Friday, 27 October 2023

Abusos – Números baralhados

Na passada quarta-feira surgiu uma notícia sobre o número de padres que foram cautelarmente afastados por suspeita de abuso sexual de menores ou pessoas vulneráveis, desde que saiu o relatório da Comissão Independente.

Alguns órgãos de informação citaram uma nota da CEP que dizia o seguinte:

Por via do relatório da Comissão Independente foram afastados oito membros do Clero, tendo regressado ao exercício do ministério seis sacerdotes, mantendo-se dois afastados.

Para além do número anteriormente apresentado foram afastados nove membros do clero e um leigo com responsabilidades paroquiais, tendo dois sacerdotes regressado ao exercício do ministério, mantendo-se os demais afastados, bem como o citado leigo.

Como vamos ver de seguida, estes números estão completamente errados.

Na verdade, o número de padres que foram afastados por via do relatório da Comissão Independente foram 15, dos quais continuam afastados nove. O número de padres afastados por via das comissões diocesanas, já depois do relatório, é três, e não nove, mais dois leigos, e não um.

Como é que isto aconteceu?

Ao que apurei, surgiu um pedido da comunicação social sobre o assunto. Perante esse pedido, a Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas de Protecção de Menores e Adultos Vulneráveis, pediu um levantamento a todas as comissões diocesanas. Essa informação foi sistematizada e enviada para a CEP, que emitiu o comunicado.

O que se passou foi que a informação que veio das comissões diocesanas continha erros, e esses erros não foram detectados, tendo chegado ao comunicado final. Já vamos ver quais são os erros, mas para quem não tem paciência para ler os detalhes todos, deixo primeiro as conclusões.

Nojo e dados confusos

E a primeira conclusão é que isto é difícil. É difícil para já porque é uma matéria que impressiona e mete nojo. Ninguém mergulha nestas histórias por gosto, e por isso mesmo poucos são os que se dedicam a analisar dados e cruzar números.

Depois há o problema dos próprios números e das discrepâncias naturais que podem surgir quando falamos de casos que frequentemente são muito diferentes. Por exemplo, quando saíram as listas da Comissão Independente várias dioceses referiram que tinham nas suas listas nomes de padres sem nomeação. O que é que significa estar sem nomeação? O problema é esse, pode significar muita coisa. Pode significar que o padre está velho, incapacitado e num lar; mas também pode querer dizer que o padre fugiu do país e está em parte incerta; ou que está a estudar; ou que o bispo o deixou “na prateleira” por uma ou outra razão. Uma mesma resposta pode cobrir muitas realidades diferentes.

Também houve casos em que as dioceses receberam na lista nomes de padres que já estavam com processos abertos, ou até já estavam cautelarmente afastados. Nesses casos as dioceses contabilizam esse afastamento como sendo por via da Comissão Independente, ou não? Se calhar uns até fazem de uma forma e outros de outra, mas há espaço para se criarem aqui discrepâncias.

Uma coisa posso assegurar, pelo menos daquilo que tenho conseguido perceber com as pessoas com quem vou falando. Cometem-se erros, sim – e aqui estamos a falar de erros de tratamento de dados, e não na forma como se lidam com os próprios casos de abuso – mas isso não significa que as pessoas estão a agir de má vontade ou a tentar esconder alguma coisa.

Mas é preciso muito cuidado a tratar estes números, porque com tantos casos que surgem, por vezes com detalhes, outras sem; de 21 dioceses diferentes, e ainda de mais não sei quantas ordens religiosas; às vezes com informação duplicada, ou mal identificada, é facílimo perdermo-nos. Eu passo muito, mas mesmo muito tempo a manter as minhas bases de dados sobre esta matéria o mais completas possível. Mas a maioria dos jornalistas não tem tempo nem conhecimentos para ir esquartejar os números em detalhe para ver se estão correctos ou não.

O problema é que quando os números errados entram em circulação nos media, facilmente esse erro se torna um “factoid” que é replicado vezes sem conta.

Os detalhes

Dito isto, passemos então ao esquartejamento dos dados.

Sobre os padres que foram suspensos por via do relatório da Comissão Independente, ou mais precisamente das listas que foram entregues, a nota da CEP falava em oito membros do clero afastados, dos quais seis já regressaram ao activo e dois mantêm-se afastados.

Não vou explicar quais as respostas das comissões diocesanas que induziram em erro a Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas, limito-me a indicar quais são os números correctos:

Lisboa – Foram afastados quatro padres, dos quais três já foram reintegrados e um tem o processo ainda a decorrer.

Porto – Foram afastados três padres, todos os processos ainda decorrem. Decorrem ainda processos de quatro padres que nunca foram afastados, embora nunca tenha sido explicado porquê.

Évora – Foi afastado um padre, cujo processo ainda decorre.

Braga – Foi afastado um padre, cujo processo ainda decorre.

Angra – Foram afastados dois padres, cujos processos ainda decorrem.

Guarda – Foi afastado um padre, que já foi reintegrado. Este processo, se bem se recordam, não foi linear. O bispo começou por dizer que não o iria afastar, mas mais tarde acabou por fazê-lo.

Vila Real – Foi afastado um padre, que já foi reintegrado. Este processo também não foi linear, uma vez que o padre foi imediatamente afastado, mas por ser originário da diocese de Setúbal demorou algum tempo até se decidir que seria julgado por Vila Real.

Viseu – A lista da comissão independente incluía o nome de um padre que já estava afastado na altura. Compreende-se assim que a Comissão Diocesana diga que este sacerdote não foi afastado por via do relatório da Comissão Independente, mas de facto é um padre que constava da lista e que se mantém afastado.

Assim, temos um total de 14 padres afastados, dos quais cinco foram reintegrados e nove continuam afastados. Acresce a este total um padre capuchinho que foi afastado e posteriormente reintegrado, o que eleva o número para 15. É natural, contudo, que os dados da CEP, que tinham por base os das Comissões Diocesanas, não incluíssem este membro de uma ordem religiosa.

Como se pode ver, a discrepância ainda é significativa. Não foram oito os padres afastados, foram 15, foram de facto seis os reintegrados, mas só se incluirmos o capuchinho, pelo que o número apresentado pela CEP estava errado, e não são dois os que se mantêm afastados, são seis. Ou seja, em três valores, nenhum está correcto.

Passemos então aos números dos que foram afastados por via de processos posteriores à publicação do Relatório Independente e entrega das listas às dioceses e às ordens religiosas.

A CEP indica que são nove membros do clero e um leigo com responsabilidades paroquiais, para um total de 10 pessoas. Também aqui os números estão mal, mas por dois erros mais simples. Num caso a diocese indicou como membro do clero um suspeito de abusos que, afinal, é leigo, o que muda o número para oito clérigos e dois leigos. Contudo, o número de clérigos também está errado, uma vez que uma das dioceses, que tinha indicado cinco padres afastados por via das listas, depois duplicou por engano este valor quando respondia sobre afastamentos por via das Comissões Independentes, pelo que é necessário retirar esses cinco aos oito, para um total de três clérigos. (O valor de cinco padres afastados por via das listas também estava errado, entretanto…) Destes três, dois já terão sido reintegrados.

Resumindo, nesta categoria houve um total de três padres e dois leigos afastados, dos quais se mantêm afastados um padre e dois leigos.

E são estes os números. Como disse, não é fácil nem é simples ter isto tudo sistematizado e organizado. É precisamente para ajudar que eu mantenho no meu blog três posts que são ferramentas fundamentais para analisar esta questão. Consultem-nos à vontade, e não deixem de me apontar eventuais erros que encontrem, ou informações em falta.

