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Casey Chalk |
“Se tivermos de escolher entre abdicar da religião ou da
educação”, afirmou o fundamentalista cristão e populista William Jennings
Bryan, “então abdicaremos da educação”. É fácil rirmo-nos hoje de tamanho
absurdo, embora Bryan, por mais falhas que tivesse, estivesse a defender o
Cristianismo daquilo que considerava serem ataques modernistas e antirreligiosos
da escola pública americana. Embora muitos protestantes tenham vergonha, hoje,
do anti-intelectualismo de Bryan eu, como católico convertido do
protestantismo, detecto uma perspectiva muito problemática na sua visão
absolutista que contrapõe a fé á razão.
O teólogo italiano Mauro Gagliardi argumenta no seu livro
“A Verdade é Sintética: Teologia Dogmática Católica”, que o Protestantismo
opera segundo um modelo de “ou-ou” que vê a verdade como um conjunto de
binários simplistas. Já a teologia católica emprega um princípio de “não só,
mas também” que sintetiza diferentes realidades.
Gagliardi identifica dois princípios fundacionais do
Protestantismo. O primeiro é biblicismo, a crença de que a Bíblia é auto-interpretativa.
Mas “quando Lutero diz que a Bíblia se interpreta a si mesma ele quer dizer, de
facto, que é o leitor individual que o interpreta. O leitor das Escrituras não precisa…
da Tradição, do Magistério, dos Padres nem dos Doutores da Igreja”.
Os protestantes costumam responder que isso confunde a
noção de “sola scriptura” de alguns evangélicos com a noção de “sola scriptura”
do Protestantismo histórico. Esta última, afirmam, aprecia a necessidade de se
interpretar a Bíblia à luz da tradição eclesial.
É verdade que alguns protestantes falam favoravelmente da
tradição. Porém, como os filósofos católicos Bryan Cross e Neal Judisch
argumentam, acaba sempre por ser o protestante como indivíduo quem decide quais
são as tradições que devem ser normativas. Os protestantes adoram citar Santo
Agostinho sobre a soteriologia, por exemplo, já não tanto sobre a eclesiologia ou
a mariologia. Sem outro princípio unificador para além da Bíblia, o
Protestantismo é inerentemente instável e frágil. “É por isso que, desde o
início, o Protestantismo se dividiu em centenas de diferentes denominações,
todas obviamente convencidas de que são os intérpretes corretos da palavra de
Deus”, refere Gagliardi.
O segundo princípio fundamental do Protestantismo é a justificação,
nomeadamente a crença de que o cristão se salva unicamente pela Graça de Deus,
através da fé – daí os credos reformados da “sola gratia” e da “sola fide”. Gagliardi
refere-se a isto como uma conceção de soteriologia totalmente passiva: “mesmo
em relação à fé, a pessoa não é um agente positivo; é Deus quem dá o dom e também
é Ele quem está activo no dom”.
Isto é ainda mais evidente na famosa doutrina teológica luterana
de “simul justus et peccator” (simultaneamente justo e pecador), que ensina que
mesmo depois do momento salvífico o cristão retém quer o pecado original quer
todos os seus pecados pessoais.
Gagliardi argumenta que a doutrina protestante da
justificação reflete a manifestação do princípio “ou-ou” na forma como opõe a
humanidade e Deus. A salvação é ou uma obra humana ou divina, e por isso “é
preciso escolher”. Uma vez que no homem não existe nada de bom, o agente
inteiro e exclusivo na salvação é Deus. Vemos algo de semelhante nos
ensinamentos luterano e calvinista sobre a predestinação: uma vez que o homem é
impotente em relação ao seu destino eterno, é só Deus quem escolhe. De facto,
Calvino popularizou a noção da “dupla predestinação”: em toda a eternidade é
Deus quem determina quem será salvo e quem será condenado, independentemente da
escolha.
Esta dinâmica é visível também na cristologia
protestante, especificamente no que diz respeito à humanidade de Cristo.
Gagliardi escreve: “se Cristo é o Salvador, e se nele falamos de mérito, então
é devido ao facto de que a divindade do Logos habita na sua humanidade. Pode-se
dizer que mesmo para Jesus é verdade que é Deus quem faz tudo, que o ser humano
não faz nada”.
Segundo este sistema, a humanidade de Cristo não é um
instrumento junto com a sua divindade que colabora verdadeiramente na redenção
do homem, mas um tipo de recipiente em que Deus se revela. Isto conduz a uma
antropologia muito diferente daquela que encontramos no Catolicismo.
Consideremos, por exemplo, a própria ideia de um santo.
Ou, em alternativa, pensemos na diferença entre uma soteriologia protestante em
que a fúria divina cai sobre um Cristo que se “faz pecado” por nós e uma
soteriologia católica em que o Deus-homem se oferece a si mesmo como sacrifício
perfeito de expiação.
O paradigma do “ou-ou” vê-se também na doutrina
protestante de “soli deo gloria”. Uma vez que só Deus é digno de glória, não só
se proíbe a veneração de santos, mas também a devoção mariana. A veneração de
humanos, dizem os protestantes, detrai necessariamente da adoração devida a Deus.
Os iconoclastas da Reforma acreditavam que as imagens, ícones e relíquias eram blasfemos
e que deviam ser destruídos para bem da pureza litúrgica e eclesial. Os huguenotes
franceses, por exemplo, destruíram as relíquias de Santo Ireneu de Lyon, um dos
maiores padres da Igreja.
Tendo em conta estes exemplos (e outros), Gagliardi
descreve o princípio “ou-ou” como “a assunção fundamental do Protestantismo” e
explica:
A Palavra de Deus ou se encontra na Escritura ou na
Tradição; logo, devemos escolher, e Lutero escolhe a Escritura, apagando a
Tradição. A justificação acontece ou pela fé ou pelas obras humanas, por isso
só a fé salva. A salvação é fruto ou da graça divina ou do mérito humano, por
isso só a graça salva. Só se deve honrar a Cristo ou a Maria e aos santos, por
isso, obviamente, escolhe-se Cristo. Por fim, a glória é devida a Deus ou a um
ser humano.
O resultado desta oposição dialética é uma visão profundamente
pessimista do homem, bem como a priorização do subjectivo sobre o objectivo.
Os católicos têm sido tentados frequentemente pelo mesmo
pensamento dualista, quer isso se manifeste na importação de pensamento
protestante, na nossa teologia ou na apresentação do pensamento e da prática
católica como sendo uma coisa e não outra, ainda que não exista nenhum pronunciamento
do magistério sobre o assunto. Porém, como argumenta Gagliardi, o Catolicismo é
inerentemente sintético: a revelação é não só Escritura, mas também Tradição; a
salvação requer não só acção divina, mas também humana; Deus é digno de
adoração, mas os santos são dignos de veneração.
O princípio de “não só, mas também” é o que mantém o Catolicismo
católico, isto é, fiel à plenitude da Verdade.
Casey
Chalk escreve para a Crisis
Magazine, The AmericanConservative e a New Oxford Review. É licenciado em história e ensino pela
Univesidade de Virgínia em tem um mestrado em Teologia da Cristendom College.
(Publicado pela primeira vez em The
Catholic Thing na terça-feira, 5 de janeiro, de 2021)
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