Esse rapaz viria a suicidar-se mais tarde. Quando as alegações se tornaram públicas o Ministério Público arquivou o processo, por estar prescrito. Já o Patriarcado fez uma investigação preliminar, arquivada por falta de indícios.

Em 2022 o caso do Pe Nuno voltou a ser referido no relatório da Comissão Independente, como aliás não podia deixar de ser, uma vez que tinha estado na imprensa e uma das fontes para o relatório foi um levantamento de casos na comunicação social. Mas foi também referido por um padre do Patriarcado de Lisboa que entregou à Comissão Independente, ao Ministério Público e a pelo menos dois grandes órgãos de comunicação uma lista de 12 padres suspeitos de abusos. Esse sacerdote foi inicialmente apresentado com o pseudónimo Pe Cardoso, mas já é público que se trata do Pe Joaquim Nazaré. Nas suas declarações à imprensa, o Pe Nazaré insinuou a culpa do Pe Aurélio no caso do rapaz que se suicidou, e disse ainda que havia indícios de que teria havido mais casos na sua paróquia nova, em França, não obstante essa informação já ter sido desmentida pelo Patriarcado e pela Arquidiocese de Paris.

Em resposta, o Pe Aurélio moveu um processo contra o Pe Nazaré por calúnia e difamação, no Tribunal Patriarcal de Lisboa. O Pe Nazaré foi chamado a defender-se, o que recusou, nunca tendo colaborado com a justiça do Patriarcado. Uma vez que se recusou a fazer prova das acusações públicas que tinha feito, o Tribunal Patriarcal condenou-o por calúnia. A sentença passa por uma retratação pública, um pedido de desculpa pessoal e o pagamento de um salário ao Fundo Diocesano. O Pe Nazaré já disse publicamente que não tenciona cumprir a sentença.

O caso voltou a ser falado na imprensa porque um grande órgão de comunicação social fez notícia da sentença, com o título: “Abusos: Igreja castiga padre que denunciou 12 sacerdotes (‘invocando o Santo Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo’)” Tanto quanto sei, a citação entre parêntesis é uma frase que aparece em todas as sentenças do Tribunal Canónico.

Tragédia após tragédia

Antes de continuar, aproveito para fazer uma ressalva importante: Eu não faço a menor ideia se o caso é verdadeiro ou não. Sei que há certamente casos verdadeiros que caem em saco roto por falta de provas, e sei que há denúncias falsas que estragam a vida aos acusados. Não sei em que campo cai este caso. Sei que o Pe Nuno insiste na sua inocência, e sei que há pessoas que não acreditam nele, e insistem na sua culpa. Portanto este texto não é uma defesa do Pe Nuno, nem uma condenação do processo, é simplesmente um texto que pretende mostrar como este caso é paradigmático de tudo quanto pode correr mal neste assunto do tratamento dos casos dos abusos sexuais na Igreja.

Dito isto, tudo o que temos aqui é uma tragédia, do início ao fim. Antes de mais nada, é uma tragédia que um rapaz se tenha suicidado. Seja o caso verdadeiro ou não, essa é a maior tragédia de todas. O suicídio é um indício conclusivo da veracidade do caso? Não. Uma vítima de abusos sexuais pode matar-se por causa do peso que carrega? Sem dúvida. Mas também é possível que o suicídio resulte de um mal-estar psicológico que por sua vez tenha contribuído também para inventar uma acusação contra uma pessoa inocente. Poderá haver um especialista em saúde mental que tenha acompanhado o rapaz e tenha sobre isso uma ideia mais fundamentada, não faço ideia, mas o resto da população deve evitar retirar conclusões precipitadas sobre o assunto.

Depois temos o arquivamento do processo civil por prescrição. Se a acusação era verdadeira, então temos uma tragédia, porque não se fez justiça nem se investigou devidamente. Se a acusação é falsa, idem aspas.