Cronologia dos casos de abusos sexuais na Igreja em Portugal

O que sabemos das listas dos abusadores compostas pela Comissão Independente

Abusos em Portugal – O que já sabemos, o que falta saber

As palavras dos líderes religiosos da Terra Santa e bispos de pernas tremidas

Irmã Nabila, em Gaza, antes da guerra

Já vamos em quase vinte dias de conflito na Terra Santa, com o número de mortos sempre a subir. O que andam a dizer os líderes religiosos locais sobre esta guerra? Aqui podem ler as principais declarações, com alguns destaques meus, e aqui podem ler a minha primeira análise a estas declarações, onde concluo que infelizmente a voz que mais urgentemente precisa de ser escutada nesta situação é a que tem menos força.

Entre os palestinianos sitiados em Gaza incluem-se cerca de mil cristãos, que são na maioria ortodoxos, com alguns católicos. No dia 19 à noite Israel atingiu o complexo da Igreja Ortodoxa Grega, fazendo mais de uma dúzia de mortos. Alguns dos sobreviventes mudaram-se para a paróquia católica, que já estava sobrelotada, criando ainda mais pressão sobre os recursos. Aqui podem ler o testemunho de uma freira que está a ajudar a cuidar destes refugiados.

Esta sexta-feira o Papa Francisco convida-nos a fazer novamente um dia de jejum e oração pela paz na Terra Santa. Juntemo-nos a este esforço.

Mudando de assunto, o cardeal D. Américo já tomou posse enquanto bispo de Setúbal. Esta quinta-feira foi publicada uma longa entrevista em que o bispo não descarta a possibilidade de vir a ser Papa um dia, mas admite que lhe vão tremer as pernas quando chegar o dia de votar num conclave. Pelo meio há um detalhe importante: as contas ainda não estão fechadas, mas a JMJ deu lucro.

A primeira fase do Sínodo sobre a Sinodalidade, que está a decorrer em Roma, está a chegar ao fim. Os participantes escreveram uma carta aos fiéis, e o Papa fez uma intervenção em que voltou a criticar o clericalismo.

E não deixem de ler o artigo desta semana do The Catholic Thing, que volta a falar sobre a relação entre o Cristianismo e o poder secular. O padre Paul Scalia explora o significado de dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César, mas também de evitar que César se apodere daquilo que é de Deus. Leiam aqui, que vale a pena.

Thursday, 26 October 2023

A voz que mais precisa de se ouvir na Terra Santa é a que tem menos força

O cardeal Pizzaballa e o Patriarca Ortodoxo
Comecei hoje a fazer uma coisa que já tinha feito durante o primeiro ano da guerra da Ucrânia. Assim, a partir desta quinta-feira podem encontrar aqui as declarações relevantes dos principais líderes religiosos da região da Terra Santa, sobre a guerra actualmente em curso.

Este texto serve para fazer uma primeira breve análise ao que já foi dito, agora que estamos perto dos 20 dias de conflito.

Judeus e muçulmanos calados

Procurei, mas sem sucesso, declarações públicas de líderes muçulmanos e judeus. As grandes referências destas duas religiões na Terra Santa são os rabinos-mor sefardita e asquenaze, para os judeus, e o grão-mufti de Jerusalém, para os muçulmanos. Não encontrei rigorosamente nada.

O que é que isto quer dizer? Não me quero antecipar… Pode querer dizer que os judeus e os muçulmanos encaram as suas lideranças religiosas de forma diferente dos cristãos. Enquanto numa situação destas o cristão espera, e bem, que seja o seu bispo a falar, e que o faça claramente, o judaísmo e o islão tendem a ser menos centralizados e por isso poderá não existir essa expectativa. Em vez disso, cada indivíduo estará mais focado no seu imã ou rabino particular, da sua própria comunidade. Espero poder conversar com contactos de ambas as religiões nos próximos dias para confirmar esta ideia.

Mas poderá dar-se o caso também de os líderes judeus e muçulmanos preferirem não falar por agora, por não poderem estar a apelar à serenidade e ao fim das hostilidades – sob pena de serem acusados de traição pelas suas próprias comunidades; nem quererem ser vistos como instigadores se usarem da palavra para incentivar e encorajar apenas os seus.

Cristãos faladores

Já com os cristãos passa-se o contrário. As principais figuras de liderança da comunidade cristã local já falaram, e bastante.

Para além do Patriarca Latino, o Cardeal Pierbattista Pizzaballa, e do líder da Igreja Greco-Ortodoxa, o Patriarca Teófilo III, temos tido declarações do líder da comunidade anglicana local (por sinal o único dos três que é de facto nativo da região) e também bastantes declarações conjuntas dos líderes das Igrejas com presença na Terra Santa.

Isto pode até parecer normal, mas é um dado extraordinário, uma vez que é mais que conhecido que as igrejas cristãs na Terra Santa se dão particularmente mal, chegando a haver frequentemente conflitos entre eles até dentro do Santo Sepulcro, cuja custódia é partilhada por seis confissões diferentes.

Todas estas declarações que têm sido feitas, tanto as individuais como as comuns, têm em comum o facto de apelarem sempre à paz, ao fim das hostilidades e à necessidade de se apostar numa nova abordagem ao problema Israelo-Palestiniano, que permita acabar com o ódio crescente entre os dois povos. Os cristãos falam aqui da perspectiva singular de quem tem fiéis de ambos os lados da barricada. A maioria dos cristãos na Terra Santa são árabes, muitos vivem ainda nos territórios administrados pela Autoridade Palestiniana – mais na Cisjordânia, poucos em Gaza – mas existem também comunidades cristãs não-árabes que vivem em Israel. Assim, apesar de poder haver alguma desconfiança por parte dos israelitas, os líderes cristãos são os que estão mais bem posicionados para falar de forma neutra neste conflito, uma vez que os muçulmanos, que têm também um “rebanho” significativo em território israelita, serão sempre encarados pelos judeus como sendo a voz dos palestinianos.

Assim, podemos ver que logo no dia 7 de Outubro o Patriarca Latino já estava a condenar a incursão do Hamas que matou mais de mil pessoas inocentes em Israel, mas também a reacção das Forças Armadas de Israel. Esta condenação dupla tornou-se mais explícita no dia 24 de Outubro, quando ele afirmou numa carta para a diocese:

“A minha consciência e o dever moral obrigam-me a dizer claramente que aquilo que aconteceu no dia 7 de Outubro no sul de Israel não é de forma alguma aceitável, e que só pode ser condenado. Não existem razões para tamanha atrocidade. Sim, temos o dever de o afirmar e de o denunciar. O uso da violência é incompatível com o Evangelho e não conduz à paz. A vida de todas as pessoas tem igual dignidade diante de Deus, que criou a todos à sua imagem.

Contudo, a mesma consciência, com grande peso no coração, leva-me a declarar com igual clareza hoje que este novo ciclo de violência trouxe mais de cinco mil mortes a Gaza, incluindo muitas mulheres e crianças, dezenas de milhares de feridos, bairros inteiros arrasados, falta de medicina, falta de água e de necessidades básicas para mais de duas milhões de pessoas. Estas são tragédias que não se podem compreender e que temos a obrigação de denunciar e condenar sem reservas. Os bombardeamentos contínuos que se têm feito sentir em Gaza há dias apenas causarão mais morte e destruição, e levarão a mais ódio e ressentimento. Não vão resolver quaisquer problemas, antes criam novos. Chegou a hora de travar esta guerra, esta violência sem sentido.”

Também logo no dia 8 de Outubro os líderes das igrejas locais condenavam qualquer acto de violência contra pessoas inocentes, tendo o cuidado de não referir nenhuma das partes em particular, deixando claro que defendem a vida das pessoas de ambos os lados da fronteira.

