Randall Smith |
No seu esforço para se unir às “coisas do alto” acabou
por se encher de outro tipo de arrogância, dando-lhe a ilusão de ocupar um
lugar privilegiado fora do mundo, olhando-o de cima. Ao procurar o Deus “nas
alturas”, Agostinho esqueceu-se de procurar o Deus “cá em baixo”. O Cristo
Encarnado – cujo nascimento celebramos nesta época de Natal – ensinou-lhe a
encontrar Deus não só “nas alturas”, mas também “cá em baixo”: não só nos picos
da mente, mas na matéria e nas realidades criadas do mundo.
Por isso, embora Agostinho tenha aprendido muito dos
livros platónicos, o que é igualmente interessante é aquilo que não encontrou
lá. Não encontrou nada sobre a Palavra se tornar carne e habitar entre nós;
nada sobre o Deus que se esvazia e assume a forma de um servo; nada sobre Jesus
a humilhar-se e a tornar-se obediente até à morte, mesmo a morte de cruz. “Onde
estava esse amor que edifica sobre as fundações da humildade?”, perguntou.
Esta humildade não se baseava no desprezo pelo corpo, mas
no amor bem-ordenado por ele; não em considerar os pecados como coisas carnais,
mas na total responsabilização por eles; não em tentar elevar-se até ao divino,
mas no reconhecimento das próprias limitações e pecados e da necessidade de
perdão e auxílio divino.
E essa foi a segunda coisa que Agostinho não encontrou
nos livros dos platonistas: um relato da graça de Deus. Esse, acabou por
encontrar nas cartas de São Paulo.
Em breve deixaria de se querer contar entre um grupo de
elite de filósofos que procuravam chegar aos pontos mais altos da “linha
dividida” de Platão através dos seus próprios esforços intelectuais. Doravante,
pelo contrário, depositaria a sua fé no “criador de todas as coisas, visíveis e
invisíveis”, que se tinha mergulhado na matéria da sua criação no amor, para a
elevar no amor.
Para Agostinho a “linha dividida” já não era apenas uma
ascensão vertical. A “salvação” era agora “história da salvação”. A linha tinha
sido deitada de lado, por assim dizer, tornando-se a história da entrada de
Deus na História – a sua autorrevelação e a redenção da humanidade realizadas
no tempo e nos eventos da história humana. Desta perspetiva os humanos devem
fazer a sua parte, mas a sua parte é tornada possível pelo amor divino que
existe para além dos nossos méritos e dos nossos esforços. Assim, para se ser
elevado, é preciso primeiro ser “como Cristo” e abraçar os humildes, os pobres,
os meigos e os humildes. É necessário unir-se ao seu corpo e morrer para nós
mesmos, e para o nosso egoísmo, para se ser erguido com Ele na comunhão eterna
de amor, como o Filho está unido ao Pai.
Santo Agostinho |
Deus deu à Criação uma ordem e é importante que nos
conformemos a ela. Não nos realizamos fugindo para outro mundo ou impondo uma
ordem estranha a este. Realizamo-nos, e o nosso mundo realiza-se connosco,
quando compreendemos a ordem que Deus pretende e nos disciplinamos para
preservar e alargar essa ordem. E nesta nova vida, este acesso a uma nova ordem
e harmonia não é algo que criamos ou alcançamos sozinhos; é algo que nos é dado
de fora do mundo, por um poder fundamental de amor criativo que transcende as
nossas próprias capacidades.
Por isso a redenção cristã é a transformação da criação e
da pessoa, não uma obliteração ou negação. Não podemos destruir a natureza para
realizar o nosso destino humano. Nem podemos controlar completamente a natureza
e canalizá-la para os nossos propósitos egoístas sem nos preocuparmos com o
bem-estar dos outros. A mensagem cristã é de que apenas realizamos o nosso
destino humano quando o vivemos de acordo com a ordem natural criada por Deus,
compreendendo-a de forma “encarnacional” e tratando-a “sacramentalmente” como
um “instrumento” e “corporização” do amor de Deus.
Deve ter sido fascinante para um homem com um intelecto
tão sofisticado como o de Agostinho reconhecer que todo o mundo conceptual da
antiga filosofia tinha sido virado de pernas para o ar por uma única criança
numa manjedoura em Belém – uma criança que, para além de toda as expectativas
humanas, era o Verbo feito carne. Hoje não é mais fácil do que então, embora
também não seja mais difícil. Mas se a história for verídica – e é – então não
é nada menos do que a chave do sentido de todas as coisas.
Randall Smith é professor de teologia na Universidade de
St. Thomas, Houston.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na segunda-feira, 27 de Dezembro de
2021)
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