Surge então o processo canónico. Aqui já houve investigação, mas convém ressalvar que os serviços do Patriarcado de Lisboa, por melhores que sejam as suas intenções e capacidades, não têm os meios de investigação que tem o Ministério Público. Logo, aos olhos do mundo, a decisão do Patriarcado será sempre vista como coxa. Não é por acaso que, quando existem processos civis em curso, as autoridades eclesiásticas tendem a esperar pela sua conclusão para poderem reforçar a sua própria investigação. A investigação diocesana não foi, por isso, perfeita, mas foi o que foi. E eu tenho dito sempre que nós não temos outra opção senão confiar nos processos que existem. Não havendo processo civil, temos de confiar no processo canónico. É infalível? Nada na Terra é. Mas é o que temos. A tragédia aqui é que o Pe Nuno Aurélio viu o seu processo arquivado por falta de indícios, mas jamais se livrará do fantasma da acusação. É uma tragédia que partilha com muitos outros padres que se viram na mesma situação, mas não deixa de ser uma tragédia.

Boys will be boys

A tragédia seguinte é a falta de resposta da Igreja para estas situações. Já disse várias vezes que nestes assuntos falta um toque feminino na hierarquia – não leiam isto como um apelo à ordenação de mulheres, estou simplesmente a falar de maior presença de conselhos e influência feminina junto dos bispos e de quem toma decisões nas dioceses – uma visão maternal que cuide dos sacerdotes em situação de fragilidade. Dos casos que conheço pessoalmente de padres que foram acusados deste tipo de crime, ou mesmo de outros de natureza não sexual, com ou sem fundamento, a resposta da hierarquia tem sido sempre desoladora. Ou são colocados na prateleira, ou são enviados para longe, ou são deixados sem nomeação ad aeternum. Sempre com pancadinhas nas costas e palavras de encorajamento, mas na prática abandonados. Não é por maldade, é a forma tipicamente masculina de (não saber) lidar com situações de vulnerabilidade. Estas pessoas precisam de acompanhamento próximo como de pão para a boca, mas se não têm a sorte de ter uma rede de amigos – preferencialmente leigos e idealmente famílias – que os acolham e acompanhem, ficam perdidas.

É importante falar também sobre a questão da reintegração, quer dos padres que são ilibados ou vêem os seus casos arquivados por falta de indícios, quer dos que são condenados a penas canónicas que não passam pela expulsão do estado clerical e que as cumprem. A verdade é que nada está previsto.

No auge da polémica da Comissão Independente e das listas de padres no activo, fui contactado por uma pessoa ligada a uma comissão diocesana que queria criar procedimentos para a reintegração de sacerdotes nestas situações. Disse-lhe, cheio de confiança, que certamente isso existia nalgum lado, escusávamos de estar a inventar a roda, bastava descobrir um bom modelo para copiar. Não é que não existe mesmo? Ou se existe, eu não consegui descobrir. Até perguntei ao Pe Hans Zollner, provavelmente o maior especialista no assunto de abusos na Igreja, e ele confirmou que desconhecia a existência de quaisquer orientações.

Todos queremos que seja feita justiça de forma célere e transparente nos casos de abusos na Igreja, mas a verdade é que não se pode falar de justiça sem haver também um cuidado por quem já cumpriu a sua pena, ou para quem, para todos os efeitos, deve ser considerado inocente dos crimes de que era suspeito.

Eu não tenho uma solução mágica para isto, como é evidente, mas a ausência de orientações leva a que cada diocese trate à sua maneira, e na maioria das vezes mal, regressando ao abandono de que falámos acima. Isto também é trágico.

Entre a colaboração e a calúnia

Chegamos agora à questão do Pe Joaquim Nazaré. Eu entendo, aceito e até aplaudo a iniciativa do Pe Joaquim de entregar às autoridades eclesiais e civis, e à Comissão Independente, a informação de que dispunha, ainda que não passasse de boatos ou de recortes de jornais. Não há mal em fazer chegar essas informações a quem as possa depois investigar e averiguar. Onde ele errou, a meu ver, foi em decidir falar com a imprensa e, mais especificamente, tecer opiniões jurídicas sobre casos sem ter as devidas provas. Fazê-lo ao abrigo de um anonimato mal-amanhado – toda a gente que o conhece reconheceu-o e até eu, que não o conheço, sabia a identidade dele 24 horas depois de as notícias saírem – foi uma ideia ainda pior.