O “caso” do hospital

O dia 17 de Outubro colocou à prova os líderes cristãos, tendo sido o dia em que se deu a explosão no hospital anglicano de Gaza. Como se lembram, as primeiras notícias apontavam para um bombardeamento aéreo de Israel, mas mais tarde veio-se a comprovar que afinal a explosão terá sido causada por um míssil errante disparado de dentro de Gaza.

Se a declaração conjunta dos líderes das igrejas utilizou uma linguagem bastante neutra, dizendo apenas que o hospital tinha sido “profanado” por “forças militares”, o comunicado da Igreja Anglicana, a quem o hospital pertence, chegou a condenar explicitamente Israel. Se é verdade que o arcebispo Hosam Naoum nunca chegou a emendar publicamente a mão, o próprio arcebispo de Cantuária, Justin Welby, fê-lo durante uma visita a Jerusalém.

Já em relação ao ataque à Igreja Greco-Ortodoxa em Gaza, os líderes das igrejas condenam abertamente Israel, que não negou ser o autor do ataque, que diz ter ocorrido por engano, quando tentava atingir um posto de comando do Hamas localizado nas proximidades. Morreram 18 cristãos nesse ataque.

A voz que precisa de se fazer ouvir

Lendo as declarações dos líderes cristãos, não podemos deixar de notar que no geral estamos perante apelos equilibrados e sensatos à paz e ao abandono do ódio. Eles não se limitam a pedir que se baixem as armas, regressando à situação anterior, pedem antes que se encontrem novos caminhos e abordagens que permitam a Israel viver em segurança e aos palestinianos ter perspectivas de futuro e de desenvolvimento também, evitando assim que novas gerações cresçam com um ódio tão profundo pelos seus vizinhos como aquele que permitiu as atrocidades de dia 7.

Não deixa de ser irónico e triste que a voz que mais precisa de ser ouvida na Terra Santa neste momento seja a voz menos expressiva, uma vez que os cristãos são uma pequeníssima minoria em todo o território, e hoje praticamente inexistente em Gaza.

Statements by religious leaders in the Holy Land, regarding the 2023 war between Israel and Hamas

In this post I will try to collect signficant statements by local religious leaders regarding the current ongoing war between the Israeli military and Hamas, in Gaza. 

Despite an initial search, I have not found public written statements by Jewish or Muslim leaders. I searched specifically for statements by the two chief rabbis of Israel, and by the Grand Mufti of Jerusalem, but to no avail. If I find them later, I will add them. 

Highlights in the statements are my own.

Português: Neste post tentarei reunir as declarações dos principais líderes religiosos da região, sobre a actual guerra entre as Forças Armadas de Israel e o Hamas, em Gaza. 

Apesar dos meus esforços, ainda não consegui encontrar declarações públicas de líderes muçulmanos e judeus. Procurei especificamente dos dois Rabinos-mor de Israel e do Grão-Mufti de Jerusalém, mas sem sucesso. Se os encontrar adicioná-los-ei. 

Os realces nos textos - que estão todos em inglês - são da minha responsabilidade.

Wednesday, 25 October 2023

Ser de Deus

Pe. Paul Scalia

Devolve a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. Com esta frase, Nosso Senhor evitou a armadilha que tinha sido montada pelos fariseus e os herodianos. Mas é mais do que apenas uma fuga inteligente, as suas palavras também estabeleceram um dos princípios mais importantes da história do pensamento humano: governo limitado e a distinção entre Igreja e Estado.

Para nós tudo isto pode ser um dado adquirido, mas o mundo antigo não conhecia tais distinções. Note-se que os fariseus e os herodianos juntam-se contra Jesus. Estamos a falar de dois grupos que, normalmente, não trabalhariam juntos. O que eles partilham neste contexto é a convicção de que o político e o religioso deviam ser uma só coisa, sem limites e sem distinções. Jesus não se limita a frustrar o objectivo imediato de o conseguirem entalar, consegue também obrigá-los a repensar essa mundivisão.

A primeira parte da resposta de Jesus – devolve a César o que é de César – indica claramente que o Estado desempenha uma função legítima e goza de autonomia. Mesmo os líderes pagãos devem ser obedecidos. Ninguém pode dizer: “Este não é o meu Imperador!”

Os apóstolos dão seguimento a este ensinamento de Cristo. São Paulo diz: “Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus”. E são Pedro escreve: “sede submissos, pois, a toda autoridade humana, quer ao rei como a soberano, quer aos governadores”

A Igreja reconhece, por isso, e respeita a função e a autonomia legítimas do Estado. A larga maioria dos assuntos políticos não carecem de uma resposta especificamente católica, e devem ser deixados aos que exercem cargos públicos. O papel da Igreja não é de exercer o governo, mas de formar consciências e identificar os princípios de discernimento na praça pública. Os detalhes devem ser deixados àqueles a quem foi confiado o serviço do bem comum.

Mas depois temos também a segunda parte da frase: devolver a Deus o que pertence a Deus. Isso estabelece um limite à autoridade do Estado. Portanto, existe uma linha a partir da qual a Igreja diz ao Estado: “Daqui não passas”. Mas que linha é essa?

Bom, se o que tem a marca de César pertence a César, então o que tem a marca de Deus deve pertencer a Deus. O Homem, criado à imagem e semelhança de Deus, pertence a Deus. Ele não pode ser submetido ao Estado. Assim, a verdade, a dignidade e os direitos da pessoa são os limites – e ainda o propósito – da autoridade do Governo. A Igreja não pede às autoridades públicas que traduzam em lei a doutrina e os morais católicos, mas sim que governem de acordo com a verdade da pessoa.

Mas quando o Estado ultrapassa os limites e assume sobre a pessoa uma autoridade que não lhe compete, como quando redefine o conceito de casamento, quando rejeita a realidade do homem e da mulher, quando mata os inocentes no seio das suas mães, ou quando viola a liberdade religiosa, então estamos perante casos em que César tomou conta daquilo que pertence verdadeiramente a Deus. Então os pastores da Igreja têm a responsabilidade de falar, de defender os direitos de Deus e a verdade do homem. 

Haverá quem critique, e recite os slogans antigos: que a política não tem lugar no púlpito; que devemos manter a religião fora da política; separação da Igreja e do Estado! Claro que ninguém acredita em nada disso. Afinal de contas, uma das críticas mais comuns que se faz da Igreja é de que os seus pastores não ergueram as vozes o suficiente para criticar a escravatura, ou Hitler, ou a segregação racial. E ninguém desculpa esses silêncios dizendo que a política não tem lugar no púlpito.

Evidentemente, um padre não devia absolutizar os muitos assuntos sobre os quais católicos fiéis podem exercer juízo prudencial e ter diversidade de opinião. Não existe uma solução especificamente católica sobre a imigração, ou o serviço nacional de saúde, ou a Ucrânia, etc. Podemos discutir legitimamente esses assuntos. Mas devemos discuti-los como filhos de Deus, de acordo com o ensinamento católico.

Mas quando os pastores erguem as vozes contra o aborto, ou a redefinição do casamento, ou os atropelos à liberdade religiosa, não estão a meter-se na política, estão a defender os direitos de Deus contra as intromissões dos políticos. O direito à vida, o significado do casamento, a realidade do masculino e do feminino – estas coisas pertencem a Deus. Não podemos colaborar em entregá-los a César. Quando a Igreja ergue a voz sobre esses assuntos está simplesmente a ecoar as palavras do seu divino Esposo: Devolve a Deus o que é de Deus.

