|
Edição de Caminhos Romanos |
Transcrição integral da entrevista a Roberto de Mattei acerca do seu livro “O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita”. O livro é lançado esta quarta-feira às 18h30 nos Jerónimos.
Veja aqui a notícia.
Em que sentido é que o seu livro é uma “história nunca escrita do Concílio”?
Nesta obra pretendi reconstituir o que se passou em Roma durante os três anos do Concílio, durante os quais 2500 padres conciliares se reuniram sob a orientação de João XXIII e Paulo VI, no 21º Concílio da história da Igreja. Nunca até hoje foi escrita uma história compreensiva sobre este período. A única que está escrita, por Giussepe Alberigo, em cinco volumes, na verdade é uma colecção de textos, mas não é uma história sintética.
Falta-lhe o aspecto de interpretação dos factos?
Exactamente, a ideia é também uma nova interpretação dos factos. Tem um nível de análise a respeito da história que tem como critério da verdade a verificação e apreciação dos factos. Depois há um segundo nível, que compete ao teólogo, ao pastor, mas trata-se de dois planos distintos, mas dependentes. Só depois da reconstrução histórica dos factos é que os pastores, os teólogos, podem intervir para formular os seus juízos teológicos e morais. Os dois níveis, o histórico e o hermenêutico, não podem ser confundidos, a não ser que consideremos que a história se confunde com uma interpretação da história. Mas o meu nível é o histórico.
Passaram 50 anos sobre o início do Concílio. Será cedo para fazer já um balanço do seu efeito na Igreja?
Acho que é o momento de se fazer este balanço. Sublinho que se tratou do 21º concílio. O Concílio Vaticano II não foi o primeiro nem o último concílio, foi um ponto, um momento da longa história da Igreja. Ao longo da história houve 21 concílios. Alguns deles, Niceia, Trento, Vaticano I, são inesquecíveis, por causa do alcance teológico dos documentos que deles emanaram. Outros foram esquecidos. Um concílio entra na história pela qualidade dos documentos que produziu.
Por exemplo no século XVI houve dois concílios, o de Latrão V e o de Trento. Toda a gente se recorda do Concílio de Trento, mas ninguém se recorda do Concílio de Latrão V. Nesse sentido acho que temos uma grande liberdade crítica para analisar e fazer um balanço do Concílio Vaticano II.
Na sua opinião daqui a 400 anos as pessoas vão-se lembrar do Concílio Vaticano II?
Não posso dizer isso, mas o que posso dizer é que o Concílio Vaticano II foi um concílio diferente de todos os que o precederam, neste a característica mais importante foi a pastoral. Claro que nem o Concílio de Trento nem o Vaticano I tinham sido privados do elemento pastoral, mas no Vaticano II o lado pastoral não foi apenas um facto, a natural explicação do conteúdo dogmático do concílio de uma forma adaptada aos tempos, como sempre foi feito. Este elemento pastoral foi elevado a princípio alternativo ao elemento dogmático, subentendendo-se a prioridade do primeiro relativamente ao segundo. A dimensão pastoral acabou por se tornar prioritária, introduzindo uma revolução na linguagem e na mentalidade. A Igreja despojou-se das suas vestes dogmáticas e revestiu-se de um novo fato pastoral e exortativo que deixou de ser obrigatório e definitivo. Mas usar termos diferentes do passado significa levar a cabo uma transformação mais profunda do que se possa pensar. Essa seria a característica principal, essa revolução. Não no conteúdo, não dogmática, mas uma revolução na linguagem, na mentalidade, na maneira de apresentar a doutrina da Igreja.
A grande discussão sobre o Concílio é à volta da questão de ter representado uma ruptura ou não. Qual é a sua opinião?
O Papa Bento XVI declarou que existe uma hermenêutica da reforma cuja verdadeira natureza consiste numa conjugação de continuidade e descontinuidade a níveis diferentes. Parece-me que é justamente da constatação da existência de níveis diferentes de continuidade e descontinuidade que devemos partir, a continuidade e descontinuidade do Vaticano II nos confrontos com a Igreja anterior, que pode ser considerada sobre dois aspectos, a dimensão histórica-humana da Igreja e a dimensão ontológica. Acho que houve continuação na dimensão ontológica que corresponde à dimensão divina da Igreja, porém houve descontinuidade na dimensão humana que corresponde à natureza humana da Igreja.
|
Roberto de Mattei |
Os ultratradicionalistas, como por exemplo a Sociedade de São Pio X, apontam para a hipótese de ruptura, mas essa ideia também é comum na ala liberal da Igreja, ou não?
Talvez seja assim, mas eu acho que o erro é concentrar a atenção sobre o aspecto dos documentos do Concílio, ou seja do conteúdo dogmático. O Concílio, antes de ser uma série de documentos, foi um evento histórico. Esse é que é o problema central, os juízos sobre a natureza do Vaticano II ao nível histórico. Nesse sentido podemos dizer, acho, que houve uma ruptura, mas uma ruptura histórica não é necessariamente uma ruptura doutrinal e dogmática.