A mim também me chegam muitos boatos. Durante a fase do relatório e das listas, cheguei a ser contactado por um representante legal de uma alegada vítima de um padre, que me disse que o que o seu cliente queria era que o nome do alegado abusador se tornasse público, mas que não tencionava aprofundar o caso ou falar com as autoridades eclesiásticas para possibilitar um processo canónico. Como é evidente não colaborei com o que me pareceu claramente uma tentativa de assassinato de carácter, sobretudo sem ter a menor forma de poder verificar a veracidade das alegações. Mas caso não soubesse que o nome já era do conhecimento das autoridades civis e eclesiásticas, não teria problema nenhum em partilhar a informação que tinha recebido, para que eles pudessem investigar e tomar medidas. Uma coisa é colaborar com a justiça, outra é procurar escândalo. Seja qual for a motivação do Pe Joaquim Nazaré, ele não pode fazer acusações muito graves com base em opiniões pessoais ou alegações de que tem conhecimento.

Depois temos a decisão do Pe Nuno Aurélio de o processar no tribunal canónico, que é um direito que lhe assiste e de que se valeu. Poderia ter simplesmente deixado cair o caso? Poderia. Talvez fosse mais sensato, mas não o fez e não me parece que deva ser criticado por isso. A sentença do processo parece-me ter sido justa e esperada, e a pena aplicada perfeitamente razoável. A decisão do padre Joaquim Nazaré de não colaborar é também um direito que lhe assiste, mas revela desrespeito pela metodologia da Igreja que serve, o que é lamentável.

Por fim, temos a decisão, a meu ver também trágica, de um órgão de imprensa sério ter decidido noticiar este caso de uma forma sensacionalista. O título do artigo está claramente feito para passar a mensagem de que a Igreja está a castigar um padre por ele ter denunciado casos, o que se fosse verdade seria extraordinariamente grave, mas não é. Reforça também a ideia já muito disseminada de que a Igreja está interessada, acima de tudo, em encobrir casos e evitar escândalos, o que me parece injusto, sobretudo no caso do Patriarcado de Lisboa, que já deu provas de lidar com estes casos de forma rigorosa, sobretudo nos últimos anos. Há muito a criticar na forma como as dioceses e a Igreja portuguesa têm lidado com esta crise dos abusos, e eu não tenho tido a menor hesitação em meter o dedo na ferida quando sinto que é necessário ou pertinente, mas este tipo de situação, em que se pega numa sentença justa por difamação e calúnia, para a transformar num caso de perseguição e vingança, sem qualquer fundamento, não contribui para nada.

Temos, portanto, um rol de tragédias em que não me parece haver nada de positivo a salientar. Que bom que seria que fosse o último, mas temo que não será.

Leia também

Cronologia dos casos de abusos sexuais na Igreja em Portugal

O que sabemos das listas dos abusadores compostas pela Comissão Independente

Abusos em Portugal – O que já sabemos, o que falta saber

Wednesday, 8 November 2023

O Caso Rupnik: Como é que isto ainda está a acontecer?

Stephen P. White

A semana passada a Santa Sé anunciou que o Papa Francisco tinha decidido levantar o prazo de prescrição nas alegações contra o antigo jesuíta e famoso artista Pe Marko Rupnik. O padre esloveno tem sido acusado por mais de duas dúzias de mulheres de abusos sexuais, espirituais e psicológicos, praticados ao longo de várias décadas. A decisão do Papa de levantar o prazo de prescrição neste caso é, por isso, bem-vindo.

Contudo, a decisão de levantar o prazo de prescrição sobre estas alegações teria sido muito mais bem-vindo caso tivesse sido tomada bem mais cedo, e se o caso, até agora, tivesse sido tratado com um pingo de transparência, e se a concessão à justiça não tivesse tido de ser arrancado a ferros, por assim dizer, ao Papa, por um grito colectivo de indignação e justa revolta por parte dos fiéis e, especialmente, por muitas vítimas de abuso sexual na Igreja.

Não temos espaço aqui para elencar todos os detalhes da saga do caso de Rupnik, nem sequer os detalhes que são públicos, mas é necessário fazer um pequeno resumo para compreender o quão inexplicável e desadequado tem sido o tratamento dado a este caso.