Devolve a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Existe um outro sentido para este verso, mais pessoal. Tu pertences a Deus, não a César. Pertences à oração, não à política. Sim, deves estar informado e envolvido na política, até certo ponto, mas a política não é a única coisa, ou sequer a mais importante. Se investires mais tempo na política do que na oração; se lês mais sobre a próxima eleição do que sobre o teu Senhor; se estás mais preocupado com o governo da terra do que a do Céu – então destes a César o que pertence a Deus. César tornou-se o teu deus.

A primeira forma de defender os direitos de Deus contra as intromissões do Estado é de assegurar que estás a viver a tua vida como alguém que lhe pertence; a pensar mais no seu Reino do que na tua própria pátria; a passar mais tempo a contemplar as verdades eternas do que a ser absorvido por aquilo que passa por notícias. Quando colocas a oração e o serviço ao Deus eterno acima de tudo o resto, então relativizas a autoridade do Estado e dás a Deus aquilo que lhe pertence.


O Pe. Paul Scalia é sacerdote na diocese de Arlington, pároco da Igreja de Saint James em Falls Church e delegado do bispo para o clero. 

(Publicado pela primeira vez no domingo, 22 de Outubro de 2023 em The Catholic Thing

© 2023 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.   



Friday, 20 October 2023

Coragem e desinformação na Terra Santa, e Papa pode ir ao Dubai

Continuamos todos com os olhos postos no Médio Oriente, onde ainda decorre a guerra entre Israel e o Hamas e se sucedem notícias trágicas. Mas quão fiáveis são essas notícias? Esta semana tivemos um exemplo perfeito dos problemas da comunicação social moderna, com o episódio do Hospital Anglicano, um paradigma da era da desinformação. Leia aqui a minha análise, onde também dedico umas linhas a explicar porque é que os anglicanos, que praticamente não têm presença no terreno na Palestina, continuam a gerir um hospital em Gaza.

No meio de todo este conflito lembrei-me também do momento em que o Papa Francisco entregou ao Patriarca Latino de Jerusalém os símbolos de cardeal, tendo-lhe dito “Força, coragem”. Mal sabiam que daí a pouco mais de uma semana romperia este conflito e que o Patriarca estaria a oferecer-se para ser trocado por reféns israelitas em Gaza. Entretanto o Papa tem estado em contacto telefónico com a paróquia católica em Gaza, dizendo-lhes o mesmo que disse ao Patriarca.

Terça-feira muitos responderam ao apelo dos bispos da Terra Santa para rezar e jejuar pela paz. Agora o Papa convocou nova jornada de oração e jejum pela mesma razão, mas para o dia 27 de Outubro.

Falando do Papa Francisco, esta semana soube-se que ele tinha cancelado uma audiência com organizadores da JMJ Lisboa marcada para 30 de Novembro, por causa de uma “viagem não programada”. Viagens não programadas não são normais para a Santa Sé, onde tudo é sempre meticulosamente planeado. De início, e pela data, ainda avancei a possibilidade de estar em vista uma viagem ao Patriarcado de Constantinopla, na Turquia, mas nesse mesmo dia consegui apurar que o destino pretendido é, afinal, o Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. Tanto quanto me apercebi, fui mesmo o primeiro a dar essa notícia a nível mundial, publicada no Expresso e no The Pillar. Leiam para perceber porque é que esta viagem, caso se confirme, é tão importante.

Há notícias boas e más da Nicarágua. O regime libertou 12 padres, permitindo que fossem transportados para Roma. A má notícia é que continua no poder um regime que prende padres às dúzias por razão nenhuma, e também que o bispo Rolando Alvarez continua atrás das grades. Rezemos por ele.

Aqui têm finalmente o link (só para assinantes) para o meu artigo no Expresso sobre o lugar da mulher na Igreja Católica, a propósito do sínodo que decorre em Roma.

Esta manhã, às 10h35, estive na SIC Notícias a falar sobre a variedade religiosa na Terra Santa. Podem meter para trás e ver, e espero poder ter o link para o segmento no blog muito em breve.

Não percam ainda o artigo desta semana do The Catholic Thing, no qual Randall Smith explica que a Igreja Católica nunca ensinou que os governantes políticos devem ser necessariamente católicos, nem que devem obedecer às autoridades eclesiásticas.

Thursday, 19 October 2023

O Hospital Anglicano de Gaza e o paradigma da desinformação

O que se passou esta semana no Hospital Anglicano, em Gaza, é quase um retrato da guerra no Século XXI.

Na terça-feira ao fim da tarde começaram a chegar as notificações dos grandes órgãos de comunicação social. Israel acabava de bombardear o Hospital Anglicano, matando cerca de 500 pessoas. Horror absoluto! Chocado, eu partilhei a informação no Twitter. Felizmente, porque enquanto jornalista sei como estas coisas funcionam, usei a condicional. “Israel terá bombardeado o Hospital Anglicano em Gaza…”

Duas horas mais tarde Israel garantia que não tinham sido eles, tinham sido os palestinianos e a explosão tinha sido causada por um míssil que falhou o alvo, caindo em Gaza.

Começaram as trocas de acusações e pelo mundo partidários de uns e outros pegaram logo nas suas bandeiras, assumindo como verdade absoluta tudo o que estava a ser dito pelo lado que apoiam. Muito rapidamente percebemos que a dor e a tristeza pela morte de tantos civis eram secundárias em relação aos pontos que se podia ganhar nas discussões.

Neste tempo em que temos acesso a informação na ponta dos dedos, continuamos a ser expostos a desinformação a um ritmo alucinante. A culpa é, em larga medida, dos órgãos de comunicação social que, na ânsia de serem os primeiros a dar a notícia nem sempre verificam bem os factos, o que se torna ainda mais evidente quando é impossível ter correspondentes no terreno.

Reparem como foi a evolução desta notícia em particular: De “Israel bombardeia hospital, destruindo-o completamente e matando 500 pessoas”, passámos para “hospital bombardeado e destruído, morreram 500 pessoas”, para “Palestinianos bombardeiam hospital, matando 500 pessoas” e por fim para “explosão no parque de estacionamento do hospital mata dezenas de pessoas”.

E no meio disto tudo continuamos sem saber, em rigor, quem disparou o projétil que atingiu o parque de estacionamento do hospital, nem quantas vítimas houve, já que o Hamas fala em 471, mas fontes de agências secretas europeias dizem que foram “apenas” dezenas.

Uma das coisas mais interessantes nisto é a forma como os partidários de um lado e do outro parecem estar perfeitamente convencidos de que o lado que apoiam seria incapaz de cometer um acto destes, e que o lado contrário não só seria capaz, como o faria de forma propositada e com gosto. Isto revela uma divisão social e ideológica que embora seja compreensível no próprio Médio Oriente, não faz sentido para quem observa à distância.

Mas a verdade é que ambos os lados já fizeram o equivalente, e provavelmente pior. Quem diz que os palestinianos não seriam capazes de bombardear o hospital esquece-se que estamos a falar de um movimento que só existe porque faz de toda a população de Gaza o seu escudo humano e que há menos de duas semanas penetrou no território israelita e matou mais de 1000 civis desarmados, homens, mulheres e crianças. Não seriam capazes de matar algumas dezenas dos seus próprios civis para prejudicar a imagem dos israelitas? Claro que seriam. Não estou a dizer que o fizeram, mas que seriam capazes é evidente.

E quem diz que Israel jamais atingiria um hospital, matando civis, esquece-se que o mesmo Hospital Anglicano foi atingido por tiros de artilharia israelita dias antes, mas que felizmente não fizeram vítimas.