Há a ideia de que a Igreja mudou muito depois do Concílio, mas folheando o seu livro percebe-se que muitas das ideias que saíram já existiam fortemente implantadas na Igreja pré-conciliar, talvez até mais extremas… Qual era o clima na Igreja antes do Concílio?
Houve uma crise na Igreja antes do Concílio Vaticano II, mas certamente o clima do Concílio favoreceu a explosão dessa crise. Algumas expressões dessa crise apareceram depois do Concílio, por exemplo basta pensar na Humanae Vitae, a encíclica que reafirmou, em 1968, a doutrina católica em matéria de moral conjugal. A Humanae Vitae foi contestada por um grupo de bispos da Europa Central, entre os quais o Cardeal Suenens. Mas o Cardeal Suenens era um padre conciliar que no Concílio tinha estabelecido um pacto de ferro com Monsenhor Hélder Câmara, do Brasil, e foi escolhido pelo Papa Paulo VI para orientar o Concílio. O mesmo Suenens já tinha colocado no Concílio o problema do controlo de natalidade, proferindo na Basílica de São Pedro as palavras “não repitamos o processo de Galileu”.
Hoje temos de perguntar se a voz profética que se fez ouvir na aula conciliar foi essa do Cardeal Suenens, que contestou publicamente o Papa Paulo VI, ou a voz dos padres conservadores que no Concílio combateram o cardeal Suenens e anteciparam o Humanae Vitae. O problema é que a minoria conservadora do Concílio é hoje apresentada como a parte derrotada e o Cardeal Suenens e outros são apresentados como profetas, como vencedores. O que faço no meu livro é ser a voz dos vencidos do Concílio, que é a voz da tradição.
Acredita que essa voz poderá ser reabilitada e tornar-se a vencedora a longo prazo?
Acho que sim, porque hoje temos necessidade da tradição, porque a tradição não é o passado, esse acabou, não pode voltar. A tradição são os elementos do passado que vivem no presente e que têm de viver para que o nosso presente tenha futuro. Pessoalmente acredito que no nosso futuro está escrito, graças à intervenção de Deus, o retorno da tradição, a restauração da Igreja e da Civilização Cristã.
|
Cardinal Suenens, uma das
vozes liberais do Concílio |
Mas se essas vozes forem reabilitadas, há incompatibilidade entre elas e os textos propriamente ditos do Concílio? Ou seja, há alguma coisa nos documentos que seja incompatível com a tradição?
Eu acho que o juízo último sobre os documentos do Concílio compete aos pastores e em última análise ao supremo pastor que é o Papa. Há alguns documentos que colocam problemas, por exemplo a declaração Dignitatis Humanae, que não é infalível nem tem valor obrigatório. Muito recentemente o Cardeal Walter Brandmüller [presidente emérito da Pontifícia Comissão das Ciências Históricas] o disse. Essa declaração tem passagens equívocas, que têm de ser clarificadas.
É o caso da liberdade religiosa, não no sentido do acto interior de fé, que sempre foi defendida pela Igreja, mas o direito não só de expressar mas de praticar a fé religiosa, seja qual for. A Igreja sempre condenou essa liberdade religiosa que leva ao indiferentismo. Nesse sentido acho que é preciso uma palavra definitiva da Igreja sobre esse ponto. É só um exemplo.
À medida que investigou o Concílio, o que é que o surpreendeu mais?
Talvez o silêncio do Concílio sobre o comunismo. Porque quando o Concílio se reúne, o Muro de Berlim acabara de desferir uma profunda ferida na Europa. O Comunismo estendia a sua sombra ameaçadora sobre todos os continentes. Porque foi que a solene assembleia dos padres conciliares, reunidos em Roma para tratar das relações entre a Igreja e o mundo moderno, ignorou o fenómeno mais macroscópico da sua era, que era o imperialismo comunista? Esse é talvez o mistério mais profundo do Concílio Vaticano II.
Bento XVI referiu-se recentemente à existência de “luzes e sombras” no legado do Concílio. Na sua opinião quais as maiores luzes e quais as sombras?
Não sei a que o Papa se refere, mas recentemente, no dia da recordação do Concílio, a 11 de Outubro, num discurso que Bento XVI fez, ele falou de como esteve, enquanto jovem teólogo, na Praça de São Pedro quando João XXIII abriu o Concílio e em todo o mundo havia um clima de entusiasmo, parecia haver um clima de aurora, de Pentecostes para toda a Igreja.
Mas, diz o Papa, o que depois aconteceu foi muito diferente porque houve problemas, erros, maus homens na Igreja. O Papa descreve uma situação de crise na Igreja depois do Concílio, que não corresponde às expectativas do Papa João XXIII e dos pastores.