As primeiras alegações conhecidas sobre as más-práticas e os abusos sexuais cometidos por Rupnik chegaram à atenção dos jesuítas em 2018. Tendo sido consideradas credíveis, estas alegações foram encaminhadas para a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF). Elas incluíam a alegação de que Rupnik tinha dado absolvição a uma cúmplice no pecado contra o Sexto Mandamento – um crime grave que incorre em excomunhão automática.

Em Março de 2020, depois de os jesuítas terem determinado que Rupnik tinha provavelmente incorrido excomunhão, e depois de terem enviado o caso para a CDF para maior investigação, mas antes de a congregação ter confirmado (e subsequentemente levantado) a dita excomunhão, o Pe Rupnik foi convidado a pregar um sermão quaresmal ao Papa na Cúria Romana.

Um ano mais tarde, em 2021, os jesuítas levaram a cabo outra investigação de alegações contra Rupnik feitas por membros femininos da sua antiga comunidade na Eslovénia. Esta investigação determinou que existiam indícios suficientes para desencadear um processo penal contra Rupnik. Pela segunda vez em dois anos, as alegações credíveis contra ele foram submetidas à CDF, desta vez com a recomendação de que fosse iniciado um processo penal.

Estas alegações foram submetidas à Congregação para a Doutrina da Fé em Janeiro de 2022. Nesse mesmo mês, o Papa Francisco encontrou-se pessoalmente com Rupnik. Um mês mais tarde o padre foi sujeitado a novas restrições pelos seus superiores jesuítas. Em Outubro de 2022 a CDF – agora conhecida como Dicastério para a Doutrina da Fé – determinou que tinha sido ultrapassado o prazo de prescrição, e por isso não seria aberto um processo canónico.

No início deste ano, em 2023, os jesuítas abriram outra investigação interna contra Rupnik – pelas minhas contas, a terceira investigação no espaço de cinco anos. Entretanto, Rupnik violou as restrições que lhe tinham sido impostas pelos jesuítas. Esta persistente desobediência levou-o eventualmente a ser expulso da Sociedade de Jesus em Junho deste ano.

O que nos traz à decisão, tornada pública há duas semanas, de que o Pe Marko Rupnik tinha sido incardinado na diocese Eslovena de Koper onde, segundo uma declaração daquela diocese, “goza de todos os direitos e deveres dos padres diocesanos”.

Como é que é possível que alguém, no ano 2023, pudesse pensar que a resolução justa para o caso de um padre que enfrenta tantas alegações, confirmadas como sendo credíveis em tantas investigações diferentes, de tantos acusadores, ao longo de tantos anos, passasse por devolvê-lo discretamente ao ministério, num local diferente e sob as ordens de um novo superior?

Nada disto faz sentido. Não faz sentido se ele for culpado, e não faz sentido se ele for inocente. Talvez por isso ninguém pareça estar interessado em defender a forma como tudo isto tem sido tratado. Chegámos ao ponto exasperante em que a interpretação mais caridosa possível de tudo o que se passou é a incompetência burocrática.

Se existe uma explicação boa, razoável ou sequer plausível para a forma como se tem lidado com o caso, o Vaticano, como de costume, não tem mostrado qualquer vontade de se explicar a ninguém.

Com Roma a querer dizer o menos possível, a mensagem que se passa não é de preocupação pelas vítimas, nem de dedicação à transparência, nem um esforço para restaurar a confiança, nem a determinação de que a justiça seja não só feita, como se veja que foi feita. Antes, a mensagem que passa (certamente sem intenção) é de um gritante desprezo pela inteligência dos fiéis e de total desrespeito pelas vítimas dos abusos sexuais na Igreja.

O problema de tudo isto vai muito para além da culpa ou da inocência do próprio Rupnik, ou sequer da necessidade de justiça e de cura para os que possam ter sofrido os seus abusos. É a paciência das vítimas de abusos que está a se repetidamente posta à prova, a confiança dos fiéis que está cada vez mais saturada e os obstáculos à proclamação do Evangelho que se tornam cada vez maiores à medida que a credibilidade da Igreja diminui.

A revolta que se fez sentir com a notícia do regresso de Rupnik ao ministério foi de tal ordem que a Comissão Pontifícia para a Protecção de Menores interveio, convencendo o Santo Padre a mudar de rumo. Ainda bem para a Comissão, e ainda bem para o Papa por voltar atrás no que diz respeito ao prazo de prescrição.

