Thursday, 24 May 2012

Küng, a velha do eléctrico 18


No meu dia-a-dia, em transportes públicos e no bairro onde vivo, é frequente assistir às litanias de queixas dos idosos. Sem pôr em causa a legitimidade das suas queixas, confesso que é deprimente perceber que há pessoas que chegam à velhice desiludidas, revoltadas, que apenas vêem razões para refilar sobre tudo o que se passa no mundo.

Vem isto a propósito de Hans Küng. O teólogo suíço é simultaneamente o porta-voz e o espelho de uma corrente dentro da Igreja que se assume como crítica da hierarquia e, sobretudo, do Papa.

Tal como as velhinhas que ouço a falar no eléctrico, Hans Küng só se sabe lamentar.

Há semanas, tendo sido convidado para participar num evento comemorativo do Concílio Vaticano II, o teólogo suíço agradeceu mas recusou, dizendo que no clima actual da Igreja, seria mais adequado um serviço fúnebre.

Agora, contudo, parece ter perdido completamente o norte e num texto publicado num jornal alemão chega ao ponto de acusar o Papa de ser cismático. Sim, leram bem, não é Küng – que está impedido de ensinar teologia católica, que abraça movimentos que fazem “apelos à desobediência” e que aceita de bom grado prémios entregues pela maçonaria – que é cismático… é Bento XVI.

E porquê? Tudo porque o Papa cometeu o terrível pecado de convidar de volta à comunhão da Igreja cristãos que estavam afastados há muito tempo. Um gesto louvável de ecumenismo, dirão alguns… e não é Küng um grande defensor do ecumenismo?

Mas o problema é que estes, que tudo indica irão agora regressar à Igreja, são os cristãos errados. Não são os protestantes amigos de Küng, são os tradicionalistas da Sociedade de São Pio X, e para Küng, pelos vistos, a hospitalidade ecuménica deve servir-se só a alguns.

Küng alerta que os tradicionalistas da SSPX são “ultra-conservadores, anti-democráticos e anti-semitas”. Eu próprio já argumentei aqui que apesar de ser favorável a esta reintegração, os membros da SSPX são, em boa parte, gente complicada, triunfalista e arrogante.

Mas serão mais desagradáveis que os 400 ou mais padres que, sobretudo na Áustria fazem “apelos à desobediência”, professam abertamente opiniões que são incompatíveis com o catolicismo mas que, todavia, continuam em comunhão com Roma? Devem uns estar dentro e outros fora?

No seu texto, Küng avisa que os bispos e padres tradicionalistas têm ordens “certamente inválidas”. É uma opinião que alguns, muito poucos, defendem, mas que o Vaticano sempre descartou. Tanto que qualquer católico pode, sobretudo se não tiver um sacerdote ou uma paróquia “regular” por perto, participar dos sacramentos com sacerdotes da SSPX.

Mas o mais curioso é que mais à frente Küng afirma que em vez de perder tempo com estas criaturas terríveis, o Papa devia era “reconciliar-se com as igrejas reformadas” [protestantes]. Sr. Padre Küng, se as ordens dos tradicionalistas da SSPX são inválidas, as do clero das igrejas reformadas são o quê?

Humildade e obediência
Küng está revoltado. Foi um dos protagonistas do Concílio Vaticano II e é com horror que, perto do fim da sua vida, vê na Igreja um ambiente que pretende recuperar alguma da herança que depois do Concílio se pensava perdida. Ele, e outros, mostram-se muito ciosos dos documentos conciliares nesta altura, esquecendo-se que nos mesmos documentos que juram estar a defender, não existe qualquer abertura ao sacerdócio feminino, à aceitação das práticas homossexuais ou à abertura da Eucaristia a todos, que tão vigorosamente advogam. É o grande problema do “Espírito do Concílio”, aquela coisa vaga que serve para cada um defender o que bem quiser com a suposta autoridade do Vaticano II.

Até coloco a hipótese, embora para mim pouco provável, de Küng ter razão nos seus queixumes. Não há falta de exemplos de santos e santas que foram injustiçados pela hierarquia e silenciados, tendo sido reabilitados só postumamente. Mas a grande diferença entre esses e Küng é o espírito de obediência, fruto de uma tremenda humildade. Coisa que quem promove “apelos à desobediência” jamais compreenderá.