Com base na informação que já saiu, parece-me bastante convincente a teoria de que foi um míssil palestiniano a fazer estragos no hospital, mas não vejo qualquer indício de que tal tenha sido propositado. Parece-me antes que foi um terrível acidente, mas que as autoridades de Gaza, ou pensando que tinha sido um ataque israelita, ou sabendo já que tinha sido um erro palestiniano, culparam os israelitas para poder gerar indignação interna e internacionalmente contra o seu inimigo. E funcionou, obviamente. O número de mortos pode ter sido exagerado com o mesmo propósito, mas se foi isso que aconteceu, então naturalmente o Hamas, tendo já avançado essa informação, não poderia voltar atrás e dizer que tinham sido apenas umas dezenas de vítimas, pelo que se vê obrigado a manter a narrativa e não pode aceitar de forma alguma a culpa pelo incidente.

Não é brincadeira nenhuma quando se diz que a primeira grande vítima da guerra é a verdade.

O que faz um hospital anglicano em Gaza?

Feita esta primeira análise, um comentário sobre o facto de haver sequer um hospital cristão em Gaza, sobretudo anglicano, quando os anglicanos são uma minoria praticamente insignificante na Palestina em geral, e julgo não existirem sequer em Gaza.

O facto de este hospital existir não é apenas testemunho de uma história de envolvimento cristão na região. De facto, quando o hospital foi fundado não existia Israel, quanto mais Autoridade Palestiniana.

Mas à medida que a realidade no terreno foi mudando, e sobretudo a partir do momento em que o Hamas, um grupo radical islâmico, foi ganhando peso e os cristãos foram saindo de Gaza para outras partes do mundo, ou então para a Cisjordânia, o hospital poderia perfeitamente ter sido desactivado ou, pelo menos, desvinculado de uma Igreja que não tem presença no terreno. Mas não. A Igreja Anglicana (mais especificamente Igreja Episcopal de Jerusalém, o ramo local da Comunhão Anglicana) manteve o hospital activo e a servir a população quase totalmente muçulmana porque é isso que os cristãos fazem.

Em todo o mundo vemos o mesmo padrão. Mesmo em locais onde são uma pequena minoria, as igrejas cristãs desempenham um papel absolutamente desproporcional no fornecimento de serviços às populações locais, seja na área da saúde, seja na área da educação ou da justiça social.

Este é um verdadeiro e belo testemunho de amor cristão pelos outros, e de serviço ao bem comum, e é também uma forma de evangelização, mesmo que não resulte em conversões imediatas, ou futuras.

Entretanto, continuemos a rezar pela Terra Santa. Que Deus faça brotar no coração dos homens a sede de paz, porque humanamente não se vê luz ao fundo do túnel nesta altura.

Wednesday, 18 October 2023

Autoridade Apostólica e Prudência Cívica

Randall Smith

A capacidade de fazer juízos prudenciais sobre o bem comum de um Estado em particular, com as tradições, os hábitos e a forma de vida que o caracteriza, é algo que apenas se ganha com a experiência. Promulgar boas leis, que não sejam demasiado opressivas, nem demasiado liberais; que façam sentido para a maioria dos cidadãos e cujo cumprimento possa ser imposto de forma apropriada, requer uma capacidade de discernimento que normalmente se adquire através de aprendizagem paciente e longa experiência. Eu não nego que Deus possa, em certas ocasiões, simplesmente infundir num indivíduo a prudência necessária para desempenhar uma tarefa em particular, sobretudo quando se tratar de um assunto urgente. Mas que isso não seja uma desculpa para a preguiça ou falta de preparação.

Consideremos a posição daqueles que dizem que quem governa o estado deve obedecer às autoridades eclesiais. Se por “obedecer”, ou “ser governado por”, quisermos dizer que as autoridades civis devem, ao fazer os seus próprios juízos de prudência, deixar-se guiar pelos princípios morais revelados na Escritura e clarificados através de séculos de reflexão, passada ao longo das gerações pela tradição da Igreja, então, sim. O que também se aplica a quando as autoridades eclesiais avisam, com toda a autoridade dos seus cargos, que as autoridades seculares estão a violar os preceitos fundamentais do direito natural, que não admite exceções. Também aqui seria bom que as autoridades seculares fossem obedientes a esse juízo da Igreja.

Mas, se o que queremos dizer é que os juízos prudenciais das autoridades eclesiásticas devem governar ou sobrepor-se aos de líderes seculares bem-intencionados e com uma boa compreensão da justiça e do direito natural, então a resposta teria de ser não.

Os bispos não têm mais capacidade do que qualquer outra pessoa para julgar se devemos aumentar ou baixar os impostos, se o défice está demasiado alto ou não, qual é o número ideal de imigrantes, ou o ordenado mínimo adequado, ainda que sejam bispos verdadeiramente santos. O carisma da autoridade apostólica não é um garante de prudência cívica. Logo, as autoridades eclesiásticas que opinam publicamente sobre tais assuntos, enquanto ignoram outros como a matança de bebés por nascer, estão a confundir a natureza do seu carisma e da sua autoridade.

Seria melhor então afirmar que uma verdadeira prudência levaria a pessoa a reconhecer os limites das suas próprias capacidades e habilidades, de tal maneira que um bispo com uma prudência perfeita jamais assumiria a função (nem tentava impor publicamente) juízos prudenciais sobre assuntos em relação aos quais não possui qualquer conhecimento especializado. Presumivelmente, um tal santo bispo reconheceria que demorou anos a alcançar a sabedoria e a experiência necessárias para compreender o seu povo e governar sabiamente a sua diocese – sempre com a assistência e a orientação do Espírito Santo – e que pela mesma ordem de razões deve demorar anos a alcançar a sabedoria necessária para governar de forma sábia uma comunidade cívica.

Presumo que um verdadeiro estadista deve ter-se informado bem, estudado diligentemente a arte de governar e visto outros legisladores em acção, para aprender o que resulta e o que não resulta. Terá tido encontros suficientes com os seus concidadãos para compreender as suas necessidades e a sua tolerância pelas várias regras e imposições à sua liberdade. E os juízos prudenciais de tal legislador seriam ainda informados pela admoestação de São Tomás de Aquino de que “as leis impostas ao homem devem ser coerentes com a sua condição pois, como diz Isidoro, a lei deve ser ‘exequível, tanto no quadro da natureza como no quadro dos costumes do país’”.

Tomar decisões prudenciais deste género não é apenas uma questão de consultar uma lista de ditames morais num qualquer manual de justiça social e depois traduzi-las em leis. A prudência necessária para formar esses juízos requer treino e experiência, adquire-se com o tempo, através de tentativa e erro, aprendendo com os erros e com os bons exemplos dos outros. Os cristãos acreditam que este processo é possível com a orientação e graça do Espírito Santo. Mas nesta matéria aplica-se a frase de São Tomás de Aquino: “A Graça não viola a natureza, antes a aperfeiçoa”.

Mas não fará sentido pelo menos exigir que os nossos líderes cívicos também sejam católicos? Isso depende. O historial das universidades católicas sugere que contratar pessoas que se dizem católicas, ou mesmo praticantes, não é nenhuma garantia de compreensão da missão católica da instituição, ou de compromisso para com a mesma. É raro encontrar alguém mais anticatólico que um católico zangado ou alienado. Mais vale contratar um judeu devoto que se preocupa com a educação do que um católico que não se interessa.