Tudo dito, é difícil imaginar uma resolução para o caso de Rupnik que possa desfazer a percepção já criada por este caso, nomeadamente de que não obstante todos os esforços de reforma, muito elogiados, do Papa Francisco, na verdade pouca coisa mudou. Como é que a Igreja pode afirmar credivelmente ter aprendido com as suas falhas do passado no que diz respeito a criminosos influentes como Maciel e McCarrick, quando ainda hoje se continuam a passar-se casos inexplicáveis como o de Rupnik?


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 2 de Novembro de 2023)

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Friday, 3 November 2023

Papa confirma Dubai e erros transparentes

Imagem gerada com
inteligência artificial

O Papa Francisco confirmou na quarta-feira que vai à COP28, que se realiza no Dubai. Francisco estará lá de 1 a 3 de Dezembro, podendo por isso ainda receber a delegação da organização da JMJ, no dia 30 de Novembro, na Santa Sé. Não é todos os dias que um jornalista consegue um furo a nível mundial, portanto permitam-me regozijar um pouco com o facto de eu ter dado esta notícia há 15 dias, publicada aqui no Expresso (só para assinantes) e aqui no The Pillar.

Na quarta-feira passada a Conferência Episcopal enviou para as redacções uma nota dando conta do número de pessoas – padres e leigos – que foram afastadas cautelarmente das suas funções por suspeitas de abuso sexual desde que foi publicado o relatório da Comissão Independente. A surpresa com que vi esses números foi grande, pela simples razão de que estavam todos errados. Não escrevi nada sobre o assunto no mail da semana passada porque precisei de mais tempo para poder verificar e ter a certeza que o erro não era meu, mas agora posso afirmá-lo com segurança. Escrevi aqui um texto a explicar como é que surgiu o erro, e a tirar algumas conclusões. Sublinho que não foi por deter informações secretas que percebi que os números estavam mal, bastou-me recorrer a dados que são públicos, seja por notas publicadas pelas dioceses, seja por informação recolhida por mim e entretanto publicada no meu blog, aqui, aqui e aqui.

Digo-o no meu texto, mas quero deixar claro aqui que não estamos perante um caso de encobrimento por parte das comissões diocesanas (de onde partiram os erros), mas sim de descuido, ou pelo menos estou disso convencido. Contudo, se todos concordamos que a transparência é um dos factores essenciais para lidar com este flagelo na Igreja, então os organismos da Igreja têm uma responsabilidade acrescida de fornecer números e informações rigorosas. Temos um longo caminho para fazer nesse sentido.

Ainda sobre o tema dos abusos, agora chegou a vez de Espanha, e houve um volte-face no caso do Pe Rupnik, que afinal vai ser julgado pelos crimes de abusos sexuais sobre freiras de quem era director espiritual.

Chegou ao fim o Sínodo sobre a Sinodalidade. Foi sem estrondo, nem dramas. Recordemos, porém, que o processo ainda vai a meio.

Continua a tragédia da guerra na Terra Santa. Os líderes cristãos da região não fizeram grandes declarações nos últimos dias, à excepção do Patriarcado Greco-Ortodoxo, que criticou duramente o facto de Israel estar a atingir centros culturais, desportivos e locais de culto em Gaza. A Ajuda à Igreja que Sofre tem estado em contacto diário com a comunidade católica que está na Igreja da Sagrada Família em Gaza. É grande o cansaço, e só não falo em desespero porque, como diz a irmã Nabila, “só temos Deus”. Rezem, por favor, pela paz em geral, mas especialmente para que Deus console estes cristãos em Gaza. E se quiserem enviem-me mensagens que eu talvez consiga fazer-lhes chegar através da AIS. No caso da minha família, enviámos uma fotografia dos filhos com um desenho a dizer que estamos a rezar por eles. Parece pouco, mas é um encorajamento para quem lá está, saber que não estão esquecidos.

E porque a guerra na Terra Santa nos pôs a falar novamente sobre a questão do terrorismo islâmico, o artigo desta semana do The Catholic Thing fala precisamente sobre a relação entre o Cristianismo e o Islão, recorrendo a citações de grandes pensadores, incluindo São João Paulo II.

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