Sei que Hans Küng tem trabalho feito, e bem feito, na área da Teologia. Que é um dos teólogos incontornáveis do século XX, sobretudo do período do concílio.

Infelizmente, para a minha geração, ele será lembrado para a posteridade como um velho revoltado que só se sabe lamentar e queixar. Como as velhas do 18, que me acompanham todas as manhãs.


Filipe d'Avillez

3 comments:

  1. Como Kung, mas sem pensar que Bento XVI é cismático, também já me interroguei se vale a pena acolher os lefebvrianos quando eles pensam tão diferente da Igreja católica: diálogo ecuménico, diálogo inter-religioso, relação com o judaísmo, liberdade de consciência, participação em órgãos colegiais, concelebrações, concepção do sacerdócio (laical/ministerial)... O uso do latim acaba por ser uma questão menor.

    Se os lefebvrianos se retractam em tudo isto (o que ainda não é claro), deixam de ser lefebvrianos e devem ser acolhidos de braços abertos. Regressam. Caso contrário, fazendo comunhão com eles, parece-me que estamos a abdicar de muito. Mesmo que fechemos os olhos -o que não augura nada de bom. Ainda há dias ouvi o prof. Borges de Pinho a dizer que a união não pode acontecer a qualquer preço, precisamente em relação a estes tradicionalistas. Não me parece que seja hanskunguiano. Quanto às velhinhas do 18, eu teria mais consideração por elas.

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  2. A questão do acolhimento não é simples, admito. Mas penso que é preciso distinguir entre coisas fundamentais e coisas acessórias. Há precedentes no que diz respeito a manter comunhão com grupos que discordam de certos pontos de doutrina (http://en.wikipedia.org/wiki/Feeneyism). Para mim há uma questão de coerência, podemos manter fora da Igreja um grupo que se limita a professar aquilo que muitos dos nossos antepassados professaram durante séculos, mas considerar que estão em comunhão uma legião de católicos que propõe "reformas" que não estão previstas em qualquer concílio e chocam com milénios de tradição? Não me parece correcto. Para mim, e até para bem deles, os lefebvrianos estão melhor dentro do que fora da Igreja.

    Por mais estima que tenho pelo Dr. Borges de Pinho, com quem ainda tive o privilégio de trabalhar na Renascença e que é uma autoridade neste campo, quem decide qual é o "preço" a pagar para a união não é ele, nem eu, nem Kung. É Bento XVI, e ele não parece ser da mesma opinião.

    Finalmente, tem toda a razão quanto às velhinhas do 18, o texto poderá ter sido demasiado duro para com elas, pelo que peço desculpa, coitadas. Mas serviu para ilustrar um ponto.
    Obrigado pelo comentário, abraço!
    Filipe

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    1. Filipe, o ponto que tocas na tua resposta é que me parece o fundamental.
      Os tradicionalistas, cujo trabalho e realidade é desconhecido da grande maioria dos católicos, limitam-se a viver de acordo com a milenar tradição da igreja.
      Os membros da Fraternidade São pio X, vivem hoje, exactamente, da mesma forma em que viviam antes do concilio Vaticano II.
      Assim como não era licita antes, não creio que seja ilícita hoje, ao contrário do que gostavam muitos, que defendem que na igreja devíamos passar todos a ser protestantes...
      Se há coisa certa é que o concílio não determinou, de forma obrigatória, que as pessoas deviam viver de forma diferente da que viviam no dia anterior ao encerramento dos trabalhos.
      Essa forma de pensar resulta de uma interpretação abusiva e ilícita dos acontecimentos, nem sequer de documentos conciliares, que a esse respeito, como digo, não introduziram nenhuma ruptura.
      O problema da FSSPX foi a ordenação de bispos. Nada mais.
      Hoje como antes são verdadeiros católicos e por isso querem estar em comunhão. O mesmo não se passa com os reformados, que nem são católicos, nem querem estar em comunhão.

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