Também convém dizer que a exigência de aceitar apenas líderes católicos aproxima-se perigosamente da visão calvinista de que apenas os eleitos são capazes de governar a cidade ou a nação. Os católicos nunca subscreveram esta ideia. Antes pelo contrário, sempre defenderam, como escreve Heinrich Rommen no magistral O Estado no Pensamento Católico:

A autoridade política assenta na lei natural. O governante, ou de forma mais genérica, a autoridade política não precisa de qualquer aprovação ou legitimação eclesial, nem o governante não-cristão necessita de qualquer tipo de consentimento específico por parte dos seus súbditos cristãos. Não existe uma libertas Christiana que proíbe os não cristãos de governarem os cristãos, como tem sido defendido por sectários desde os primeiros séculos da era cristã. A legitimação única e satisfatória da autoridade política é a lei natural em geral e, em concreto, o cumprimento do seu dever para com o bem comum.

Os católicos não devem procurar repetir os erros do Século XX, quando, na década de 30, por exemplo, muitos católicos apoiaram o austríaco Engelbert Dolfuss que dissolveu o Parlamento para edificar um estado “católico”, ou quando os católicos apoiaram o ditador António Salazar em Portugal, ou Francisco Franco em Espanha, que utilizaram a censura e a polícia secreta para suprimir a oposição. Nem me parece que os católicos devam recordar com saudade e orgulho o governo absolutista de Pio IX sobre os Estados Pontifícios.

Ter um governante ou um executivo católico, mesmo um que seja ortodoxo e santo, não é nenhuma garantia da virtude da administração cívica prudente.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 17 de Outubro de 2023)

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Monday, 16 October 2023

Papa a caminho da Turquia?

[Afinal enganei-me! Mas ainda fui a tempo de emendar a mão.]

O Papa Francisco cancelou a audiência geral que tinha marcada para o dia 30 de Novembro. Este cancelamento ainda não foi divulgado oficialmente pelo Vaticano, mas já foi comunicado às delegações que pretendiam tomar parte na audiência, como é o caso de um grupo de representantes da organização da JMJ Lisboa, que iam viajar para Roma para o efeito.

O motivo do cancelamento é uma “viagem não programada” do Santo Padre nos dias à volta do dia 30. Não se sabem mais detalhes.

Contudo, 30 de Novembro é dia de Santo André, o padroeiro do Patriarcado de Constantinopla. Sabemos que o Papa Francisco – como era o caso dos seus antecessores – tem óptimas relações com o Patriarca Bartolomeu de Constantinopla, que por sua vez tem primazia de honra em toda a comunhão ortodoxa. É normal os dois hierarcas trocarem mensagens de saudação no dia do respectivo santo padroeiro, mas também já se visitaram oficialmente, sendo que Bartolmeu esteve pessoalmente em Roma para a oração ecuménica que marcou o início do Sínodo sobre a Sinodalidade, no dia 30 de Setembro.

Não seria de descartar que Francisco tenha sido, por isso, convidado a visitar Istanbul, na Turquia, para celebrar com Bartolomeu o dia de Santo André, ou, eventualmente, que ambos tenham decidido celebrar o dia noutro local.

Para além da importância ecuménica da relação entre Roma e Constantinopla, ela faz ainda mais sentido numa altura em que a autoridade de Bartolomeu está a ser activamente ameaçada pelo Patriarcado de Moscovo e as Igrejas dos países eslavos que tendem a alinhar com a Rússia.

A Guerra na Ucrânia acentuou esta crise interna da Igreja Ortodoxa e levou a algum isolamento de Moscovo. Roma, não obstante o interesse que tem em não cortar relações com Moscovo e em conseguir que o Papa um dia visite a Rússia, quer sem dúvida que Constantinopla saia fortalecida desta situação, mantendo a sua primazia de honra na Comunhão Ortodoxa. Uma visita do Papa, sobretudo no dia 30 de Novembro, ajudaria certamente.

A viagem calharia ainda numa altura em que a Turquia, liderada por Erdogan, parece estar a fazer esforços para melhorar as relações com o mundo cristão. No fim-de-semana passado foi inaugurada a primeira igreja cristã construída em solo turco nos últimos 100 anos, desde a fundação da República turca. Trata-se de uma Igreja Ortodoxa Siríaca, mas o simbolismo destina-se certamente a todo o mundo cristão. Apesar de as relações entre o Estado turco e o Patriarcado de Constantinopla não serem fantásticas, Erdogan sabe com certeza que tem mais a ganhar em manter o centro espiritual do mundo ortodoxo no seu quintal do que em deixá-lo passar para Moscovo.

Devo deixar claro que tudo isto é, por agora, especulação. A única coisa de que temos a certeza é que o Papa vai viajar, e a viagem não estava prevista, o que é raro. Veremos nas próximas semanas, ou mesmo dias, que outras novidades surgem de Roma para confirmar ou desmentir esta possibilidade de uma visita a Constantinopla.

Friday, 13 October 2023

O triste e grotesco regresso da Guerra na Terra Santa

O triste regresso à normalidade em Gaza
O tema desta semana é, obviamente, o regresso – em grotesca força – do conflito entre Israel e Palestina. O Papa é apenas um dos muitos líderes que tem apelado à paz, e mais recentemente à libertação de reféns, mas esta não parece estar para breve. Aliás, Israel criticou-o por fazer “falsos paralelismos”. Francisco telefonou também ao pároco da comunidade católica em Gaza, que é muito pequena, mas desenvolve um trabalho social muito importante na região.

Os bispos católicos da Terra Santa já declararam que o dia 17 de Outubro será de oração e jejum pela paz, e sei que várias organizações católicas se vão juntar a esse apelo, por isso encorajo-vos a fazer o mesmo.

No dia seguinte, 18 de Outubro, a fundação Ajuda à Igreja que Sofre já tinha convocado a iniciativa “Um milhão de crianças reza o terço” e a paz na Terra Santa será sem dúvida uma das principais intenções.

Não há nada que se passe na Terra Santa que não tenha uma dimensão religiosa, e há poucos locais do mundo em que a realidade religiosa é tão complexa como lá. Hoje actualizei e republiquei um texto que datava originalmente de 2012 sobre a relação dos cristãos com Israel. É um assunto complicado e muito, muito variado, mas que podem ter interesse em aprofundar numa altura como esta. Aconselho ainda a leitura desta entrevista com um padre, judeu convertido ao catolicismo, que explica porque é que a Igreja Católica tem de agir com cautela quando fala desta guerra, que parece não ter fim.  

O grupo Renascença tem um novo presidente do Conselho de Administração, o cónego Paulo Franco. Como a maioria de vocês saberá, eu trabalhei na Renascença durante mais de uma década e para além de ainda lá ter muitos amigos, continua a ser uma casa pela qual tenho a maior estima. Acredito perfeitamente que a Renascença ainda tem um papel a cumprir na comunicação social em Portugal e que pode ser cada vez mais e melhor aquela instituição que ajuda os portugueses a fazer uma leitura crente e cristã da actualidade. Por isso só desejo o maior sucesso ao Pe. Paulo Franco e a todos os que lá trabalham, sabendo muito bem que o presente e o futuro continuam a não ser nada fáceis.

Enquanto isto, o ex-presidente da Renascença, o agora Cardeal Américo Aguiar, vai presidir às celebrações de Fátima, que começaram na noite de quinta-feira, e onde certamente também se vai rezar muito pela paz.

A semana passada disse que estava para sair um artigo meu no Expresso sobre o papel da mulher na Igreja, a propósito do Sínodo. Foi adiado para esta semana, em princípio, portanto podem procurá-lo a partir de amanhã.

E por falar no papel da mulher na Igreja, o artigo desta semana do The Catholic Thing é talhado para gerar discussão e até alguma polémica. A teóloga Carrie Gress pergunta se é possível um feminismo cristão. Leia a conclusão a que chega.