Veja-se esse contraste entre o clima entusiástico, talvez optimista e um pouco utópico na abertura do Concílio e a situação da Igreja que se apresenta nos discursos dos padres sinodais, reunidos em Roma para o sínodo da Nova Evangelização. A voz dos padres sinodais é uma voz dolente, pessimista, descrevem nas próprias dioceses uma situação de profundo sofrimento da Igreja, uma igreja que é perseguida em todos os continentes, incluindo na Europa, pelo laicismo e o secularismo, mas que ainda por cima conhece uma divisão interna profunda. Essa é a situação actual.
Uma das questões que mais afectou os fiéis foi a reforma da liturgia. Acha que a nova missa corresponde ao que os padres conciliares tinham em mente?
A nova missa de Paulo VI foi promulgada no ano 1969, quatro anos depois do fim do Concílio. No documento Sacrosanctum Concilium, que trata a liturgia, não se fala de uma nova missa. Só está presente a possibilidade, dada às Conferências Episcopais, de se introduzir o vernáculo na liturgia da Igreja. A mesma constituição recomenda fortemente a utilização da língua latina na liturgia.
Nesse sentido, o que aconteceu depois não corresponde às indicações do Concílio, mas também existe uma certa continuidade. O problema é o papel desenvolvido pelas conferências episcopais, esse é um problema muito sério, porque a aplicação das decisões do Concílio foi feita em grande medida pelas conferências episcopais.
Há quem diga que o Papa pense, a médio prazo, fazer uma reforma da reforma, criar por assim dizer uma síntese entre a missa antiga e a missa nova… Concorda? E que poderíamos esperar de tal síntese?
Não acho que ele entenda fazer uma síntese das duas liturgias. O que entendo é que em 2007, com o motu proprio Summorum Pontificum, Bento XVI restituiu plena liberdade para a missa tradicional, impropriamente chamada Missa Tridentina, mas a ideia do Santo Padre é que a missa tradicional, o Vetus Ordo, deva manter a sua identidade, sem confusões com o novo rito. O Papa certamente deseja uma ressacralização da nova missa, por isso ele recomenda uma reorientação dos altares, o fim da comunhão nas mãos e outras coisas, mas ele pensa que o Vetus Ordo vai exercer uma pressão indirecta sobre a nova missa, sem a necessidade de fazer uma terceira missa que misture os dois ritos. O Papa fala de uma reforma da reforma, mas acho que é uma reforma do novo rito, o Vetus Ordo vai manter a sua identidade, sem combinar…
Mas essa reforma do novo rito poderia ser uma aproximação do antigo?
Nesse sentido sim.
Como é que o seu livro tem sido recebido?
Já foi traduzido na Alemanha, também vai sair em França, na Polónia e nos Estados Unidos.
Em Itália foi bem recebido, recebi muitas cartas de bispos e cardeais porque eles compreendem que o meu nível é o nível histórico e que compete ao teólogo, em última instância ao Papa, que é o guardião supremo da fé e da moral, resolver os problemas teológicos. Esses problemas existem. Eu, como baptizado, como historiador e leigo tenho a liberdade de realçar os problemas, mas só os pastores é que podem intervir no sentido de definir, porque que não tenho essa autoridade.
Mas o meu contributo é talvez oferecer uma descrição nova do Concílio, porque hoje em dia toda a gente se apercebe do alcance revolucionário do Maio de 68, uma revolução cultural mais profunda e incisiva que uma revolução política. Contudo, antes de 68 houve o triénio 1962-1965, os anos durante os quais teve lugar o Concílio Vaticano II, e eu acho que essa foi uma revolução que modificou profundamente a história dos anos seguintes, a história contemporânea, a começar pelo próprio Maio de 68 que foi influenciado pelo Vaticano II. Há uma componente católica na revolução de 68 e devemos reconhecer isso para melhor resolver os problemas contemporâneos.
É claramente crítico do concílio e próximo da tradição, o que o separa daqueles como a Fraternidade São Pio X (seguidores de Marcel Lefebvre) que recusam o concílio e estão fora de comunhão com o Papa?
A principal distinção é a distinção canónica, no sentido de que a Fraternidade São Pio X encontra-se numa situação irregular, mas não acho que do ponto de vista doutrinal tenham erros, o que é irregular é a situação canónica. Eu sou leigo, estou dentro da Igreja Canónica e tenho uma situação canónica perfeitamente regular.
Mas acontece o contrário, há na Igreja correntes progressistas que têm uma posição canónica regular, por exemplo o padre Hans Küng não é excomungado e celebra missa regularmente, mas ele é notoriamente um herético, mas um herético com uma posição canónica regular. Tem outros que são ortodoxos mas têm uma posição irregular. Eu penso que sou ortodoxo com uma posição canónica regular.
Filipe d'Avillez