Thursday, 12 October 2023

A complexa relação entre cristãos e Israel

[Artigo escrito originalmente em 2012, actualizado em 2023]

Este tema dava para um livro, ou vários, e por isso vou ser o mais sintético possível. O meu objectivo é elaborar aqui um ‘mini guia’ para os leigos compreenderem alguns dos aspectos mais relevantes de uma relação complexa.

Embora o Estado moderno de Israel só exista há 75 anos, as relações entre este e as diferentes igrejas cristãs são influenciadas por muitos aspectos que antecedem a fundação do país. A isso deve-se somar a existência de diferentes igrejas cristãs, cada uma com os seus interesses estratégicos, o que neste contexto não significa necessariamente “interesseiros”.

Comecemos pelos “melhores amigos” de Israel. Ao contrário do que se possa esperar, nem sempre os melhores amigos de Israel são os judeus noutros países - muitos dos quais são até bastante críticos do Estado Israelita, mas sim cristãos evangélicos. Isto é particularmente verdade nos Estados Unidos, onde estes cristãos têm maior expressão, influência e força, mas não é uma realidade confinada à América.

Os evangélicos americanos acabam por reflectir a posição genérica das diferentes administrações em Washington, mas por razões mais complexas. Em alguns casos pelo menos, não digo que seja em todos, está em causa uma visão milenarista que defende que a existência de Israel enquanto Estado político independente é uma pré-condição necessária para o fim dos tempos, a segunda vinda de Cristo e o Juízo Final.

Claro que muitos desses cristãos acreditam que os judeus que agora tanto defendem serão condenados ao inferno por não terem acolhido a salvação que vem de Cristo, por isso é uma amizade um tanto ou quanto estranha. Mas é palpável e não apenas moral, assumindo a forma de ajuda financeira e política.

A situação muda de figura com as igrejas evangélicas mais liberais/progressistas, que tendem a apoiar mais a causa palestiniana, mas estas são menos expressivas, porque menos organizadas.

Na Europa, por exemplo, a situação é bastante diferente. Em alguns países mantém-se uma lamentável desconfiança dos judeus que se traduz em atitudes anti-Israelitas. Outras pessoas simplesmente não concordam com as políticas daquele Estado face aos palestinianos, o que não deve ser necessariamente confundido com antissemitismo. Isto aplica-se tanto a cristãos como a não-cristãos, mas nos últimos tempos tem-se tornado particularmente a bandeira de uma certa esquerda radical, que é também anticristã, e por conseguinte tem empurrado alguns cristãos para o lado contrário.

Protesto anti-israelita na Grécia
No plano oficial, porém, a atitude dos cristãos na Europa, sobretudo da hierarquia católica, rege-se pela linha orientadora do Vaticano que tem defendido consistentemente o direito à existência de Israel, aliado a uma defesa dos direitos dos palestinianos, o que se traduz na defesa da solução de dois estados para aquela região.

Os interesses do Vaticano na Terra Santa são representados pelo Patriarcado Latino de Jerusalém, cujo Patriarca, Pierbattista Pizzaballa, foi recentemente elevado a cardeal. Quando recebeu do Papa os símbolos cardinalícios, este disse-lhe "força, coragem!", mostrando entender a delicadeza da sua posição, de ter de cuidar de cristãos de ambos os lados da barricada e de lidar com as autoridades árabes e judaicas.

Do ponto de vista geopolítico e ideológico isto até poderá parecer estranho. Nos dias de hoje, não têm os judeus mais em comum com os cristãos face à ameaça comum que representa um Islão em expansão? Talvez. Note-se que a nível de diálogo inter-religioso, por exemplo, o Judaísmo é tratado de forma diferente do que o Islão, em reconhecimento dessa maior proximidade.

Contudo, e aqui chegamos ao aspecto mais importante, há que recordar o factor dos cristãos árabes. Uma boa percentagem da população palestiniana é cristã, tanto no território da Administração Palestiniana (mais na Cisjordânia do que em Gaza, mas a diminuir em ambos), como em Israel propriamente dito, onde são cerca de 10% da população palestiniana.

Tradicionalmente estes cristãos palestinianos eram tão ferozmente anti-israelitas como os seus compatriotas árabes. George Habash e Nayef Hawatmeh, por exemplo, dois dos pioneiros da luta armada contra Israel, eram ambos cristãos e aquele que foi talvez o único exemplo de um bispo detido por tráfico de armas foi o palestiniano Hilarion Capucci.

George Habash, cristão e pioneiro da luta armada palestiniana
Esta tendência alarga-se ao resto do mundo árabe. Geralmente os cristãos árabes são anti-israelitas e culpam o conflito israelo-árabe pela instabilidade da zona, que acaba por desembocar em perseguições anticristãs.

Compreende-se por isso que a Igreja Católica, uma vez que muitos destes cristãos árabes são católicos, tenha que manter um, por vezes difícil, equilíbrio entre uma maior proximidade ideológica com os israelitas democráticos e ocidentalizados - sobretudo reconhecendo uma dívida para com o povo judaico, fruto de séculos de perseguição - e a defesa de alguns direitos elementares de justiça e dignidade para os palestinianos, muitos dos quais são cristãos. Nem sempre é um jogo fácil de jogar e as relações diplomáticas entre a Santa Sé e Israel são tensas. Ainda recentemente, quando começou este novo conflito em Outubro de 2023, o Governo israelita criticou o Papa por apelar à paz e à contenção de ambas as partes, acusando-o de falsos paralelismos.

Por fim, temos o factor ortodoxo. Aqui sente-se de forma particular o peso da história. Recordemos que até à Primeira Guerra Mundial toda a Terra Santa pertencia ao Império Otomano, a grande potência do mundo islâmico.

Havia cristãos em vários territórios do Império Otomano, que viviam com uma boa dose de liberdade, incluindo na Terra Santa. O Patriarcado de Constantinopla tinha a sua sede precisamente na capital deste mesmo Império.

Clérigos ortodoxos gregos em Jerusalém
Aos olhos dos Otomanos, os cristãos ortodoxos, fiéis ou a Constantinopla ou a Moscovo, mas não a Roma, eram de maior confiança que os católicos, que mais facilmente podiam ser encarados como “agentes” dos países ocidentais. Os ortodoxos ganharam bastante com isso. O Patriarcado Ortodoxo Grego de Jerusalém é ainda hoje o maior detentor de terras em Israel, possuindo por exemplo o terreno no qual está construído o Knesset, o parlamento israelita.

Ao mesmo tempo os Russos investiram muito dinheiro em Jerusalém, construindo inúmeros mosteiros, albergues para os seus peregrinos e outras instituições, estabelecendo uma significativa presença na Terra Santa.

As boas relações que os ortodoxos tinham com o Império Otomano chegaram ao fim com a guerra e não são as mesmas com o Estado de Israel. Por um lado, os ortodoxos e os judeus têm obrigatoriamente que se entender, mas da parte dos ortodoxos não existem as mesmas atenuantes que há em Roma para moderar a desconfiança ou mesmo ódio que os fiéis árabes sentem pelo Estado Judaico.

Quem são os cristãos na Terra Santa?

Normalmente olhamos para a Terra Santa, e para o conflito entre Israel e a Palestina, como uma dicotomia judaica-muçulmana, mas são muitos os cristãos que vivem nestes territórios. 

Os mais numerosos são os cristãos árabes, identificados hoje em dia como palestinianos. Neste momento estes constituem cerca de 3% da população na Faixa de Gaza e da Cisjordânia, embora historicamente tenham sido uma percentagem muito maior, que foi diminuindo pelo facto de os cristãos emigrarem em muito maior proporção que os muçulmanos. 

Entre a comunidade árabe/palestiniana que vive em Israel a percentagem de cristãos é significativamente maior, cerca de 7%, o que representa a vasta maioria dos cristãos israelitas (75%). Os cristãos palestinianos dividem-se mais ou menos em igual número entre católicos e ortodoxos, sendo que existem católicos de rito latino e de rito oriental, principalmente melquita. 
Judeus messiânicos

Os restantes cristãos em Israel são de diferentes comunidades, incluindo entre três e seis mil arménios. Há um número muito significativo de russos de ascendência judaica que emigraram para Israel mas cujas famílias tinham entretanto convertido ao cristianismo, pelo que existem dezenas de milhares de fiéis da Igreja Ortodoxa Russa no país. O mesmo se aplica a alguns milhares de membros da comunidade etiope em Israel. 

Existe também uma relativamente pequena, mas significativa comunidade de cristãos de língua hebraica. Integrada na Igreja Católica de rito latino, esta comunidade é composta por judeus convertidos ao Cristianismo, mas também por descendentes de católicos que já nasceram em Israel e para quem o hebraico é a língua materna.

Por fim, existem algumas comunidades protestantes, a mais polémica das quais são os chamados "judeus messiânicos", que são judeus que acreditam que Jesus é o Messias prometido a Israel e que são por isso cristãos, mas continuam a vestir-se e a comportar-se como judeus, procurando muito activamente converter outros judeus à sua fé. Por causa do seu proselitismo, são muito mal vistos por judeus devotos em Israel. Segundo alguns dados, existem mais de cinco mil judeus messiânicos em Israel.

Wednesday, 11 October 2023

É possível um feminismo cristão?

Tinha ouvido dizer tantas vezes, que mal achei necessário investigar. Falo da repetida expressão de que o feminismo nem sempre tinha sido mau, que a primeira vaga tinha sido boa. Decidi então averiguar por mim, só para poder tirar a teima e confirmar o que sempre me tinham garantido ser verdade.

Surpreendentemente, descobri que nem tudo tinha sido cor-de-rosa na primeira vaga do feminismo. O que eu pensava que levaria apenas dois dias de trabalho para o meu livro The End of Woman: How Smashing Patriarchy has Destroyed Us, rapidamente se transformou em meses. Quanto mais fundo ia, pior era.

Emergiram três factores comuns: o oculto; a igualdade radical dos sexos (que mais tarde se transformaria em “abaixo o patriarcado”) e o amor livre. O que descobri foi que não só a primeira vaga tinha sido claramente uma ideologia anticristã, como plantou as sementes para o que mais tarde se tornaria um tipo de ideologia ainda mais sinistro.

A segunda vaga – por ter estado por detrás da legalização do aborto – pode ser descrita como a ideologia mais mortífera da história da humanidade. (O comunismo matou “apenas” 100 milhões de pessoas no Século XX, e tem vindo a decrescer.) Só nos Estados Unidos já foram abortados 60 milhões de crianças desde a decisão Roe v. Wade, em 1973. Morrem mais crianças devido ao aborto em todo o mundo do que por todas as outras doenças juntas. A culpa pode ser colocada exclusivamente aos pés do feminismo, uma ideologia que ensinou as mulheres a acreditar que as suas crianças são um obstáculo à sua felicidade, e não o caminho para a mesma.

Desde o início que o feminismo tem colocado a pergunta: “Como podemos ajudar as mulheres a ser mais como os homens?”, em vez de perguntar: “Como podemos ajudar as mulheres, enquanto mulheres?” Considerou-se que a vida dos homens era superior e, por isso, a imitar na medida do possível. Assim nasceu o mito da mulher independente-e-infértil.

Daí foi apenas uma questão de tempo até que Margaret Sanger introduziu a era do contraceptivo, seguido de perto pelo aborto, que permitiria finalmente às mulheres ter aquilo que consideravam ser a invejável vida sexual dos homens, sem a necessidade frequente de nove meses de gravidez e dezoito a criar um filho.

A transformação lenta de mulher para um ideal desordenado de masculinidade abriu a porta aos esforços tecnológicos actuais para transformar mulheres em pseudo-homens e homens em pseudo-mulheres. Entretanto, os dados continuam a mostrar que as mulheres não estão mais satisfeitas com a implementação crescente de princípios feministas. As métricas revelam que as mulheres actuais estão mais deprimidas, com mais tendências suicidas, viciadas em substâncias, com maiores taxas de divórcio e com maiores taxas de doenças sexualmente transmissíveis.

Entretanto, ao longo das décadas mulheres cristãs têm tentado construir um feminismo mais saudável do que aquele que nos foi oferecida pela segunda vaga. Muitos tentaram ir beber à primeira vaga; outros esperavam conseguir redimir o termo, tal como João Paulo II. E outros simplesmente usam o termo para significar “pro-mulher”, ignorando toda a bagagem ideológica.

Mas a questão permanece: pode-se ser cristã e feminista?

Se olharmos novamente para os três factores – o oculto, a destruição do patriarcado, e o amor livre – que definiram o movimento ao longo dos últimos duzentos anos, as respostas tornam-se mais fáceis.

Um cristão pode envolver-se no oculto? Essa é fácil, claro que não. E o amor livre? Também um não fácil. E destruir o patriarcado? Esta é ligeiramente mais complicada, mas a fé cristã, desde as suas raízes mais antigas na tradição judaica e no Antigo Testamento, deixa claro que a Igreja Cristã, e a Igreja Católica em particular, é um patriarcado.

Nos seus comentários às escrituras, Brant Pitre e John Bergsma sublinham a mudança dramática que aconteceu com a queda, em Génesis 3:

Houve uma inversão das normas. Ficou tudo de pernas para o ar. Na ordem divina estabelecida em Génesis 1-2, Adão, vice-rei de Deus, deve obedecer a Deus. Deve ainda comunicar a vontade de Deus a Eva, sua esposa, e juntos devem governar sobre os animais. Ao longo de Génesis 2 o animal (a serpente) governa sobre Eva, Eva comunica a vontade do animal a Adão e, em conjunto, os três desafiam Deus.

Este mesmo padrão primordial encontrou uma casa no feminismo. As mulheres adquiriram uma nova autoridade no feminismo enquanto rebaixam, dominam ou ignoram totalmente qualquer autoridade dos homens e de Deus.

Há quem argumente que pode, de facto, existir um feminismo cristão. Cabe-lhes a responsabilidade de mostrar muito claramente aquilo que significa feminismo para eles, para ter a certeza que a sua definição não inclui qualquer uma das características-chave do feminismo mainstream.

Mas a questão principal deve ser: porquê? Porque é que alguém quereria associar-se a uma ideologia que tem sido tão mortal, tão ineficiente – aliás contraprodutiva, mesmo – em conduzir as mulheres à felicidade?

Não há nada que equivale ao catolicismo no que diz respeito a honrar a dignidade inata das mulheres. A ideologia feminista não é necessária para revelar ou levar a cabo a posição pro-mulher do cristianismo. Demasiadas mulheres têm caído no mito da mulher independente, em oposição a Deus, homens, maridos ou filhos.

Acrescentar a mensagem corrompida do feminismo ao cristianismo não tem gerado claridade, antes conduziu a uma profunda confusão sobre o que significa ser mulher hoje, sobretudo uma mulher que diz querer seguir Cristo.


Carrie Gress é doutorada em Filosofia pela Catholic University of America. É editora de Theology of Home e autora de muitos livros, including The Marian OptionThe Anti-Mary Exposed, e co-autora de Theology of Home. É ainda mãe de cinco filhos que educa em casa. O seu mais recente livro é The End of Woman: How Smashing the Patriarchy Has Destroyed Us

Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na segunda-feira, 9 de Outubro de 2023)

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